sábado, 26 de maio de 2012

LIVRO DA VIDA - Santa Teresa de Jesus


Autobiografia
Índice Geral
JHS
CAPÍTULO 1. Trata como o Senhor lhe começou a despertar a alma para a virtude na sua infância,
e quanto a isto ajuda os pais serem virtuosos.
CAPÍTULO 2. Diz como foi perdendo estas virtudes e quanto importa, na meninice, tratar com
pessoas virtuosas.
CAPÍTULO 3. Trata como uma boa companhia lhe serviu para despertar seus desejos e por que
modo o Senhor lhe começou a dar alguma luz sobre o engano que tinha trazido.
CAPÍTULO 4. Diz como o Senhor a ajudou a convencer-se a si mesma para tomar Hábito e as
muitas enfermidades que Sua Majestade lhe começou a dar.
CAPÍTULO 5. Narra as grandes enfermidades que teve e a paciência que o Senhor lhe deu e como
dos males tirou bens, conforme se verá por uma coisa que lhe aconteceu neste lugar aonde se foi
curar.
CAPÍTULO 6. Trata do muito que ficou a dever ao Senhor por lhe ter dado conformidade em tão
grandes trabalhos e como tomou por medianeiro e advogado ao glorioso São José e o muito que lhe
aproveitou.
CAPÍTULO 7. Trata como foi perdendo as mercês que o Senhor lhe tinha feito e quão perdida vida
começou a ter. Diz os danos que há em não serem muito enclausurados os mosteiros de monjas.
CAPÍTULO 8. Trata do grande bem que lhe fez não ter deixado de todo a oração para não perder a
alma, e quão excelente remédio é para ganhar o perdido. Persuade a que todos a tenham. Diz como
é grande ganho, embora a tornem a deixar por algum tempo.
CAPÍTULO 9. Trata por que meios começou o Senhor a despertar a sua alma e a iluminá-la em tão
grandes trevas e a fortalecer a sua virtude para não O ofender.
CAPÍTULO 10. Começa a declarar as mercês que o Senhor lhe fazia na oração. Como nos podemos
ajudar e o muito que importa que entendamos as mercês que o Senhor nos faz. Pede a quem envia
esta relação da sua vida que fique no segredo o que escrever daqui em diante, já que lhe mandam
declarar em pormenor as mercês que lhe faz o Senhor.
CAPÍTULO 11. Diz a razão por que não se ama a Deus com perfeição em breve tempo. Começa a
declarar, por uma comparação, quatro graus de oração. Vai tratando aqui do primeiro. É muito
proveitoso para os que começam e para os que não têm gostos na oração.
CAPÍTULO 12. Prossegue no assunto deste primeiro grau de oração. Diz até onde podemos chegar,
com o favor de Deus, e o dano que há em querer elevar o espírito a coisas sobrenaturais, até que o
Senhor o faça.
CAPÍTULO 13. Continua a tratar do primeiro grau de oração e dá uns conselhos para algumas
tentações que o demônio apresenta algumas vezes. É muito proveitoso.
CAPÍTULO 14. Começa a declarar o segundo grau de oração que é o Senhor já fazer sentir à alma
gostos mais particulares. Declara-o para fazer ver como já são sobrenaturais. É muito para se ter em
conta.
CAPÍTULO 15. Prossegue na mesma matéria e dá alguns avisos sobre o modo de proceder na
oração de quietude. Diz como há muitas almas que chegam a ter esta oração e poucas as que passam
adiante. São muito necessárias e proveitosas as coisas que aqui se dizem.
CAPÍTULO 16. Trata do terceiro grau de oração e vai declarando coisas muito elevadas, e o que
pode a alma que aqui chega, e os efeitos que fazem estas mercês tão grandes do Senhor. É muito
para elevar o espírito em louvores a Deus e para grande consolação de quem aqui chegar.
CAPÍTULO 17. Prossegue na mesma matéria deste terceiro grau de oração. Acaba de expor os
efeitos que produz. Diz o dano aqui causado pela imaginação e a memória.
CAPÍTULO 18. Trata do quarto grau de oração. Começa a declarar, de modo excelente, a grande
dignidade a que o senhor eleva a alma que está neste estado. Serve de estímulo aos que tratam de
oração para se esforçarem a chegar a tão alto estado, pois se pode alcançar na terra, não pelos
próprios merecimentos mas por bondade do Senhor. Leia-se com atenção, pois é descrito muito
delicadamente e apresenta coisas muito importantes.
CAPÍTULO 19. Prossegue na mesma matéria. Começa a declarar os efeitos produzidos na alma,
neste grau de oração. Aconselha a que não tornem atrás nem deixem a oração, ainda que, depois
desta mercê, tornem a cair. Diz os danos que há em não se fazer isto. E de grande consolo para os
fracos e pecadores.
CAPÍTULO 20. Trata da diferença que há entre a união e arroubamento. Declara o que é
arroubamento e diz alguma coisa sobre o bem que existe na alma que o Senhor, pela Sua bondade,
faz chegar a Ele. Enumera os efeitos que produz. É muito para admirar.
CAPÍTULO 21. Prossegue e acaba este último grau de oração. Diz o que a alma sente por continuar
a viver no mundo; e como o Senhor a esclarece dos enganos deste mesmo mundo. Tem boa
doutrina.
CAPÍTULO 22. Trata de quão seguro caminho é para os contemplativos não levantarem o espírito a
coisas altas se o Senhor o não levanta, e como a Humanidade de Cristo deve ser caminho para
chegar à mais alta contemplação. Fala dum engano em que andou algum tempo. É muito proveitoso
este capítulo.
CAPÍTULO 23. Volta a tratar do discurso da sua vida e diz como começou a tratar de maior
perfeição e por que meios. É proveitoso para as pessoas que dirigem almas de oração, para que
saibam como se hão de haver nos princípios e o proveito que lhes faz saberem-nas levar.
CAPÍTULO 24. Prossegue o mesmo assunto e diz como foi progredindo a sua alma, depois que
começou a obedecer e o pouco que lhe aproveitava resistir às mercês de Deus e como Sua
Majestade lhas ia fazendo maiores.
CAPÍTULO 25. Trata da maneira como se entendem estas falas que Deus faz à alma, sem se
ouvirem, e de alguns enganos que pode haver nisso e em que se conhecerá quando é engano. É
muito proveitoso para quem se encontrar neste grau de oração, porque é muito bem explicado e de
grande doutrina.
CAPÍTULO 26. Prossegue na mesma matéria. Vai declarando e dizendo coisas que lhe aconteciam
e que lhe faziam perder o temor e afirmar que era bom espírito o que lhe falava.
CAPÍTULO 27. Trata de outro modo com que o Senhor ensina a alma e, sem lhe falar, lhe dá a
entender a Sua vontade de uma maneira admirável. Declara também uma visão não imaginária e
grande mercê que lhe fez o Senhor. É muito digno de atenção este Capítulo.
CAPÍTULO 28. Trata das grandes mercês que lhe fez o Senhor e como Ele lhe apareceu a primeira
vez. Declara o que é visão imaginária. Diz os grandes efeitos e sinais que deixa quando é de Deus.
É muito proveitoso este capitulo e digno de se ter em conta.
CAPÍTULO 29. Prossegue o assunto começado e diz algumas grandes mercês que lhe fez o Senhor
e as coisas que Sua Majestade lhe dizia para a assegurar e para que respondesse aos que a
contradiziam.
CAPÍTULO 30. Retoma a narração da sua vida e diz como o Senhor remediou muito os seus
trabalhos trazendo ao lugar onde ela estava o santo varão Frei Pedro de Alcântara, da ordem do
glorioso S. Francisco. Trata também de grandes tentações e trabalhos interiores que tinha algumas
vezes.
CAPÍTULO 31. Trata de algumas tentações exteriores e representações que lhe fazia o demônio e
tormentos que lhe dava. Diz também algumas coisas muito boas para aviso de pessoas que vão a
caminho da perfeição.
CAPÍTULO 32. Trata como aprouve ao Senhor pô-la em espírito no lugar do inferno que por seus
pecados tinha merecido. Conta um pouco do que ali se lhe representou. Começa a tratar da maneira
e modo como, se fundou o mosteiro de S. José onde agora está.
CAPÍTULO 33. Prossegue na mesma matéria da fundação do mosteiro de S. José. Diz como lhe
mandaram que não se metesse nela e o tempo que a deixou e alguns trabalhos que teve e como neles
a consolava o Senhor.
CAPÍTULO 34. Trata como neste tempo foi conveniente que se ausentasse deste lugar. Diz a causa
por que o seu prelado a mandou ir consolar uma senhora, muito principal, que estava muito aflita.
Trata do que ali lhe sucedeu e diz a grande mercê que o Senhor lhe fez de, por seu intermédio,
mover a uma pessoa para O servir muito, deveras, em quem ela encontrou depois favor e amparo. É
muito para notar.
CAPÍTULO 35. Prossegue na mesma matéria da fundação deste mosteiro do glorioso S. José e
como ordenou o Senhor que se viesse a guardar nele a santa pobreza. Diz por que voltou de casa
daquela senhora em que estava e algumas outras coisas que lhe sucederam.
CAPÍTULO 36. Prossegue no tema começado e diz como se acabou de concluir e se fundou este
mosteiro de S. José e as grandes contradições e perseguições que houve, depois de tomarem hábito
as religiosas. Conta os grandes trabalhos e tentações que ela passou e como de tudo a tirou o Senhor
com vitória e em glória e louvor Seu.
CAPÍTULO 37. Trata dos efeitos que lhe ficavam quando o Senhor lhe fazia alguma mercê. Junta
com isto muito boa doutrina. Diz como se há de procurar ter em muito o ganhar mais algum grau de
glória e que, por nenhum trabalho, deixemos bens que são perpétuos.
CAPÍTULO 38. Trata dalgumas grandes mercês que o Senhor lhe fez, tanto em mostrar-lhe alguns
segredos do Céu, como outras grandes visões e revelações que Sua Majestade teve por bem que
visse. Diz os efeitos com que a deixavam e o grande aproveitamento que ficava em sua alma.
CAPÍTULO 39. Prossegue na mesma matéria das grandes mercês que lhe tem feito o Senhor e
como lhe prometeu favorecer as pessoas por quem ela lhe pedisse. Diz algumas coisas assinalados
nas quais Sua Majestade lhe tem feito este favor.
CAPÍTULO 40. Prossegue na mesma matéria dizendo as grandes mercês que o Senhor lhe fez.
Dalgumas delas se pode tirar muito boa doutrina. Conforme tem dito, o seu principal intento, depois
de obedecer, tem sido de escrever as mercês que são para proveito das almas. Com este capítulo
acaba a narração que escreveu da sua vida. Seja para glória do Senhor.
J. H. S. Carta epílogo remetendo a «Vida».
JHS
1. Quisera eu que, tal como me mandaram e deram ampla licença para escrever o modo de oração e
as mercês que o Senhor me tem feito, ma dessem para, mui por miúdo e com clareza, dizer meus
grandes pecados e ruim vida. Dar-me-ia isso grande consolação. Mas não quiseram, antes me
ataram muito neste caso. E por isso peço, por amor de Deus, a quem ler este discurso da minha
vida, que tenha diante dos olhos que fui tão ruim, que não tenho encontrado santo - dos que se
voltaram para Deus com quem me consolar. Porque considero que, depois do Senhor os ter
chamado, não O tornavam a ofender. Eu não só tornava a ser pior, mas parecia estudar o modo de
resistir às mercês que Sua Majestade me fazia, como quem se visse obrigado a servir mais e
entendesse que não podia pagar o mínimo que devia.
2. Seja bendito para sempre, que tanto me esperou! E, com todo o meu coração, suplico me dê graça
para, com toda a clareza e verdade, fazer esta relação que meus confessores me mandam. Que o
Senhor a quer, sei-o eu há muitos dias, mas não me tenho atrevido; e que seja para glória e louvor
Seu e para que, de aqui em diante, conhecendo-me eles melhor, ajudem a minha fraqueza, para
poder servir algo do que devo ao Senhor, a Quem sempre louvem todas as coisas, amém.
CAPÍTULO 1. Trata como o Senhor lhe começou a despertar a alma para a virtude na sua
infância, e quanto a isto ajuda os pais serem virtuosos.
1. Ter pais virtuosos e tementes a Deus - se eu não fosse tão ruim - me bastaria, com o que o Senhor
me favorecia, para ser boa. Era meu pai afeiçoado a ler bons livros e assim os tinha em vernáculo
para que ,seus filhos os lessem. Isto, com o cuidado que minha mãe tinha em fazer-nos rezar e
sermos devotos de Nossa Senhora e de alguns Santos, fez-me despertar - segundo me parece - na
idade de seis ou sete anos. Ajudava-me o não ver em meus pais favor senão para a virtude. Tinham
muitas.
Era meu pai homem de muita caridade para com os pobres e de compaixão para com os enfermos.
Com os criados tinha tanta, que jamais se pôde conseguir que tivesse escravos, porque deles tinha
grande dó. Estando uma vez em sua casa uma de um seu irmão, a tratava como a seus filhos. Dizia
que, o não ser ela livre, não o sofria a sua compaixão. Era de grande verdade. Ninguém jamais o viu
jurar ou murmurar; era extraordinariamente honesto.
2. Minha mãe também tinha grandes virtudes é passou a vida com grandes enfermidades.
Grandíssima honestidade. Com ser de muita formosura, jamais deu ocasião a que se entendesse que
dela fazia caso porque, apesar de morrer aos trinta e três anos, já seu traje era como o de pessoa de
muita idade. Muito pacífica e de grande entendimento. Foram grandes os trabalhos por que passou
enquanto viveu. Morreu muito cristãmente.
3. Éramos três irmãs e nove irmãos. Por bondade de Deus, todos se pareceram com os pais, em ser
virtuosos, menos eu, embora fosse a mais querida de meu pai. E, antes que eu começasse a ofender
a Deus, parece que tinha alguma razão para isso; mas, quando me recordo das boas inclinações que
o Senhor me tinha dado, lastimo o mal que eu delas me soube aproveitar.
4. Meus irmãos em coisa alguma me desajudavam a servir a Deus. Tinha um, quase da minha idade,
que era aquele a quem eu mais queria, embora a todos tivesse grande amor e eles a mim.
Juntávamo-nos ambos a ler a vida dos santos. Como via os martírios que, por Deus, as santas
passavam, parecia-me comprarem muito barato o ir gozar de Deus e desejava muito morrer assim.
Não pelo amor, que eu entendesse ter-Lhe, senão para gozar, tão em breve, dos grandes bens que lia
haver no Céu. E tratava com este meu irmão do meio que haveria para isso. Combinamos ir a terra
de mouros, esmolando por amor de Deus, para que lá nos decapitassem; e parece-me que nos dava o
Senhor ânimo em tão tenra idade, se víssemos algum meio; mas o termos pais parecia-nos o maior
embaraço.
Espantava-nos muito, o dizer-se no que líamos, que a pena e a glória eram para sempre. Acontecianos
estar muito tempo tratando disto e gostávamos de dizer muitas vezes: para sempre, sempre,
sempre. Com o pronunciar isto muito devagar era o Senhor servido que nesta meninice me ficasse
impresso o caminho da verdade..
5. Quando vi ser impossível ir aonde me matassem por Deus, resolvemos fazer-nos eremitas; e,
numa horta que havia em casa, tentávamos, conforme podíamos, fazer ermidas, pondo umas
pedrazitas que logo nos caíam. E assim não achávamos remédio em nada para os nossos desejos;
faz-me agora devoção ver como Deus tão cedo me dava aquilo que eu depois perdi por minha culpa.
6. Dava esmola conforme podia; e podia pouco. Procurava solidão para rezar as minhas devoções
que eram muitas, em especial o Rosário, do qual a minha mãe era muito devota e assim nos fazia
sê-lo. Gostava muito, quando jogava com outras pequenas, de fazer mosteiros como se fôssemos
freiras; e parece-me que desejava sê-lo; embora não tanto como as outras coisas que já disse.
7. Recordo-me que, quando morreu minha mãe, fiquei da idade de doze anos, pouco menos.
Quando comecei a perceber o que tinha perdido, fui-me, aflita, a uma imagem de Nossa Senhora e
supliquei-Lhe, com muitas lágrimas, que fosse minha Mãe. Embora o fizesse com simplicidade,
parece-me que me tem valido; porque conhecidamente tenho encontrado esta Virgem soberana,
sempre que, me tenho encomendado a, Ela, e, enfim, tornou-me a Si.
Aflige-me agora ver e pensar o motivo de eu não ter ficado empenhada nos bons desejos com que
comecei.
8. Oh, Senhor meu! Pois parece determinastes que me salve, praza a Vossa Majestade que assim
seja. E, fazendo-me tantas mercês como me tendes feito, não teríeis tido por bem - não para meu
proveito mas por respeito Vosso - que se não sujasse tanto a pousada onde tão de contínuo havíeis
de morar?! Aflige-me, Senhor, até o dizer isto, pois sei que foi minha toda a culpa; porque não me
parece Vos tivesse ficado nada por fazer para que, desde esta idade, não fosse toda Vossa. Quando
vou queixar-me de meus pais, também não posso, porque em tudo não vi neles senão bem e cuidado
do meu bem.
Pois, passando desta idade em que comecei a entender as graças de natureza que o Senhor me dera -
que, segundo diziam, eram muitas - quando por elas Lhe havia de dar graças, de todas me comecei a
servir para O ofender, como agora direi.
CAPÍTULO 2. Diz como foi perdendo estas virtudes e quanto importa, na meninice, tratar com
pessoas virtuosas
1. Parece-me que começou a fazer-me muito dano o que agora direi. Considero algumas vezes o
mal que fazem os pais em não procurar que seus filhos vejam sempre - e de todas as maneiras -
coisas de virtude. Porque, com ter tanta a minha mãe, como disse, de bom não tomei muito, nem
quase nada - chegando ao uso da razão - e o mal causou-me muito dano. Era ela afeiçoada a livros
de cavalaria. Não tomou, no entanto, esse passatempo tão mal com eu, pois com isso não deixava o
trabalho; somente nos facilitava a sua leitura. E talvez o fizesse para não pensar nos grandes
trabalhos que tinha e ocupar seus filhos para que não andassem perdidos em outras coisas. Isto
pesava tanto a meu pai, que era preciso andar com cuidado para que não o visse. Comecei a ficar
com o costume de os ler; e aquela pequena falta que nela via fez resfriar os desejos em mim e faltar
no demais. Não me parecia mal o gastar muitas horas do dia e da noite em tão vão exercício,
embora às escondidas de meu pai. Era tão em excesso o que nisto me embebia que, se não tivesse
livro novo, não tinha - a meu parecer - contentamento.
2. Comecei a trazer galas e a desejar agradar, parecendo bem, a ter muito cuidado com as mãos e
cabelo, perfumes e todas as vaidades que nisto podia ter. E eram muitas, por ser muito requintada?
Não tinha má intenção, pois não quisera eu que alguém ofendesse a Deus por minha causa. Duroume
muitos anos este muito requinte no demasiado apuro e em coisas que me pareciam não ser
nenhum pecado. Agora vejo o mal que devia ser.
Tinha eu uns primos irmãos que tinham entrada em casa de meu pai, que outros não tinham essa
sorte, pois era muito recatado e prouvera a Deus que destes o fora também! Agora vejo o perigo que
há - na idade em que se hão de começar a criar virtudes - em tratar com pessoas que não conhecem
a vaidade do mundo, mas antes despertam para ele. Eram quase da minha idade, um pouco mais
velhos do que eu. Andávamos sempre juntos. Tinham-me grande amor e, em todas as coisas que
lhes dava gosto, eu entretinha conversa com eles. Ouvia os sucessos de suas aspirações e ninharias
nadinha boas; e o pior foi a alma abrir-se ao que foi causa de todo o seu mal.
3. Se eu houvesse de aconselhar, diria aos pais que, nesta idade, tivessem grande cuidado com
pessoas com quem seus filhos tratam. Daqui vem muito mal, porque o nosso natural mais tende para
o pior de que para o melhor.
Assim me aconteceu a mim; tinha uma irmã de muita mais idade do que eu, de cuja honestidade e
bondade - que tinha muita - eu nada apanhei, e tomei todo o mal de uma parente que freqüentava
muito a nossa casa. Era de modos tão levianos que minha mãe procurou muito evitar que tratasse
com os de casa. Parece que adivinhava o mal que por ela me havia de vir. Mas era tanta a ocasião
que havia para ter entrada que nada pôde. Ao trato desta, que digo, me afeiçoei. Com ela era a
minha conversação e práticas, porque me ajudava em todas as coisas de passatempo que eu queria e
até me metia nelas e dava parte das suas conversas e vaidades.
Até que tratei com ela (para ter amizade comigo e dar-me parte das suas coisas), que foi na idade de
catorze anos - creio, mesmo mais - não me parece ter deixado a Deus por culpa grave, nem ter
perdido o temor de Deus, embora o tivesse maior da honra. Este temor teve força para eu não a
perder de todo. Nem me parece que por coisa alguma do mundo eu nisto pudesse mudar... nem que
houvesse amor de pessoa que a isto me fizesse render. Assim tivesse eu tido fortaleza para não ir
contra a honra de Deus, tal como ma dava o meu natural, para não perder no que a mim me parecia
estar a honra do mundo! E não olhava a que a perdia por outras muitas vias. 4. Em querer esta
vãmente, tinha extremos. Dos meios que era mister para a guardar, não usava de nenhum; somente
tinha grande cuidado em não me perder de todo.
Meu pai e minha irmã sentiam muito esta amizade e dela me repreendiam muitas vezes. Como não
podiam tirar as razões que havia de ela entrar em casa, não lhes aproveitavam suas diligências. E
muita era a minha sagacidade para qualquer coisa má. Espanta-me, algumas vezes, o dano que faz
uma má companhia e, se eu não tivesse passado por isto, não o poderia crer; no tempo da mocidade,
em especial, deve ser maior o mal que causa. Quisera eu que os pais escarmentassem em mim, a fim
de olharem muito a isto. De tal maneira me mudou esta convivência que, do meu natural virtuoso,
não me ficou na alma quase nenhuma virtude. E parece-me que ela e outra que tinha os mesmos
passatempos, imprimiam em mim suas maneiras de ser.
5. Por aqui compreendo o grande proveito que causa a boa companhia e tenho por certo que, se
naquela idade tratasse com pessoas virtuosas, estaria inteira na virtude. Se então tivera tido quem
me ensinasse a temer a Deus, a alma iria tomando forças para não cair. Perdido este temor, ficou-me
depois só o da perda da honra. Este, em tudo quanto eu fazia; me trazia atormentada. Com o
pensamento que não se havia de saber, atrevia-me a muitas coisas bem contra ela e contra Deus.
6. A princípio causaram-me dano as ditas coisas segundo me parece. Mas a culpa não devia ser sua
senão minha. Porque depois bastou a minha malícia para o mal juntamente com o ter criadas, pois,
para todo o mal, encontrava nelas boa ajuda. Se alguma tivesse sido de bom conselho, porventura
me tivesse aproveitado; mas cegava-as o interesse e a mim a afeição. No entanto, nunca fui
inclinada a muito mal, porque coisas desonestas naturalmente as aborrecia, senão a passatempos de
boa conversação. Mas, posta na ocasião, estava à mão o perigo e punha nele o meu pai e irmãos. Do
qual me livrou Deus de modo que bem se vê que procurava - contra minha vontade - que eu não me
perdesse de todo, não foi isto, no entanto, tão em segredo que não tivesse havido de algum modo
quebra da minha honra e suspeitas de meu pai. Porque não andava, segundo me parece, há três
meses nessas vaidades, quando me levaram a um convento que havia naquele lugar onde se
educavam pessoas da minha condição, embora não tão ruins em costumes como eu. E isto foi feito
com tão grande dissimulação, que só eu e um parente o soubemos. Aguardaram para isso uma
ocasião a não parecer estranho: foi o ter-se casado minha irmã e ficar eu só, sem mãe, não parecia
bem.
7. Era tão demasiado o amor que meu pai me tinha e a minha muita dissimulação, que não acreditou
tanto mal de mim e assim não ficou desagradado comigo. Mas, como esse tempo foi de curta
duração, embora algo se tivesse percebido, com certeza, nada se devia ter dito. É que eu, como
temia tanto a perda da honra, punha todas as minhas diligências em que fosse secreto e não olhava a
que não o podia ser para Quem tudo vê.
Ó Deus meu, que dano causa ao mundo ter isto em pouca conta e pensar que pode haver coisa
secreta feita contra Vós! Tenho por certo que se evitariam grandes males se se pensasse não estar o
negócio em nos guardarmos dos homens, mas sim em não nos guardarmos de Vos descontentar.
8. Os primeiros oito dias senti-os muito, e mais pela suspeita de que se tivesse percebido a minha
vaidade do que por estar ali. Já andava cansada e não deixava de ter grande temor de Deus quando
O ofendia, e procurava logo confessar-me. Trazia-me isto tal desassossego que, ao fim de oito dias
e creio até menos, estava muito mais contente de que em casa de meu pai. Todas o estavam também
comigo, porque, nisto de dar gosto onde quer que estivesse, me dava o Senhor graça e assim era
muito querida. E ainda que eu me sentisse então inimissíssima de ser freira, folgava de as ver tão
boas, que o eram muito as, de aquela casa e de grande honestidade, religião e recato.
Mesmo com tudo isto, não deixava o demônio de me tentar, e procuravam os de fora desassossegarme
com recados. Mas, como a isso se não dava lugar, depressa acabou. Minha alma começou a
acostumar-se de novo ao bem da minha primeira infância, e vi a grande mercê que Deus faz àqueles
a quem põe em companhia dos bons. Parece-me que Sua Majestade andava a mirar e a remirar por
onde e como me podia fazer voltar a Si. Bendito sejais, Vós, Senhor, que tanto me haveis sofrido!
Amém.
9. Uma coisa havia que parece me podia ser de alguma desculpa - se eu não tivesse tantas culpas -;
é que tratava com quem me parecia que, por via de casamento, tudo podia acabarem bem. E,
informada por quem me confessava e outras pessoas, em muitas coisas me diziam não ir contra
Deus.
10. Dormia uma freira com as que estavam de seculares; por meio dela parece que o Senhor quis
começar a dar-me luz, como agora direi.
CAPÍTULO 3. Trata como uma boa companhia lhe serviu para despertar seus desejos e por que
modo o Senhor lhe começou a dar alguma luz sobre o engano que tinha trazido
1. Começando pois a gostar da boa e santa conversação desta freira, folgava de ouvir quão bem ela
falava de Deus, porque era muito discreta e santa. Isto, a meu parecer, em nenhum tempo deixei de
gostar. Começou-me a contar como veio a ser freira só por ter lido o que diz o Evangelho: «muitos
são os chamados e poucos os escolhidos». Dizia-me o prêmio que o Senhor dava aos que tudo
deixam por Ele.
Começou esta boa companhia a desterrar os costumes que a má tinha feito, a tornar a pôr no meu
pensamento desejos das coisas eternas e a tirar algo da grande repugnância que eu tinha em ser
freira, que se me tinha tornado grandíssima. E, se via alguma ter lágrimas quando rezava, ou outras
virtudes, tinha-lhe muita inveja. Era tão duro meu coração que, se lesse toda a Paixão, não chorava
uma lágrima; isto causava-me pena.
2. Estive neste Mosteiro ano e meio muito melhorada. Comecei a rezar muitas orações vocais e a
procurar que todas me encomendassem a Deus, para que me desse o estado em que O havia de
servir. Mas, no entanto, desejava não fosse o de freira. Este, não fosse Deus servido de mo dar,
embora também temesse o casar-me.
Ao cabo deste tempo - que estive aqui - já tinha mais afeição a ser freira, embora não naquela casa,
porque as coisas mais virtuosas, que depois entendi que tinham, me pareciam excessos demasiados.
E havia algumas, das mais moças, que a isto me ajudavam. Se todas fossem de um parecer, muito
meteria aproveitado. Tinha eu também uma grande amiga em um outro mosteiro. Isto era motivo
para eu não ser freira - caso o houvesse de ser - senão onde ela estava. Olhava mais ao gosto da
minha sensualidade e vaidade de que ao bem que me ia à alma. Estes bons pensamentos, de ser
freira, vinham-me algumas vezes e logo se afastavam e não podia persuadir-me a sê-lo.
3. A este tempo - embora eu não andasse descuidada de meu remédio andava o Senhor mais
empenhado em me dispor para o estado que melhor me ia. Deu-me uma grande enfermidade e tive
de voltar para casa de meu pai. Estando boa, levaram-me a casa de minha irmã - que residia numa
aldeia para a ver, pois era extremo o amor que me tinha e, por sua vontade, não sairia eu de ao pé
dela. Seu marido também gostava muito de mim; pelo menos, mostrava-me todo o seu agrado. Até
mais isto devo ao Senhor porque em toda a parte sempre o tenho sentido. E em tudo eu O servia
como quem sou.
4. Estava em caminho a casa dum irmão de meu pai, homem muito avisado e de grandes virtudes,
viúvo, a quem o Senhor também andava dispondo para Si. Na sua velhice deixou tudo o que tinha e
fez-se frade, e acabou de sorte que creio goza de Deus. Quis que eu estivesse com ele uns dias. Seu
exercício era ler bons livros em vernáculo e, habitualmente, o seu falar era de Deus e das vaidades
do mundo. Fazia-me ler-lhe esses livros e, embora não amiga deles, mostrava que sim; porque nisto
de dar contentamento a outros tenho tido cuidado, mesmo que me causasse pesar. E assim, o que
noutros fora virtude, em mim foi grande falta, porque era muitas vezes mui sem discrição.
Oh! valha-me Deus, por que meios me andava Sua Majestade dispondo para o estado em que Se
quis servir de mim! Sem o querer, forçou-me a eu me fazer força! Bendito seja para sempre. Amém.
5. Embora os dias que lá estive fossem poucos, com a força que faziam no meu coração as palavras
de Deus, tanto lidas como ouvidas, e a boa companhia, fui entendendo a verdade tal como em
pequena: que tudo era nada, a vaidade do mundo, como acaba em breve, e a temer, se tivesse
morrido, de ter ido para o inferno. E, embora a minha vontade não acabava de se inclinar a ser
freira, vi, no entanto, que era o melhor e mais seguro estado e assim, pouco a pouco, determinei-me
a forçar-me para o tomar.
6. Nesta batalha estive três meses, forçando-me a mim mesma com esta razão: os trabalhos e pena
de ser freira não podiam ser maiores que os do purgatório e eu bem havia merecido o inferno. Não
era, pois, muito passar o que ainda vivesse como num purgatório: depois iria direita ao Céu, que era
este o meu desejo.
Neste movimento de tomar estado, mais me movia - me parece - um temor servil que o amor.
Punha-me o demônio que não poderia sofrer os trabalhos da Religião por ser tão amimada. Disto
me defendia eu com os trabalhos que passou Cristo: não era muito que eu passasse alguns por Ele.
Ele me ajudaria a levá-los, devia eu pensar, pois, deste último ponto não me recordo. Passei grandes
tentações nestes dias.
7. Tinham-me dado - com calenturas - uns grandes desmaios. Sempre tive bem pouca saúde. Deume
vida o já ser amiga de bons livros. Lia as cartas de São Jerônimo, e estas animavam-me tanto
que determinei dizê-lo a meu pai. O que para mim era quase como vestir o hábito. Era tão
pundonorosa que não voltaria atrás, me parece, por coisa nenhuma tendo-o dito uma vez. Era tanto
o que ele me queria, que de nenhuma maneira o pude convencer, nem bastaram rogos de pessoas
que procurei lhe falassem. O mais que se pôde conseguir foi que, depois de acabados os seus dias,
fizesse o que quisesse. Eu já me temia a mim mesma e à minha fraqueza no voltar atrás, e assim não
me pareceu que isto me convinha e procurei por outra via, como agora direi.
CAPÍTULO 4. Diz como o Senhor a ajudou a convencer-se a si mesma para tomar Hábito e as
muitas enfermidades que Sua Majestade lhe começou a dar
1. Nestes dias em que andava com estas determinações havia persuadido a um irmão meu a que se
fizesse frade, falando-lhe da vaidade do mundo. E combinamos entre nós ir um dia, muito de
manhã, ao mosteiro onde estava aquela minha amiga a quem eu tinha muita afeição. Nesta minha
última determinação já eu estava decidida de modo que iria para qualquer convento onde pensasse
servir mais a Deus ou que meu pai quisesse. Mais olhava eu já ao remédio da minha alma, porque
do descanso nenhum caso fazia.
Recordo-me, e a meu parecer com toda a verdade, que quando saí de casa de meu pai foi tal a
aflição, que não creio será maior quando eu morrer. Parece que cada osso se me apartava de per si,
pois, como não tinha amor de Deus a contrabalançar o amor de pai e parentes, fazia-me tudo uma
força tão grande que, se o Senhor não me ajudasse, não teriam bastado as minhas considerações
para ir por diante. Aqui deu-me o Senhor ânimo contra mim, de maneira que o pus por obra.
2. Ao vestir o Hábito, logo o Senhor me deu a entender como favorece aos que se esforçam para O
servir. Isto ninguém apercebeu em mim, mas sim uma grandíssima vontade. Na altura deu-me um
tão grande contentamento de ter aquele estado, que nunca jamais me faltou até hoje. Deus mudou a
aridez da minha alma numa grandíssima ternura. Davam-me deleite todas as coisas da Religião. E
verdade é andar algumas vezes varrendo nas horas que costumava ocupar em meus regalos e
enfeites, e, lembrando-me que estava livre daquilo, me dava um novo gozo que me espantava e não
podia entender por onde me vinha.
Quando disto me lembro, não há coisa que se ponha diante de mim, por difícil que seja, que duvide
de a acometer. Já tenho experiência em muitas que, se de princípio me esforço a me determinar a
fazê-lo (sendo só por Deus), Ele quer -para mais merecermos - que a alma sinta aquele pavor até o
começar e quanto maior este, for, se se vai por diante, maior e mais saboroso o prêmio se torna
depois. Até mesmo nesta vida dá a paga Sua Majestade por vias que só.quem goza disso o entende.
Isto sei-o por experiência, como tenho dito, em muitas coisas difíceis; e assim, jamais aconselharia,
se fosse pessoa que tivesse de dar parecer que, quando uma boa inspiração nos bate à porta muitas
vezes, se deixe com medo de a pôr por obra. Se é desnudamente só por Deus, não há que temer
suceda mal, que poderoso Ele é para tudo. Seja bendito para sempre. Amém.
3. Bastavam, ó sumo Bem e descanso meu!, as mercês que me tendes feito até aqui, trazendo-me -
por tantos rodeios da Vossa piedade e grandeza - a estado tão seguro e casa onde havia muitas
servas de Deus, das quais eu pudera tomar exemplo para ir crescendo em Vosso serviço. Não sei
como hei-de passar daqui, quando me recordo o modo da minha profissão e a grande determinação
e contento com que a fiz e do desposório que fiz conVosco. Isto não o posso dizer sem lágrimas, e
haviam de ser de sangue e quebrar-se-me o coração, e não seria muito pesar para o que depois Vos
ofendi.
Parece-me agora que tinha razão em não querer tão grande dignidade, pois tão mal havia de usar
dela. Mas Vós, Senhor meu, quisestes ser - quase vinte anos em que usei mal desta mercê - o
agravado, para que eu fosse melhorada. Não parece, Deus meu, senão que prometi não guardar
coisa do que Vos havia prometido, embora não fosse essa então a minha intenção. Mas vejo depois
tais as minhas obras, que não sei que intenção tinha, a não ser para que mais se veja quem Vós sois,
Esposo meu, e quem eu sou. Pois é verdade muitas vezes temperar-se-me o pesar das minhas
grandes culpas com o contento que me dá o compreender-se a multidão das Vossas misericórdias.
4. Em quem, Senhor, podem elas assim resplandecer como em mim, que tanto obscureci, com
minhas más obras, as grandes mercês que me começastes a fazer? Ai de mim, Criador meu, que, se
quero dar desculpas, nenhuma tenho, nem tem ninguém a culpa senão eu! Porque se eu Vos pagara
algo do amor que me começastes a mostrar, não o pudera eu empregar em ninguém senão em Vós e
com isto se remediava tudo. Pois não o mereci, nem tive tanta ventura, valha-me agora, Senhor, a
Vossa misericórdia.
5. A mudança de vida e de manjares fez-me dano à saúde e embora o contentamento fosse muito,
não bastou. Começaram-se-me a aumentar os desmaios e deu-me um mal do coração tão
imensamente grande que causava espanto a quem o via, e outros muitos males juntos, e, assim,
passei o primeiro ano com muito má saúde, todavia parece-me não ofendi nele muito a Deus. E
como o mal era tão grave que me privava quase sempre dos sentidos - e algumas vezes de todo me
ficava sem eles - era grande a diligência que meu pai fazia para me buscar remédio. Como não lho
dessem os médicos de aqui, procurou levar-me a um lugar que tinha muita fama de se curarem ali
outras enfermidades e assim disseram fariam à minha. Foi comigo essa amiga de quem já falei e era
antiga na casa. No convento onde eu era freira não se prometia clausura.
6. Estive, quase um ano, por ali e padecendo durante três meses tão grandíssimos tormentos nas
curas tão violentas que me, fizeram, que não sei como as pude sofrer. Enfim, embora as sofresse,
não as pôde suportar o meu natural, como direi.
Havia de começar a cura no princípio do Verão e eu fui no princípio do Inverno. Todo este tempo
estive em casa da minha irmã que disse que vivia na aldeia, esperando o mês de Abril, porque
estava ali perto e para não andar a ir e vir.
7. Na ida, aquele meu tio que já disse estar em caminho, deu-me um livro: chama-se «Terceiro
Abecedário». Trata de ensinar oração de recolhimento. E, embora neste primeiro ano tivesse lido
bons livros (pois não quis mais usar de outros, porque já entendia o dano que me haviam feito), não
sabia como proceder na oração nem como recolher-me. Assim folguei muito com ele e determineime
a seguir aquele caminho com todas as minhas forças. Como já o Senhor me tinha dado o dom de
lágrimas e gostava de ler, comecei a ter esses momentos de solidão e a confessar-me amiúde e a
começar aquele caminho tendo aquele livro por mestre; porque eu não encontrei mestre - digo
confessor que me entendesse -, embora procurasse durante vinte anos, depois do que estou a dizer.
Isto fez-me muito dano e voltar muitas vezes atrás e até de todo me perder, porque, se o tivesse,
ajudar-me-ia a sair das ocasiões que tive de ofender a Deus.
Começou Sua Majestade a fazer-me muitas mercês nestes princípios. Foram quase nove meses os
que passei nesta solidão, embora não tão livre de ofender a Deus como o livro me dizia; mas sobre
isso passava eu, parecendo-me quase impossível tanta guarda. Tinha-a de não fazer pecado mortal e
prouvera a Deus a tivesse tido sempre. Dos veniais, fazia pouco caso e isto foi o que me arruinou.
Começou-me, pois, Sua Majestade a fazer tantas mercês nestes princípios e a regalar-me tanto por
este caminho que, ao fim do tempo de aqui estar, me fazia mercê de conceder-me oração de
quietude e algumas vezes chegava à de união, embora eu não entendesse o que era uma e outra e o
muito que era de apreciar, pois creio me fora grande bem entendê-lo. Verdade é que durava tão
pouco esta união que não sei se seria uma Ave-Maria; mas ficava com uns efeitos tão grandes que,
com não ter a este tempo vinte anos, me parecia trazer o mundo debaixo dos pés, e assim recordome
que me faziam pena os que o seguiam, embora fosse em coisas lícitas.
Procurava o mais que podia trazer a Jesus Cristo, nosso Bem e Senhor, presente dentro de mim e
este era o meu modo de oração: se pensava em algum passo, representava-O no interior, embora
gastasse mais tempo em ler bons livros, que era toda a minha recreação. É que Deus não me deu
talento para discorrer com o entendimento nem de me aproveitar da imaginação. Tenho-a tão
entorpecida que, até para pensar e representar trazer em mim - como procurava fazer - a
Humanidade do Senhor, não conseguia. E ainda que por esta via - de não poderem ajudar-se do
entendimento - as almas chegam mais depressa à contemplação se perseveram, é muito trabalhoso e
penoso. Se falta a ocupação da vontade e o amor ter coisa presente em que se ocupe, fica a alma
como sem arrimo nem exercício; causa grande pena a soledade e a aridez e dão grandíssimo
combate os pensamentos.
8. A pessoas que tenham esta disposição convém-lhes ter mais pureza de consciência que as que
podem obrar com o entendimento. Porque, quem discorre no que o mundo é, e no que deve a Deus,
e no muito que Ele sofreu e no pouco que O serve, e o que o Senhor dá a quem O ama, tira doutrina
para se defender dos pensamentos e das ocasiões e perigos. Mas, quem não se pode aproveitar disto,
tem maior perigo ou dificuldade e convém-lhe ocupar-se muito na leitura, pois que de sua parte não
pode tirar nenhuma idéia ou consideração.
Àqueles que procedem desta maneira, em lugar de oração mental que não podem ter, é-lhes
necessário ler, embora seja pouco o que lêem. E tão penosíssima é esta maneira de proceder que, se
o mestre que ensina insiste em que a oração seja sem leitura - o que ajuda muito a recolher a alma
em oração - e, sem esta ajuda, os fazem estar muito tempo na oração, digo que será impossível
permanecerem muito nela, e fará dano à saúde se se porfia, porque é coisa muito penosa.
9. Agora parece-me que o Senhor proveu a que não encontrasse quem me ensinasse, porque fora
impossível - segundo julgo - perseverar os dezoito anos que passei este trabalho e em todos eles
grandes aridezes, por não poder, como digo, discorrer. Em todos eles, a não ser acabando de
comungar, jamais ousei começar a ter oração sem um livro. Temia tanto minha alma estar sem ele
na oração, como se contra muita gente saísse a pelejar. Com esta ajuda - que era como que uma
companhia ou escudo em que aparava os golpes dos muitos pensamentos - andava consolada porque
a aridez não era o normal, mas, sempre que me faltava livro, logo se desbaratava a alma. E os
pensamentos, que andavam perdidos, com isto os começava eu a recolher e a levar a alma como de
um fôlego. Muitas vezes, em abrindo o livro, nada mais era preciso. Outras lia pouco, outras muito,
conforme a mercê que o Senhor me fazia.
Parecia-me a mim, nestes princípios que digo, que, tendo eu livros e com ter solidão, não havia
perigo que me arrancasse de tanto bem; e creio que - com a ajuda de Deus - fora assim, se tivesse
tido mestre ou pessoa que me avisasse de fugir das ocasiões nos princípios e me fizesse sair, com
brevidade, se nelas entrasse. E, se então o demônio me tivesse acometido a descoberto, julgo que,
de modo algum, eu voltaria a pecar gravemente. Mas foi tão subtil e eu tão ruim, que todas as
minhas determinações de pouco me aproveitaram, ainda que de muitíssima ajuda os dias que servi a
Deus, para poder sofrer as terríveis enfermidades que tive, com tão grande paciência como a que
Sua Majestade me deu.
10. Muitas vezes tenho pensado, espantada, na grande bondade de Deus e a minha alma tem-se
regalado de ver a Sua grande magnificência e misericórdia. Seja bendito por tudo! Tenho visto
claramente Ele não deixar sem paga, até mesmo nesta vida, nenhum desejo bom. Por ruins e
imperfeitas que fossem minhas obras, este Senhor meu as ia melhorando e aperfeiçoando e dando
valor. Os males e pecados logo os escondia. Até os olhos de quem as viu permite Sua Majestade
fiquem como que cegos e lhos tira da memória; doura as culpas; faz resplandecer uma virtude que o
mesmo Senhor põe em mim, fazendo-me quase força para que a tenha.
11. Quero voltar ao que me mandaram. Digo que, se houvesse de dizer por miúdo o modo como o
Senhor se havia comigo nestes princípios, fora mister outro entendimento - e não o meu - para saber
encarecer o que neste caso Lhe devo e a minha grande ingratidão e maldade, pois tudo isto olvidei.
Seja para sempre bendito, que tanto me tem suportado. Amém.
CAPÍTULO 5. Narra as grandes enfermidades que teve e a paciência que o Senhor lhe deu e como
dos males tirou bens, conforme se verá por uma coisa que lhe aconteceu neste lugar aonde se foi
curar
1. Esqueci-me de dizer como, no ano do noviciado, passei grandes desassossegos em coisas que em
si tinham pouco tomo. Culpavam-me sem ter culpa muitas vezes. Eu levava isto com muita pena e
imperfeição, embora com o grande contentamento que tinha de ser freira, por tudo passava. Como
me viam procurar solidão e chorar algumas vezes meus pecados, pensavam que era
descontentamento e assim o diziam.
Era afeiçoada a todas ás coisas de religião, mas não a sofrer nenhuma que parecesse menosprezo.
Gostava de ser estimada. Era primorosa em tudo quanto fazia. Tudo me parecia virtude, embora isto
não me seja desculpa, porque em tudo sabia procurar o que me contentasse e assim a ignorância não
tira a culpa. Alguma desculpa tinha, no entanto, em o mosteiro não estar fundado em muita
perfeição; eu, como ruim que era, ia àquilo em que via falta e deixava o bom.
2. Estava uma freira então enferma, com uma grandíssima e mui penosa enfermidade. Tinha umas
bocas no ventre - que se lhe tinham feito de opilações - por onde deitava o que comia. Morreu disto
em breve. Eu via todas temerem aquele mal; a mim, fazia-me grande inveja a sua paciência. Pedia a
Deus que, dando-ma assim a mim, me desse as enfermidades que fosse servido. Ao que me parece,
a nenhuma temia. Estava tão disposta a ganhar bens eternos, que por qualquer meio me determinava
a ganhá-los. E espanto-me porque - segundo julgo - ainda não tinha amor de Deus, como depois que
comecei a ter oração me parece que tenho tido. Era somente uma luz de me parecer de pouca estima
tudo o que se acaba, e de muito preço os bens que se podem ganhar com ele, pois são eternos.
Tão bem me ouviu nisto Sua Majestade que, antes de dois anos, estava de tal modo que, embora o
mal não fosse daquele gênero, creio não ter sido menos penoso e trabalhoso o que tive durante três
anos, como agora direi.
3. Chegado o tempo de me ir tratar - que estava aguardando naquele lugar onde disse estar com
minha irmã - levaram-me, com muito cuidado de meu descanso meu pai, minha irmã e aquela freira
minha amiga.
Aqui começou o demônio a desencaminhar a minha alma, embora Deus tirasse disso grande bem.
Havia uma pessoa da Igreja, que residia naquele lugar onde me fui curar, de muito boa qualidade e
entendimento; tinha letras, não muitas, no entanto. Comecei-me a confessar com ele, que sempre fui
amiga de letras, embora grande dano me fizeram à alma confessores meio letrados, porque não os
tinha de tão boas letras como quisera.
Tenho visto por experiência que é melhor - sendo virtuosos e de santos costumes - não ter
nenhumas; porque nem eles se fiam de si sem perguntar a quem as tenha boas, nem eu me fiara; e
bom letrado nunca me enganou. Estes outros tão pouco me deviam querer enganar, mas não sabiam
mais. Eu pensava que sim e que não era obrigada a mais, senão a acredita-los. E era coisa mais fácil
o que me diziam e de mais liberdade.
Se fora de mais rigor, eu sou tão ruim, que buscaria outros. O que era pecado venial, diziam não ser
nenhum; o que era gravíssimo mortal, que era venial. Isto me fez tanto dano que não é muito o diga
aqui para avisar outras de tão grande mal. Perante Deus bem vejo não me é desculpa, pois bastava
não serem as coisas boas de seu natural para que delas me guardasse. Creio permitiu Deus, por
meus pecados, que eles se enganassem e me enganassem a mim. Eu enganei a outras muitas só
dizendo-lhes o mesmo que a mim me tinham dito.
Permaneci nesta cegueira creio que mais de dezessete anos, até que um Padre dominicano, grande
letrado, e os da Companhia de Jesus me desenganaram em parte - agravando-me tão maus
princípios - de tudo me fizeram temer, como depois direi.
4. Começando pois a confessar-me com este que digo, ele se afeiçoou a mim em extremo. Então
tinha pouco que confessar para o que depois tive, nem tinha tido depois de freira. Não foi má a
afeição deste, mas, por ser imoderada, veio a não ser boa. Tinha compreendido de mim que, por
coisa alguma, eu me determinaria a fazer coisa contra Deus que fosse grave e ele também me
assegurava o mesmo, e assim era muita a conversação. Mas nos meus tratos - com o
embevecimento de Deus que eu trazia - o que então mais gosto me dava era tratar coisas d'Ele.
Como era tão criança, fazia-lhe confusão ver isto; e com a grande amizade que me tinha, começou a
declarar-me a sua perdição. E não era pouca, porque havia quase sete anos que estava em muito
perigoso estado com a afeição e trato com uma mulher daquele mesmo lugar. Com isto dizia Missa.
Era coisa tão pública, que trazia perdida a honra e a fama e ninguém ousava falar-lhe contra isto.
A mim fez-me muito dó porque lhe queria muito. Isto tinha eu de grande leviandade e cegueira;
parecia-me virtude o ser agradecida e ter amizade a quem me queria. Maldita seja tal amizade que
se estende até ir contra a de Deus! É um desatino que se usa no mundo, que me desatina. Todo o
bem que nos fazem devemo-lo a Deus e temos por virtude embora seja ir contra Ele - não
quebrantar uma tal amizade. Oh! cegueira do mundo! Tivésseis Vós sido servido, Senhor, que eu
fosse ingratíssima para com todo o mundo e para conVosco não o fosse num só ponto! Mas tem
sido tudo ao revés, por meus pecados.
5. Procurei saber mais e informar-me com pessoas de sua casa. E soube ser maior a perdição e vi
que o pobre não tinha tanta culpa. A desventurada da mulher tinha-lhe posto feitiços num idolozito
de cobre que lhe rogara trouxesse ao pescoço por amor dela e ninguém tinha sido poderoso para lho
tirar.
Eu não creio verdadeiramente que isto de feitiços seja realidade; mas direi isto que vi para aviso dos
homens, a fim de que se guardem de mulheres que querem ter este trato. E creiam, pois que a Deus
perdem a vergonha (elas mais que os homens são obrigadas a ter honestidade), que em nenhuma
coisa podem nelas ter confiança. A troco de levarem por diante a sua vontade e aquela afeição que o
demônio lhes põe, não olham a nada. Embora eu tenha sido tão ruim, em nenhuma coisa deste
gênero caí, nem jamais pretendi fazer mal nem quisera - ainda que pudesse - forçar vontades para
que me tivessem afeição, porque disto me guardou o Senhor. Se Ele me tivesse deixado, teria feito o
mal que fazia no demais, pois de mim nenhuma coisa há que fiar.
6. Pois, logo que soube isto, comecei a mostrar-lhe mais afeição. Minha intenção era boa, a obra
má; pois para fazer bem, por grande que fosse, não havia de fazer um pequeno mal. Tratava com ele
mui de ordinário de Deus. Isto devia-lhe ter aproveitado, embora mais creio fez ao caso o querer-me
muito. Para me dar prazer veio-me trazer aquele idolozito, que logo fiz deitar a um rio. Tirado este,
começou - como quem desperta de um grande sono - a ir-se lembrando de tudo o que havia feito
naqueles anos. Espantando-se de si, doendo-se da sua perdição, começou a aborrecê-la. Nossa
Senhora deve-o ter ajudado muito, pois era muito devoto da Sua Conceição e nesse dia fazia uma
grande festa. Enfim, deixou de todo de a ver e não se fartava de dar graças a Deus por ter-lhe dado
luz.
Ao cabo de um ano - desde o primeiro dia em que o vi - morreu. E tinha estado muito ao serviço de
Deus, porque aquela afeição grande que me tinha nunca entendi ser má, embora pudesse ter sido
com mais pureza. Mas também houve ocasiões em que, se não se tivesse tido a Deus muito
presente, teria havido ofensas contra Ele muito graves. Como já disse, coisa que eu entendesse ser
pecado mortal, não a fizera então. Parece que, ver isto em mim, o ajudava a ter-me amizade, pois
creio que todos os homens devem ser mais amigos de mulheres que vêem inclinadas à virtude; e
mesmo elas para o que aqui pretendem, devem ganhar mais com eles por este meio, segundo depois
direi.
Tenho por certo está em caminho de salvação. Morreu muito bem e muito livre daquela ocasião.
Parece que o Senhor quis que, por estes meios, se salvasse.
7. Estive naquele lugar três meses com grandíssimos trabalhos, porque a cura foi mais forte do que
o pedia a minha compleição. Aos dois meses, a poder de medicinas, tinha quase acabada a vida. O
rigor do mal de coração de que me fui a curar era muito mais forte. Parecia-me algumas vezes que
mo arrancavam com dentes agudos, tanto que se temeu fosse raiva. Com grande falta de forças -
porque nenhuma coisa podia tomar senão fosse bebida, pelo grande fastio - febre mui contínua,
muito gasta, porque quase um mês me deram uma purga todos os dias. Estava tão abrasada que se
me começaram a encolher os nervos com dores tão incomportáveis que nem de dia nem de noite
podia ter sossego algum. Uma tristeza muito profunda.
8. Com este ganho me voltou a trazer o meu pai aonde os médicos me voltaram a ver. Todos me
desenganaram, pois, sobre todo este mal, diziam que estava tísica. Disto pouco se me dava; as dores
é que me afligiam, porque eram em um ser desde os pés à cabeça; e as de nervos são intoleráveis,
segundo dizem os médicos. Como todos se me encolhiam, era de verdade forte tormento; não
tivesse eu, por minha culpa, perdido o mérito.
Nesta violência de dores não estaria mais de três meses; parecia impossível poder-se padecer tantos
males juntos. Agora me espanto e tenho por grande mercê do Senhor a paciência que Sua Majestade
me deu, que se via claramente vir d'Ele. Muito me aproveitou para isso o ter lido a história de Job
nos «Morales» de S. Gregório - parece que preveniu o Senhor com isto, e com o ter começado a
fazer oração - para o poder levar com tanta conformidade. Todas as minhas práticas eram com Ele;
trazia habitualmente estas palavras de Job no pensamento e as dizia: «Pois recebemos os bens da
mão do Senhor, porque não sofreremos os males?» Isto parece que me dava forças.
9. Chegou a festa de Nossa Senhora de Agosto. Desde Abril até então tinha sido o tormento, embora
mais nos três últimos meses. Dei pressa em confessar-me, que sempre fui muito amiga de me
confessar amiúde. Pensaram que era por medo de morrer e, para não me dar pena, meu pai não me
deixou. Oh! amor da carne demasiado, que, embora de pai tão católico e avisado - que o era muito e
não foi ignorância - me pudera fazer grande dano! Deu-me, naquela noite, um paroxismo que durou
quatro dias, pouco menos, ficando eu sem nenhum dos sentidos. Nele me deram o Sacramento da
Unção; a cada hora ou momento pensavam ver-me expirar e não faziam senão dizer-me o Credo,
como se alguma coisa entendesse. Por vezes tinham-me por tão morta que até cera encontrei depois
nos olhos.
10. A dor de meu pai era grande por não me ter deixado confessar: clamores e muitas orações a
Deus. Bendito seja Ele que as quis ouvir, pois, tendo dia e meio aberta a sepultura no meu mosteiro,
esperando ali o meu corpo, e feitas as exéquias em um convento dos nossos frades fora daqui, quis o
Senhor que eu voltasse a mim.
Logo quis confessar-me. Comunguei com muitas lágrimas. A meu parecer, não eram só de
sentimento e pena de ter ofendido a Deus. Isto bastaria para me salvar, mesmo se o engano, que eu
em mim trazia, dos que me tinham dito não serem algumas coisas pecado mortal - depois tenho
visto de certeza que o eram - não me aproveitasse. As dores com que fiquei eram incomportáveis; o
sentido pouco; no entanto - a meu parecer - a confissão foi inteira de tudo quanto compreendi ter
ofendido a Deus. Esta mercê metem feito Sua Majestade entre outras; nunca - depois que comecei a
comungar - deixei coisa por confessar que eu pensasse ser pecado, embora fosse venial. Contudo,
parece-me que assaz duvidosa ia a minha salvação, se eu então tivesse morrido... Isto, em parte, por
serem os confessores tão pouco letrados e, por outro lado, por eu ser tão ruim e por outras muitas
coisas.
11. Certo é o estar eu agora com tão grande espanto ao chegar aqui e vendo como parece me
ressuscitou o Senhor, que estou quase a tremer dentro de mim. Parece-me que fora bem, ó alma
minha, visses o perigo de que o Senhor te livrara e, já que por amor não deixavas de O ofender,
deixasses de o fazer por temor. Poderia matar-te em estado outras mil vezes mais perigoso. Julgo
não acrescento muitas no dizer: outras mil, embora me ralhe quem me mandou moderar no contar
meus pecados. E bem aformoseados vão.
Por amor de Deus lhe peço que, de minhas culpas não tire nada, pois se vê mais aqui a
magnificência de Deus e o que sofre a uma alma. Seja bendito para sempre. Praza a Sua Majestade
que me consuma antes que deixar jamais de O amar.
CAPÍTULO 6. Trata do muito que ficou a dever ao Senhor por lhe ter dado conformidade em tão
grandes trabalhos e como tomou por medianeiro e advogado ao glorioso São José e o muito que
lhe aproveitou
1. Fiquei, destes quatro dias de paroxismo, num estado que só o Senhor pode saber os
incomportáveis tormentos que sentia em mim: a língua feita em pedaços de mordida; a garganta, de
não ter passado nada e da grande fraqueza, sufocava-me, pois nem a água podia engolir; toda eu
parecia estar desconjuntada; com grandíssimo desatino na cabeça. Toda encolhida, feita um novelo
- que nisto parou o tormento daqueles dias sem me poder mexer, nem braço, nem pé, nem mão, nem
cabeça, mais do que se estivesse morta, se não me maneassem. Só um dedo me parece podia mexer
da mão direita. Chegarem-se a mim não havia como, porque tudo estava em tal lástima, que não o
podia suportar; num lençol, uma a uma ponta, e outra a outra, me meneavam.
Isto foi até à Páscoa florida. Só tinha que, se não se chegassem a mim, as dores cessavam muitas
vezes e, a troco de descansar um pouco, já me tinha por boa, pois temia de me vir a faltar a
paciência. Assim fiquei muito contente de me ver sem tão agudas e contínuas dores, embora, nos
grandes frios de quartãs dobradas - fortíssimas - com que fiquei, as tivesse incomportáveis. O fastio
era muito grande.
2. Dei-me logo tanta pressa em ir para o convento, que mesmo assim me fiz levar. A que esperavam
morta, receberam com alma, mas o corpo pior que morto, a causar pena vê-lo. O extremo de
fraqueza nem se pode dizer, que já só tinha ossos. Digo que o ficar assim durou-me mais de oito
meses; o estar tolhida, ainda que fosse melhorando, quase três anos. Quando comecei a andar de
gatas, louvava a Deus. Tudo sofri com grande conformidade e - a não ser nestes tempos - com
grande alegria; porque tudo se me fazia nada, comparado com as dores e os tormentos do princípio.
Estava muito conforme com a vontade de Deus, ainda mesmo que me deixasse sempre assim.
Parece-me que toda a minha ânsia de sarar era para estar a sós em oração - como me tinham
ensinado - porque na enfermaria não havia disposição para isso. Confessava-me muito amiúde;
tratava muito de Deus, de maneira que edificava a todas. Espantavam-se da paciência que o Senhor
me dava; porque, a não vir da mão de Sua Majestade, parecia impossível poder-se sofrer tantos
males com tanto contentamento.
3. Grande coisa foi Ele haver-me feito a mercê que me fizera na oração. Esta fazia-me entender que
coisa era amá-Lo. Só desse pouco tempo vi em mim novas virtudes, embora não fortes, pois não
bastaram para me sustentar no caminho da justiça. Não dizer mal de ninguém, por pouco que fosse,
antes o ordinário era em mim o desculpar toda a murmuração, porque trazia muito diante dos olhos
como não havia de dizer nem querer que dissessem de outra pessoa o que eu não quereria dissessem
de mim. Praticava isto com grande extremo nas ocasiões que para isso havia, embora não tão
perfeitamente que algumas vezes, quando mas davam grandes, não quebrantasse um pouco; mas de
ordinário era isto. Assim - às que estavam comigo e me tratavam - persuadi tanto disto que lhes
ficou de costume. E todas vieram a entender, que onde eu estivesse, seguras tinham as costas. E o
mesmo pensavam daquelas com quem eu tinha amizade e parentesco e que ensinava, ainda que
noutras coisas bem tenha que dar contas a Deus do mau exemplo que lhes dava.
Praza a Sua Majestade perdoar-me, que de muitos males fui causa, embora não com tão danosa
intenção como depois saía a obra.
4. Ficou-me o desejo da solidão; amiga de tratar e falar de Deus que, se eu encontrava com quem,
mais contento e recreação me dava que toda a delicadeza -ou grosseria, para melhor dizer - da
conversação do mundo. Comungar e confessar-me muito mais amiúde e desejá-lo; amicíssima de
ler bons livros; um grandíssimo arrependimento em ter ofendido a Deus que, muitas vezes me
recordo não ousava ter oração porque temia - como a um grande castigo - a grandíssima pena que
havia de sentir de O ter ofendido. Isto foi-me depois crescendo em tal extremo, que não sei a que
compare este tormento. E jamais foi -nem pouco nem muito - por temor; mas, como me lembrava
dos regalos que o Senhor me fazia na oração e o muito que Lhe devia e via quão mal Lho pagava,
não o podia sofrer. Enojava-me em extremo das muitas lágrimas que pela culpa chorava, quando via
a minha pouca emenda, pois nem bastavam determinações nem a mágoa em que me via, para não
voltar a cair quando me punha na ocasião. Pareciam-me ser lágrimas enganosas e parecia-me ser
depois maior a culpa, porque via a grande mercê que me fazia o Senhor em mas dar com tão grande
arrependimento. Procurava confessar-me dentre em breve e, a meu parecer, fazia da minha parte o
que podia para voltar a estar em graça.
Todo o mal vinha de eu não cortar pela raiz as ocasiões e nos confessores que pouco me ajudavam;
dizendo-me o perigo em que andava e a obrigação que tinha em não ter aqueles tratos, creio, sem
dúvida, que tudo se remediaria; porque de nenhum modo sofreria andar em pecado mortal um só
dia, se eu o entendesse.
Todos estes sinais de temor de Deus me vieram com a oração e o maior era o ir envolvido em amor,
porque não se me punha diante o castigo. Todo o tempo que estive tão mal me durou a muita guarda
de consciência quanto a pecados mortais. Oh! valha-me Deus; desejava saúde para mais O servir e
foi causa de todo o meu mal!
5. Pois, como me vi tão tolhida em tão pouca idade e no que haviam dado comigo os médicos da
terra, determinei-me a recorrer aos do Céu para que me sarassem, pois desejava a saúde, embora
sofresse com muita alegria a sua falta. Pensava algumas vezes que, se estando boa me havia de
condenar, melhor seria estar assim. Pensava, no entanto, que serviria muito mais a Deus com saúde.
Este é o nosso engano: não nos entregamos de todo ao que faz o Senhor, que melhor sabe o que nos
convém.
6. Comecei a fazer devoções de Missas e coisas muito aprovadas de orações, pois nunca fui amiga
doutras devoções que fazem algumas pessoas - em especial mulheres - com cerimónias que eu não
podia suportar e a elas lhes fazia devoção. Depois tem-se dado a entender não convirem; eram
superstições. Tomei por advogado e senhor ao glorioso São José e encomendei-me muito a ele. Vi
claramente que, tanto desta necessidade como de outras maiores de honra e perda de alma, este Pai
e Senhor meu me tirou com maior bem do que eu lhe sabia pedir. Não me recordo até agora de lhe
ter suplicado coisa que tenha deixado de fazer. É coisa de espantar as grandes mercês que Deus me
tem feito por meio deste bem-aventurado Santo e dos perigos de que me tem livrado, tanto no corpo
como na alma. A outros santos parece ter dado o Senhor graça para socorrerem numa necessidade;
deste glorioso Santo tenho experiência que socorre em todas. O Senhor nos quer dar a entender que,
assim como lhe foi sujeito na terra - pois como tinha nome de pai, embora sendo aio, O podia
mandar -, assim no Céu faz quanto Lhe pede.
Isto têm visto, por experiência, algumas outras pessoas, a quem eu dizia para se encomendarem a
ele. E assim há muitas que lhe são devotas, experimentando de novo esta verdade.
7. Procurava eu fazer a sua festa com toda a solenidade que podia, mais cheia de vaidade que de
espírito, querendo que se fizesse mui curiosamente e bem, embora com boa intenção. Mas isto tinha
de mal - se algum bem o Senhor me dava a graça de fazer-: era cheio de imperfeições e com muitas
faltas. Para o mal e curiosidade e vaidade tinha eu grande manha e diligência. Que o Senhor me
perdoe.
Quisera eu persuadir a todos a serem devotos deste glorioso Santo, pela grande experiência que
tenho dos bens que alcança de Deus. Não tenho conhecido pessoa que deveras lhe seja devota e lhe
presta particulares obséquios, que a não veja mais aproveitada na virtude; porque aproveita de
grande modo às almas que a ele se encomendam. Parece-me que há alguns anos que, cada ano no
seu dia, lhe peço uma coisa e sempre a vejo realizada; se a petição vai algo torcida ele a endireita
para maior bem meu.
8. Se eu fora pessoa que tivesse autoridade para escrever, de boa vontade me alongaria a dizer
muito por miúdo as mercês que este glorioso Santo metem feito a mim e a outras pessoas. Mas, para
não fazer mais do que me mandaram, em muitas coisas serei mais breve do que quisera. Em outras,
mais extensa do que era mister; enfim, como quem em todo o bem tem pouca discrição. Só peço,
por amor de Deus, que faça a prova quem não me acreditar e verá, por experiência, o grande bem
que é o encomendar-se a este glorioso Patriarca e ter-lhe devoção. Em especial, as pessoas de
oração sempre lhe haviam de ser afeiçoadas. É que não sei como se pode pensar na Rainha dos
Anjos - no tempo em que tanto passou com o Menino Jesus - sem que se dê graças a São José pelo
muito que então Os ajudou. Quem não encontrar mestre que lhe ensine oração, tome a este glorioso
Santo por mestre e não errará no caminho. Praza ao Senhor não haja eu errado em atrever-me a falar
dele; porque embora publique ser-lhe devota, no seu serviço e imitação sempre tenho falhado. Ele
procedeu como quem é, fazendo com que eu me pudesse levantar e andar e não ficasse tolhida, e eu,
como quem sou, usando mal desta mercê.
9. Quem diria que eu havia de cair tão depressa, depois de tantas mercês de Deus, depois de ter Sua
Divina Majestade começado a dar-me virtudes - que as mesmas me despertavam a servi-Lo - depois
de eu meter visto quase morta e em tão grande perigo de ser condenada, depois de me ter
ressuscitado alma e corpo, que todos os que me viam se espantavam de me ver viva! Que é isto,
Senhor meu? Em tão perigosa vida havemos de viver? Ao escrever isto parece-me que, com o
Vosso favor e por misericórdia Vossa, poderia dizer como São Paulo - embora não com essa
perfeição - já não vivo eu, senão que Vós, Criador meu, viveis em mim. Há alguns anos que,
segundo posso entender, me tendes da Vossa mão e me vejo com desejos e determinações, e de
algum modo tinha provado por experiência em muitas coisas de não fazer coisa contra a Vossa
vontade, por pequena que seja, ainda que deva fazer bastas ofensas a Vossa Divina Majestade, sem
o entender. Também me parece que não se me oferecerá coisa por Vosso amor que, com grande
determinação eu deixe de acometer; em algumas me tendes ajudado para as levar a cabo. Não quero
mundo nem coisa dele, nem me parece algo me contente afora de Vós; tudo o mais é para mim
pesada cruz. Bem me posso enganar e nada ter disto que digo, mas bem vedes, meu Senhor, que,
segundo posso entender, não minto. E estou tremendo - e com muita razão -que me torneis a deixar.
Já sei até que ponto chega a minha fortaleza e pouca virtude quando não ma estais sempre a dar e a
ajudar para que Vos não deixe. Praza à Vossa Divina Majestade que mesmo agora não esteja
apartada de Vós, parecendo-me, no entanto, tudo isto de mim. Não sei como queremos viver, pois é
tudo tão incerto! Parecia-me, Senhor meu, já impossível deixar-Vos tão de todo; mas, como tantas
vezes Vos deixei, não posso deixar de temer, porque, em apartando-Vos um pouco de mim, dava
com tudo em terra.
Bendito sejais para sempre, pois, embora eu Vos deixasse, Vós não me deixastes a mim tão de todo
que não me tornasse a levantar com o dares-me sempre a mão. E muitas vezes, Senhor, eu não a
queria, nem queria entender como tantas vezes me chamáveis de novo, como agora direi.
CAPÍTULO 7. Trata como foi perdendo as mercês que o Senhor lhe tinha feito e quão perdida vida
começou a ter. Diz os danos que há em não serem muito enclausurados os mosteiros de monjas
1. Comecei pois assim, de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasião em
ocasião, a meter-me tanto em mui grandes ocasiões e a andar a minha alma tão estragada em
vaidades, que já tinha vergonha, em tão particular amizade como é tratar de oração, de me tornar a
chegar a Deus. Ajudou a isto que, ao crescerem os pecados, me começou a faltar o gosto e regalo
nas coisas de virtude. Via eu muito claramente, Senhor meu, que isto me faltava a mim por eu Vos
faltar a Vós.
Este foi o maior engano que o demônio me podia fazer sob aparência de humildade: comecei a
temer fazer oração por me ver tão perdida; parecia-me melhor andar como os demais - pois no ser
ruim era dos piores e rezar o que estava obrigada e vocalmente e não ter oração mental e tanto trato
com Deus a que merecia estar com os demônios e enganava as gentes, porque, no exterior, tinha
boas aparências.
Assim, não é de culpar a casa onde estava, porque eu, com a minha manha, procurava que me
tivessem em boa opinião. Embora não com advertência, fingindo cristandade; porque nisto de
hipocrisia e vanglória, glória seja dada a Deus, jamais me recordo de O ter ofendido, ao que possa
entender. Em me vindo um primeiro movimento dava-me tanta pena, que o demônio se ia com
perda e eu ficava com lucro; e assim, nisto muito pouco metem tentado. Porventura se Deus
permitira que nisto me tentasse tão fortemente como em outras coisas, também cairia; mas Sua
Majestade até agora tem-me guardado, seja para sempre bendito, pois até me pesava muito o teremme
em boa opinião: bem sabia eu o que havia em mim.
2. Isto de não me terem por tão ruim, vinha de me verem tão moça e metida em tantas ocasiões e
apartar-me muitas vezes à solidão e rezar e ler, falar muito de Deus, ser amiga de fazer pintar Sua
imagem em muitas partes e de ter oratório e fazer com que nele houvesse coisas que fizessem
devoção; não dizer mal; e outras coisas deste teor que tinham aparência de virtude. E eu, de vã,
sabia-me estimar nas coisas a que no mundo se costuma ter estima. Com isto, davam-me tanta e até
mais liberdade que às muito antigas e tinham em mim grande segurança. Porque, tomar eu liberdade
e fazer coisa sem licença - digo falar por buracos ou muros, ou de noite -, julgo que nunca eu me
poderia resolver a fazê-lo num mosteiro, nem jamais o fiz, porque o Senhor me teve de Sua mão.
Parecia-me a mim que, com advertência e propósito, olhava a muitas coisas que, pôr a honra de
tantas em aventura por ser eu ruim, sendo elas boas, era muito mal feito, como se fosse bem outras
coisas que fazia. Em verdade, o mal não era tão consciente, como isto seria, ainda que fosse muito.
3. Por isto me parece que me fez grande dano o não estar em mosteiro enclausurado; porque a
liberdade que as boas podiam ter sem culpa (que a mais não eram obrigadas, pois não se prometia
clausura), a mim, que sou ruim, ter-me-ia decerto levado ao inferno, se com tantos remédios e
meios o Senhor, com muito particulares mercês, me não tivesse tirado deste perigo. E, assim, julgo
ser grandíssimo perigo mosteiro de mulheres com liberdade, e mais me parece passo para caminhar
ao inferno as que quiserem ser ruins, que remédio para suas fraquezas. Isto não se entende
respeitante ao meu, porque há nele tantas que servem muito deveras e com muita perfeição ao
Senhor, que Sua Majestade não pode deixar, por Sua bondade, de as favorecer e não é dos muito
abertos e nele se guarda toda a religião, senão de outros que sei e tenho visto.
4. Digo que me causa grande lástima o Senhor ter necessidade de fazer particulares chamamentos -
e não uma vez, senão muitas - para que se salvem, segundo aí estão autorizadas as honras e
recreações do mundo e tão mal entendido aquilo a que estão obrigadas. Praza a Deus não tenham
por virtude o que é pecado, como muitas vezes eu o fazia; e há tão grande dificuldade em fazê-lo
entender que é preciso que o Senhor ponha nisto muito deveras a Sua mão.
Se os pais tomassem meu conselho, dir-lhes-ia: já que não olham a pôr as suas filhas onde levam
caminho de salvação, mas em mais perigo que no mundo, olhem ao menos ao que toca à sua honra.
Antes as queiram casar mui baixamente, que metê-las em mosteiros semelhantes, se não são muito
bem inclinadas - e praza a Deus isto lhes aproveite -, ou as tenham em sua casa. Aí, se uma quer ser
ruim, não o poderá encobrir senão pouco tempo; aqui muito, muito, ainda que por fim o descubra o
Senhor, e não só dana a ela, senão a todas; e às vezes as pobrezitas não têm culpa, porque se vão
pelo que encontram. E é lástima que haja muitas que se querem apartar do mundo e, pensando que
vão servir ao Senhor e afastar dos perigos do mundo, se encontram em dez mundos juntos, que nem
sabem como se valer, nem remediar. A mocidade e sensualidade e demônio as convida e inclina a
seguir algumas coisas que são mesmo do mundo; vêem ali que o têm por bom, a modo de dizer.
Parece-me que, em parte, são como os desventurados hereges, que se querem cegar e dar a entender
que é bom aquilo que seguem e assim crêem sem o crer... É que dentro de si têm quem lhes diga
que é mal.
5. Oh! grandíssimo mal, grandíssimo mal o dos religiosos - falo agora tanto de mulheres como de
homens - que vivem onde se não guarda religião, onde, num mosteiro, há dois caminhos: de virtude
e religião e de falta de espírito de religião (e ambos quase se andam por igual...) Mas digo mal: não
por igual, pois por nossos pecados caminha-se mais no imperfeito e, como dele há mais seguidores,
é mais favorecido. Usa-se tão pouco o da verdadeira religião, que mais há de temer o frade e a
freira, que deveras querem começar a seguir totalmente a sua vocação, aos de sua mesma casa, do
que a todos os demônios; e mais cautela e dissimulação há de ter para falar da amizade que deseja
ter com Deus, que de outras amizades e afeições que o demônio ordena nesses mosteiros. Não sei
porque nos espantamos de que haja tantos males na Igreja; pois os que deviam ser exemplos de
virtude aonde todos as fossem haurir, têm tão apagado o labor que, com o seu espírito, os Santos
deixaram nas religiões.
Praza à Divina Majestade pôr remédio a isto como vê que é mister. Amém.
6. Comecei eu, pois, a ter estas conversações, não me parecendo - como via que se usavam - que
delas havia de vir à minha alma o dano e distração que depois entendi haver em semelhantes tratos.
Parecia-me que, coisa tão geral como é esta convivência em muitos mosteiros, não me faria a mim
mais mal de que a outras que eu via serem boas. Não olhava a que eram muito melhores e, o que
para mim era perigo, para outras não o seria tanto. Algum, duvido que deixe de o haver, embora não
seja mais que o do tempo mal gasto. Estando eu, pois, com uma pessoa - bem nos princípios de a
conhecer - o Senhor quis dar-me a entender que não me convinham aquelas amizades, e avisar-me e
iluminar-me em tão grande cegueira. Representou-se-me Cristo diante de mim com muito rigor
dando-me a entender o que aquilo Lhe pesava. Vi-O com os olhos da alma mais claramente de que
O poderia ver com os olhos do corpo e quedou-me tão impresso que isto foi há mais de vinte e seis
anos e me parece que o tenho presente. Fiquei muito espantada e perturbada e não queria voltar a
ver mais a pessoa com quem estava.
7. Fez-me muito dano não saber que era possível ver sem ser com os olhos do corpo. E o demônio
ajudou a que eu assim julgasse, dando-me a entender ser isso impossível; o que se me tinha
afigurado que podia ser o demônio, e outras coisas deste gênero, embora sempre me ficava um
parecer-me que era Deus e não imaginação. Mas, como não era a meu gosto, eu me fazia a mim
mesma desmentir. E, como não ousei tratar disto com ninguém e como depois voltaram a fazer-me
grande impertinência, assegurando-me não haver mal em ver semelhante pessoa, que nem perdia
honra, mas antes a ganhava, voltei à mesma conversação e até, em outras épocas, a outras, porque
foram muitos os anos em que tomei esta recreação pestilencial. A mim, no entanto, não me parecia -
como estava nela - tão má como isso, ainda que, às vezes, visse claramente não ser boa. Mas
nenhuma me causou distração como esta que digo, porque lhe tive muita afeição.
8. Estando eu outra vez com a mesma pessoa, vimos vir até nós - e outras pessoas que ali estavam
também o viram - uma coisa à maneira dum sapo grande, com muita mais ligeireza do que estes
costumam andar. Do lugar donde ele veio, não posso eu entender como pudesse haver semelhante
sevandija a meio do dia, nem nunca lá a tem havido. A impressão que em mim causou não me
parece sem mistério; e isto tão pouco se me olvidou! Oh! grandeza de Deus, e com quanto cuidado
e piedade me estáveis avisando, por todos os modos, e que pouco me aproveitou a mim!
9. Havia ali uma freira, minha parente, antiga e grande serva de Deus e de muita religião. Esta
também me avisava algumas vezes; e não só eu não a acreditava, mas desgostava-me com ela e
parecia-me que se escandalizava sem ter de quê.
Disse isto para que se entenda a minha maldade e a grande bondade de Deus e quão merecido tinha
eu o inferno com tão grande ingratidão; e também para que, se o Senhor ordenar e for servido que a
qualquer tempo leia isto alguma freira, se escarmente em mim. E a todas eu lhes peço, por amor de
Nosso Senhor, que fujam de semelhantes recreações. Praza a Sua Majestade se desengane por mim
alguma de quantas enganei, dizendo-lhes que não era mal e assegurando tão grande perigo com a
cegueira que trazia, que de propósito não as queria eu enganar. Pelo mau exemplo que lhes dei -
como disse - fui causa de grandes males, não pensando que fazia tanto mal.
10. Estando eu mal, nesses primeiros dias, antes que eu me soubesse valer por mim mesma, davamme
grandíssimos desejos de fazer bem a outros; tentação esta muito ordinária dos que começam,
embora a mim me sucedesse bem.
Como queria tanto a meu pai, desejava-lhe o bem que me parecia que teria com ter oração - pois a
meu ver nesta vida não o podia haver maior de que ter oração - e assim, por rodeios, conforme
pude, comecei a fazer com que a tivesse. Dei-lhe livros a propósito. Como era tão virtuoso, como já
ficou dito, assentou tão bem nele este exercício que, em cinco ou seis anos - julgo que seria - estava
tão adiantado que eu louvava muito ao Senhor e dava-me grandíssimo consolo. Foram muito
grandes os trabalhos que teve de muitas maneiras; e todos passou com muitíssima conformidade. Iame
ver muitas vezes, pois se consolava tratando coisas de Deus.
11. Já depois de eu andar tão distraída e sem ter oração, como via que ele pensava eu ser tal como
costumava, não o pude sofrer sem o desenganar.
É que estive mais de um ano sem ter oração, parecendo-me mais humildade. Esta foi, como depois
direi, a maior tentação que tive porque, por meio dela, eu acabar-me-ia de perder. Com a oração, se
um dia ofendia a Deus, outros voltava a recolher-me e a apartar-me mais da ocasião. Como o
bendito homem me vinha com isto, tornou-se-me duro vê-lo tão enganado, pensando que eu tratava
com Deus como costumava e disse-lhe que já não tinha oração, embora não dissesse a causa. Deilhe
as minhas enfermidades por desculpa, porque embora sarasse daquela tão grave, sempre até
agora as tenho tido e bem grandes e de muitas maneiras. De há tempos para cá, não com tanta força,
mas não me deixam. Em especial tive durante vinte anos vômitos pela manhã: até depois do meiodia
acontecia-me não poder desjejuar e algumas vezes até mais tarde. Depois que freqüento mais
amiúde a comunhão, é à noite, antes de me deitar que, com muito mais custo, o tenho de provocar
com uma pena ou outra coisa; porque se o não faço, é muito o mal que eu sinto. Quase nunca estou
- a meu parecer - sem muitas dores e algumas vezes bem fortes, em especial no coração; embora o
mal que me tomava muito de contínuo seja agora muito de longe a longe. Da forte paralisia e das
outras enfermidades de febres que costumava ter muitas vezes, encontro-me boa há oito anos.
Destes males dá-se-me já tão pouco que muitas vezes folgo, parecendo-me que em algo se serve o
Senhor.
12. E meu pai acreditou ser esta a causa, porque como ele não dizia mentira, julgou, conforme ao
que eu tratava com ele, que também eu não a havia de dizer. Disse-lhe, para que melhor o
acreditasse - pois bem via eu que para isto não havia desculpa -, que muito fazia já em poder rezar o
Ofício no coro. Embora tão pouco isto fosse causa bastante para deixar uma coisa para a qual não
são precisas forças corporais, mas só amar e o costume. E o Senhor dá sempre oportunidade quando
queremos.
Digo "sempre" porque, embora com as circunstâncias e até enfermidades, impeça algumas vezes
muitos momentos de solidão, não deixa de haver outros em que há saúde para isto. E na própria
enfermidade e ocasiões está a verdadeira oração -quando é alma que ama - no oferecer aquilo e
lembrar-se por Quem o sofre e conformar-se com isso e com mil coisas que se oferecem. Aqui
exercita o amor; pois não é forçoso que misericórdia para ele e que sempre O servíssemos, que
considerássemos que tudo acaba. Dizia-nos, com lágrimas, a pena grande que tinha de não O ter ele
servido, que quisera ser frade - digo, ter sido- e dos mais rigorosos que houvesse.
Tenho por certo que, quinze dias antes de morrer, lhe deu o Senhor a entender que não havia de
viver. Porque até aí, embora estivesse mal, não o pensava; depois, apesar de ter muitas melhoras e
de lho dizerem os médicos, nenhum caso fez disso. Só atendia em ordenar a sua alma.
16. Foi seu principal mal uma dor muito grande de costas, que jamais o deixava; algumas vezes era
tão intensa, que o afligia muito. Disse-lhe que, visto ser tão devoto de quando o Senhor levava a
cruz às costas, pensasse que Sua Majestade lhe queria dar a sentir alguma coisas do que Ele tinha
passado com aquela dor. Consolou-se tanto que, me parece, nunca mais o ouvi queixar-se.
Esteve três dias muito falho de tino; o dia que morreu lho tornou a dar o Senhor tão inteiro que nos
espantávamos, e teve-o até que, a meio Credo, dizendo-o ele mesmo, expirou. Ficou como um anjo;
que assim me parecia a mim que ele era - a modo de dizer - na alma e disposição, pois a tinha muito
boa.
Não sei para que disse isto senão para culpar mais minha ruim vida, depois de ter visto tal morte e
entender tal vida; para me parecer de algum modo com tal pai, a havia eu de melhorar. Dizia seu
confessor - que era dominicano, muito grande letrado - que não duvidava de que tivesse ido direito
ao Céu, porque havia alguns anos que o confessava e louvava sua pureza de consciência.
17. Este Padre dominicano que era muito bom e temeroso de Deus, foi-me de grande proveito.
Confessei-me com ele e tomou a peito o fazer bem à minha alma e dar-me a compreender a
perdição que trazia. Fazia-me comungar de quinze em quinze dias e, pouco a pouco, começando a
tratar com ele, falei da minha oração. Disse-me que não a deixasse; de qualquer modo, não me
podia causar senão proveito. Comecei a voltar a ela - embora não a afastar-me das ocasiões - e
nunca mais a deixei.
Passava uma vida trabalhosíssima, porque na oração entendia melhor minhas faltas. Por uma parte,
me chamava Deus; por outra, eu seguia o mundo. Davam-me grande contento todas as coisas de
Deus; traziam-me atada as do mundo. Parece que queria juntar estes dois contrários, tão inimigos
um do outro, como são vida espiritual e contentos e gostos e passatempos sensíveis: Na oração
passava grande trabalho, porque o espírito não era senhor, mas escravo; e assim não me podia
encerrar dentro de mim (que era todo o modo de proceder que eu levava na oração) sem encerrar
comigo mil vaidades.
Passei assim muitos anos, que agora me espanto como tive força bastante para o sofrer sem que
deixasse uma ou outra coisa. Bem sei que deixar a oração já não estava em minha mão, porque me
segurava nas Suas Aquele que me queria para me fazer maiores mercês.
18. Oh! Valha-me Deus, se eu houvesse de dizer as ocasiões das quais - nestes anos - Deus me
tirava, e como eu me tornava a meter nelas, e dos perigos de perder totalmente o crédito de que me
livrou! Eu, a fazer obras para descobrir o que era, e o Senhor a encobrir os males e a descobrir
alguma pequena virtude, se a tinha, e a fazê-la grande aos olhos de todos, de maneira que sempre
me tinham em muito. Porque, embora algumas vezes transluzissem as minhas vaidades, como viam
outras coisas que lhes pareciam boas, não o acreditavam.
Já tinha visto o Sabedor de todas as coisas ser assim mister, para que, depois, nas que tenho tratado
de Seu serviço, me dessem algum crédito; Sua soberana largueza, não atendia aos meus grandes
pecados, senão os desejos que muitas vezes tinha de O servir e a pena de não ter fortaleza em mim
para o pôr por obra.
19. Oh! Senhor da minha alma! Como poderei encarecer as mercês que nestes anos me fizestes? E
como, no tempo em que eu mais Vos ofendia, em breve me dispúnheis com grandíssimo
arrependimento para que gostasse Vossos regalos e mercês! Na verdade, escolhíeis, Rei meu, o
mais delicado e penoso castigo que para mim podia haver, como quem bem sabia o que me havia de
ser mais penoso; com grandes regalos castigáveis meus delitos.
E não creio dizer desatinos - embora seria bem que estivesse desatinada -voltando de novo agora à
memória a minha ingratidão e maldade.
Era tão mais penoso para meu modo de ser receber mercês quando tinha caído em graves culpas,
que receber castigos; uma só dessas mercês - parece-me podê-lo dizer com certeza - me desfazia e
confundia mais e fatigava de que muitas enfermidades com outros grandes trabalhos juntos. Porque
isto via eu que o merecia e parecia-me que pagava algo dos meus pecados (embora tudo era pouco,
porquanto eles eram muitos), mas ver-me a receber de novo mercês pagando tão mal as recebidas, é
um gênero de tormento para mim terrível, e creio que para todos os que tiverem algum
conhecimento ou amor de Deus, e isto até por um natural virtuoso o podemos inferir. Estas eram
minhas lágrimas e tristeza ao ver o que sentia, vendo que estava em vésperas de tornar a cair,
embora minhas determinações e desejos então - por aquele momento, digo - estivessem firmes.
20. Grande mal é uma alma achar-se sozinha entre tantos perigos. Parece-me a mim que, se eu
tivera tido com quem tratar tudo isto, ajudar-me-ia a não tornar a cair, sequer por vergonha, já que
não a tinha de Deus. Por isso aconselharia eu aos que têm oração - em especial ao princípio - que
procurem amizade e trato com outras pessoas que tratem do mesmo. É coisa importantíssima, ainda
que não seja senão ajudarem-se uns aos outros com suas orações, quanto mais que há muitos mais
lucros. E pois que nas conversações e amizades humanas, mesmo não sendo muito boas, se
procuram amigos com quem descansar e para mais gozar ao contar aqueles prazeres vãos, não sei
por que não se há de permitir a quem começar deveras a amar a Deus e a servi-Lo, o tratar com
algumas pessoas seus prazeres e trabalhos: que de tudo têm os que têm oração. Porque, se é
verdadeira a amizade que quer ter com Sua Majestade, não haja medo de vangloria; e quando o
primeiro movimento acometa, sai dele com mérito. Creio que, andando com esta intenção quem
tratar isto aproveitará a si e aos que o ouvirem; sairá mais ensinado; até sem saber como, ensinará a
seus amigos.
21. Quem tiver medo ter vanglória ao falar disto, também a terá de ouvir missa com devoção, se o
virem, e em fazer outras coisas que, sob pena de não ser cristão, não pode deixar de fazer por medo
de vanglória. Isto é tão importante para almas que não estão fortalecidas na virtude - por terem
tantos contrários e até amigos para os incitar ao mal -, que nem sei como o encarecer. Parece-me
que o demônio tem usado deste ardil como de coisa que mui lhe importa: que os bons se escondam
tanto para não dar a perceber que deveras querem e procuram amar e contentar a Deus; e tem
incitado a que se descubram outras amizades pouco honestas, tão em uso, que já parece que se toma
por gala e se publicam as ofensas que nestes casos se fazem a Deus.
22. Não sei se digo desatinos. Se o são, V. Mercê os rasgue, e se não o são, suplico-lhe que ajude a
minha ignorância, acrescentando aqui o muito que me falta. Andam as coisas do serviço de Deus já
tão fracas, que é mister guardarem-se as costas uns aos outros, os que O servem, para irem adiante,
segundo se tem por bom o andarem vaidades e contentos do mundo. Para estes, há poucos olhos.
Mas se um se começa a dar a Deus, há tantos que murmuram, que lhe é necessário buscar
companhia para se defender, até que já esteja forte e não lhe pese de padecer. E, se não, ver-se-á em
grandes apertos.
Penso que seria por isto que usavam alguns santos ir para os desertos. É um gênero de humildade o
não se fiar de si, mas crer que, em atenção àqueles com quem conversa, o ajudará Deus. Cresce a
caridade ao ser comunicado, e há mil bens que eu não ousaria dizer se não tivesse grande
experiência do muito que isto importa.
Verdade é que eu sou mais fraca e ruim que todos os nascidos; mas creio não perderá quem,
humilhando-se, embora seja forte, não se tenha a si mesmo por tal e creia nisto a quem tenha
experiência. De mim sei dizer que, se o Senhor não me descobrisse esta verdade e dado meios para
que eu muito de ordinário tratasse com pessoas que têm oração, caindo e levantando-me, eu iria a
dar direita ao inferno. Para cair havia muitos amigos que me ajudassem; para levantar-me achavame
tão só que agora me espanto como não estava sempre caída, e louvo a misericórdia de Deus. Era
só Ele que me dava a mão.
Seja bendito para sempre. Amém.
CAPÍTULO 8. Trata do grande bem que lhe fez não ter deixado de todo a oração para não perder
a alma, e quão excelente remédio é para ganhar o perdido. Persuade a que todos a tenham. Diz
como é grande ganho, embora a tornem a deixar por algum tempo.
1. Não sem motivo ponderei tanto este tempo da minha vida, pois bem vejo que não dará gosto a
ninguém ver coisa tão ruim. É certo que quisera eu se aborrecessem os que isto lessem, ao ver uma
alma tão pertinaz e ingrata para com Aquele que tantas mercês lhe tem feito; e quisera ter licença
para dizer as muitas vezes que neste tempo faltei a Deus.
2. Por não estar apoiada nesta forte coluna da oração, passei neste mar tempestuoso quase vinte
anos. Ora com estas quedas, ora com levantar-me e mal - pois tornava a cair - e em vida de
perfeição baixa, que nenhum caso fazia de pecados veniais; e dos mortais, embora os temesse, não
era como devia ser, pois não me apartava dos perigos. Sei dizer que é uma das vidas mais penosas
que me parece se pode imaginar; nem gozava de Deus, nem achava contentamento no mundo.
Quando estava nos contentamentos do mundo, lembrando-me do que devia a Deus, era com pesar;
quando estava com Deus, as afeições do mundo me desassossegavam. Isto é guerra tão penosa que
não sei como a pude sofrer um mês, quanto mais tantos anos.
No entanto, vejo claramente, a grande misericórdia que o Senhor me fez: já que havia de tratar com
o mundo, que tivesse ânimo para ter oração. Digo ânimo, porque não sei para que coisa, de quantas
há na terra, é preciso maior que para atraiçoar o rei, e saber que ele o sabe, e não se lhe tirar da
frente. Porque, embora sempre estejamos diante de Deus, parece-me a mim levará a porto de
salvação como, ao que agora parece, me levou a mim. Praza à Sua Majestade que eu não me volte a
perder.
5. O bem que possui quem se exercita na oração, há muitos santos e almas boas que o têm escrito -
digo - da oração mental. Glória seja dada a Deus por isso! E quando assim não fosse, embora eu
seja pouco humilde, não sou tão soberba que disto ousasse falar.
Daquilo que tenho experiência, posso dizer que, por males que faça quem começou a ter oração,
não a deixe, pois é o meio por onde pode tornar a emendar-se e, sem ela, será muito mais
dificultoso. E não o tente o demônio, do mesmo modo que a mim, de a deixar por humildade. Creia
que não podem faltar as palavras do Senhor, arrependendo-nos deveras e determinando-nos a não O
ofender, Ele volta à amizade que tinha e a fazer as mercês que antes fazia, e, às vezes, muito mais se
o arrependimento o merecer.
A quem ainda não a começou, por amor do Senhor lhe rogo, não careça de tanto bem. Não há aqui
que temer senão que desejar. Mesmo quando não for avante mas se esforçar a ser perfeito que
mereça os gostos e regalos que Deus dá a estes, pouco a pouco irá entendendo o caminho para o
Céu; e se persevera, espero eu na misericórdia de Deus, pois ninguém O tomou por amigo que não
lho pagasse. E outra coisa não é, a meu parecer, oração mental, senão tratar de amizade - estando
muitas vezes tratando a sós - com quem sabemos que nos ama. E se ainda O não amais (porque para
que seja verdadeiro o amor e para que dure a amizade hão de encontrar-se as condições: a do
Senhor já se sabe, não pode ter falta; a nossa é ser viciosa, sensual, ingrata), não podeis por vós
mesmas chegar a amá-Lo, porque não é da vossa condição; mas, vendo o muito que vos vai em ter a
Sua amizade e o muito que vos ama, passais por esta pena de estar muito com Quem é tão diferente
de vós.
6. Oh! bondade infinita do meu Deus, que me parece que Vos vejo e me vejo desta sorte! Oh!
regalo dos anjos, que toda eu, quando Vos vejo, me quereria desfazer em amar-Vos! Quão certo é
sofrerdes Vós a quem não sofre que Vós estejais com ele! Oh! que bom amigo sois, Senhor meu,
como o ides regalando e sofrendo e esperais que se afaça à Vossa condição e, entretanto, lhe sofreis
Vós a sua! Tomais em conta, meu Senhor, os momentos em que Vos quer, e com um ponto de
arrependimento olvidais o que Vos tem ofendido.
Tenho visto isto claramente por mim, e não vejo, Criador meu, por que todo o mundo não procura
achegar-se a Vós por meio desta particular amizade; os maus - que não são da Vossa condição -
para que os façais bons com o suportarem que Vós estejais com eles, sequer ao menos duas horas
cada dia, embora eles não estejam convosco senão com mil revoltas de cuidados e pensamentos do
mundo, como eu fazia. Por este esforço que fazem em querer estar em tão boa companhia, pois
vedes que de princípio não podem mais, nem depois algumas vezes, forçais Vós, Senhor, os
demônios para que não os acometam e cada dia tenham menos força para os tentar, e dais-lha a eles
para vencer. Sim, Vida de todas as vidas, que não matais a nenhum dos que se fiam de Vós e Vos
querem por amigo, mas lhes sustentais a vida do corpo com mais saúde e a dais à alma.
7. Não entendo isto de medo nos que temem começar a ter oração mental, nem sei porque o hão de
ter. Bem no-lo sabe meter o demônio para nos fazer mal de verdade, se com medos me faz não
pensar em que ofendi a Deus, no muito que Lhe devo, em que há inferno e há glória, e nos grandes
trabalhos e dores que passou por mim.
Esta foi toda a minha oração, quando andava nestes perigos. Nisto pensava quando podia; e muitas,
muitas vezes, durante alguns anos, tinha mais conta em desejar que se acabasse a hora que eu tinha
para mim determinado de ali estar e em escutar quando batia o relógio, do que em outras coisas
boas. Bastas vezes não sei que penitência grave se me poderia oferecer que eu não a fizesse de
melhor vontade que recolher-me a ter oração.
E certo é que era tão incomportável a força que o demônio me fazia ou o meu mau costume para
que não fosse à oração, e a tristeza que me dava em entrando no oratório que, para me forçar, era
preciso valer-me de todo o meu ânimo que dizem não é pequeno. E tem-se visto mo ter dado Deus
muito mais que de mulher (senão que o tenho empregado mal) e por fim, ajudava-me o Senhor.
Depois de eu me ter assim forçado, achava-me com mais quietude e regalo do que algumas vezes
que tinha desejo de rezar.
8. Pois se, a coisa tão ruim como eu, tanto tempo sofreu o Senhor-e vêse claramente que por aqui se
remediaram todos os meus males - que pessoa, por má que seja, poderá temer? Porque por muito
que o seja, não o será tantos anos depois de ter recebido tantas mercês do Senhor. E, quem poderá
desconfiar, se a mim tanto me suportou, só porque desejava e procurava algum lugar e tempo para
que estivesse comigo, e isto algumas vezes sem vontade, e só pela grande força que eu me fazia, ou
me fazia o mesmo Senhor? Pois, se aos que não O servem, mas O ofendem, lhes vai tão bem a
oração e lhes é tão necessária, e se ninguém pode com verdade encontrar dano que ela lhe possa
causar, que seja maior que o de não a ter, os que servem a Deus e O querem servir, porque a hão de
deixar? Por certo que, se não é para passar com mais trabalho os trabalhos da vida, eu não o posso
entender; ou então para cerrar a Deus a porta, a fim de que por ela não lhes dê contento. Em verdade
lhes tenho lástima, pois à sua custa servem a Deus. Aos que tratam de oração, o mesmo Senhor lhes
paga, pois, por um pouco de trabalho dá gosto para que com ele se passem os trabalhos.
9. Porque destes gostos que o Senhor dá aos que perseveram na oração muito se tratará mais
adiante, nada direi aqui; só digo que para estas mercês tão grandes que a mim me tem feito, a porta
é a oração. Fechada esta, não sei como as fará, porque, embora queira entrar a deleitar-se com uma
alma e cumulá-la de bens, não terá por onde, pois a quer só e limpa e com grande vontade de
receber Seus dons. Se Lhe pomos muitos tropeços e não fazemos nada para os tirar, como há de vir
a nós? E queremos que nos faça Deus grandes mercês!
10. Para que vejam Sua misericórdia e o grande bem que foi para mim não ter deixado a oração e
lição, direi aqui - pois importa tanto que isto se entenda - a bateria que faz o demônio a uma alma, a
fim de a ganhar, e o artifício e misericórdia com que o Senhor procura chamá-la de novo a Si, e se
guardem dos perigos de que não me guardei. E sobretudo, por amor de Nosso Senhor e pelo grande
amor com que nos anda atraindo para que voltemos a Ele, peço que se guardem das ocasiões; uma
vez metidas nelas, não há que fiar quando tantos inimigos nos combatem e tantas fraquezas há em
nós para nos defendermos.
11. Quisera eu saber descrever o cativeiro em que, nestes tempos, trazia a minha alma. Bem
entendia eu que estava cativa, mas não acabava de entenderem quê, nem podia de todo crer que
coisas que os confessores não me agravavam tanto, fossem tão más como eu o sentia na minha
alma. Disse-me um, indo eu a ele com escrúpulos, que embora tivesse subida contemplação, não
havia inconveniente em semelhantes ocasiões e tratos.
Isto era já lá para o fim, que eu já ia, com o favor de Deus, afastando-me mais dos grandes perigos,
mas sem fugir de todo da ocasião. Como me viam com bons desejos e ocupação de oração, parecialhes
que fazia muito; mas minha alma entendia que não era fazer aquilo a que estava obrigada por
Aquele a quem tanto devia. Lástima lhe tenho agora do muito que passou e do pouco socorro que
encontrou por toda a parte, a não ser de Deus, e da muita entrada que tinha para seus passatempos e
contentos com o dizerem-lhe que eram lícitos.
12. O tormento nos sermões não era pequeno. Era afeiçoadíssima a eles, de modo que, se via algum
pregar com espírito e bem, cobrava-lhe particular afeição, sem o procurar, que não sei quem ma
infundia. Quase nunca me parecia tão mau o sermão que não o ouvisse de boa vontade, embora no
dizer dos que o ouviam não pregasse bem. Se era bom, era para mim muito particular recreação.
De falar de Deus ou de ouvir falar d'Ele, quase nunca me cansava; e isto depois que comecei a ter
oração. Por um lado, tinha grande consolo nos sermões; por outro atormentavam-me, porque ali
compreendia eu que não era o que devia ser e, em grande parte, por culpa minha. Suplicava ao
Senhor que me ajudasse, mas, devia faltar - ao que agora me parece - o não pôr eu de todo a
confiança em Sua Majestade nem perder totalmente a que punha em mim. Buscava remédio, fazia
diligências; mas não devia compreender que tudo aproveita pouco se, perdida totalmente a
confiança em nós mesmos, não a pomos em Deus.
Desejava viver, pois bem entendia que não vivia, antes pelejava com uma sombra de morte e não
havia quem me desse vida nem a podia eu tomar. E Quem ma podia dar tinha razão de não me
socorrer, pois tantas vezes me havia chamado a Si e eu O havia deixado.
CAPÍTULO 9. Trata por que meios começou o Senhor a despertar a sua alma e a iluminá-la em
tão grandes trevas e a fortalecer a sua virtude para não O ofender.
1. Andava pois já a minha alma cansada e, embora quisesse, não a deixavam descansar os ruins
costumes que tinha. Aconteceu-me que, entrando eu um dia no oratório, vi uma imagem, que para
ali trouxeram a guardar; tinham-na ido buscar para certa festa que se fazia na casa. Era a de Cristo
muito chagado e tão devota que, ao pôr nela os olhos, toda eu me perturbei por O ver assim, porque
representava bem o que passou por nós. Foi tanto o que senti por tão mal Lhe ter agradecido aquelas
chagas, que o coração, me parece, se me partia e arrojei-me junto d' Ele com grandíssimo
derramamento de lágrimas, suplicando-Lhe me fortalecesse de uma vez para sempre para não O
ofender.
2. Eu era muito devota da gloriosa Madalena e muitas, muitas vezes, pensava na sua conversão, em
especial quando comungava. Como sabia de certeza que o Senhor estava ali dentro de mim, punhame
a Seus pés, parecendo-me que não eram de rejeitar as minhas lágrimas; nem mesmo sabia o que
dizia, que muito fazia Ele consentindo que eu as derramasse por Sua causa, pois tão depressa
olvidava aquele sentimento. Encomendava-me àquela gloriosa Santa para que me alcançasse
perdão.
3. Mas, esta última vez, desta imagem que digo, parece-me que me aproveitou mais, porque estava
já muito desconfiada de mim e punha toda a minha confiança em Deus? Penso que Lhe disse então
que não me levantaria dali até que fizesse o que Lhe suplicava. Creio certamente que me
aproveitou, porque fui melhorando muito desde então.
4. Tinha eu este modo de oração: como não podia discorrer com o entendimento, procurava
representar Cristo dentro de mim e sentia-me melhor -a meu parecer - nos passos onde O
encontrava mais só. Parecia-me que, estando só e aflito, como pessoa necessitada, me havia de
admitir a mim. Destas simplicidades tinha eu muitas.
Em especial achava-me muito bem na oração do Horto; ali era o fazer-Lhe eu companhia. Pensava
naquele suor e aflição que ali tinha tido. Se pudesse, desejaria limpar-Lhe aquele tão penoso suor,
mas recordo-me de que jamais ousava determinar-me a fazê-lo, pois se me representavam os meus
tão graves pecados. Ficava-me ali com Ele o mais que me permitiam meus pensamentos, porque
eram muitos os que me atormentavam. Muitos anos, a maior parte das noites, antes que
adormecesse, quando para dormir me encomendava a Deus, pensava sempre um pouco neste passo
da oração do Horto, ainda mesmo antes de ser freira, porque me disseram que se ganhavam muitos
perdões. Tenho para mim que assim ganhou muito a minha alma, porque comecei a ter oração sem
saber que coisa era e já o costume tão assente em mim me fazia não a deixar, bem como de me
persignar para dormir.
5. Voltando ao que dizia do tormento que me davam os pensamentos, este modo de proceder sem
discurso do entendimento tem isto: a alma há de estar ou com muito ganho ou perdida: digo perdida
por não poder considerar. Em aproveitando, aproveita muito, porque é em amar. Mas, para chegar
aqui, é muito à sua custa, salvo as pessoas a quem o Senhor quer muito em breve fazer chegar à
oração de quietude, e conheço algumas. Para as que vão por este caminho é bom ter um livro para
depressa se recolherem. Aproveitava-me também a mim, ver o campo, água ou flores. Nestas coisas
encontrava eu memória do Criador; digo que me despertavam e recolhiam e serviam de livro, tal
como pensar na minha ingratidão e pecados. Em coisas do Céu e em coisas sublimes, era meu
entendimento tão grosseiro, que nunca jamais as pude imaginar até que - por outro modo - o Senhor
mas representou.
6. Tinha tão pouca habilidade para representar coisas com o entendimento que, se não era o que via,
não me aproveitava nada da minha imaginação, como fazem outras pessoas que se podem servir
dela a fim de se recolherem. Eu só podia pensar em Cristo como homem; assim, jamais O pude
representar em mim por mais que lesse da Sua formosura e visse imagens. Era eu como quem está
cego ou às escuras que, embora falando com uma pessoa e sentindo que está com ela -porque sabe
de certeza que está ali, digo que percebe e crê que está ali - não a vê. Desta maneira me acontecia a
mim quando pensava em Nosso Senhor. Por esta razão, era eu tão amiga de imagens.
Desventurados os que, por sua culpa, perdem este bem! Até parece que não amam o Senhor,
porque, se O amassem, folgariam de ver Seu retrato, tal como nos dá contentamento ver o de uma
pessoa a quem se quer bem.
7. Por este tempo, deram-me as «Confissões» de Santo Agostinho. Parece que o Senhor assim o
ordenou, porque eu não as procurei nem nunca as tinha visto. Sou muito afeiçoada a Santo
Agostinho, porque o mosteiro onde estive de secular era da sua Ordem; e também por ter sido
pecador. Nos Santos que, depois de o terem sido, o Senhor voltou para Si, achava eu muito consolo,
parecendo-me que neles havia de encontrar ajuda; e assim como o Senhor lhes havia perdoado,
podia fazer a mim.
Uma coisa me desconsolava, como disse; a eles, o Senhor só uma vez havia chamado e não
voltavam a cair; a mim eram já tantas, que isto me afligia. Mas pensando no amor que me tinha,
tornava a animar-me, pois da Sua misericórdia jamais desconfiei; de mim, muitas vezes.
8: Oh! valha-me Deus, como me espanta a dureza da minha alma, apesar de ter tido tantas ajudas de
Deus! Faz-me andar temerosa ao ver o pouco que eu podia e quão atada me via para não me
determinar a dar-me de todo a Deus.
Quando comecei a ler as «Confissões» , parecia-me ver-me eu ali. Comecei a encomendar-me
muito a este glorioso Santo. Quando cheguei à sua conversão e li como ouviu aquela voz no jardim,
não me parecia senão que o Senhor me falava a mim; de tal modo o sentiu o meu coração. Estive
um grande bocado que toda me desfazia em lágrimas, e dentro de mim mesma com grande aflição e
fadiga.
Oh! o que sofre uma alma, valha-me Deus, por perder a liberdade que havia de ter de ser senhora, e
que tormentos padece! Eu me admiro agora como podia viverem tanto tormento. Seja Deus
louvado, que me deu vida para sair de morte tão mortal!
9. Parece-me que a minha alma ganhou tantas forças da Divina Majestade, que deve ter ouvido
meus clamores e ter tido dó de tantas lágrimas. Começou a crescer em mim a disposição de estar
mais tempo com Ele e a tirarem-se-me dos olhos as ocasiões; porque, uma vez afastadas estas, logo
voltava a amar Sua Majestade. Bem entendia eu, a meu ver, que O amava, mas não compreendia em
que consiste o amar deveras a Deus, como o devia entender.
Parece-me que não acabava eu de me dispor a querê-Lo servir, quando Sua Majestade começava a
tornar-me a mimosear. Não me parece senão que, o que os outros procuram com grande trabalho
adquirir, instava o Senhor comigo para que eu o quisesse receber, dando-me já, nestes últimos anos,
gostos e regalos. Suplicar eu que mos desse, ou ternura ou devoção, jamais a isso me atrevi; só Lhe
pedia que me desse graça para não O ofender e perdoasse meus grandes pecados. Como os via tão
grandes, nem sequer ousava advertidamente desejar regalos ou gostos. Muito, achava eu, fazia Sua
piedade; e na verdade fazia-me muita misericórdia consentindo-me diante de Si e trazendo-me à
Sua presença, pois bem via que, se Ele tanto o não procurasse, eu por mim não iria.
Só uma vez na minha vida me recordo de Lhe pedir gostos, estando com muita aridez e, como
adverti no que fazia, fiquei tão confusa, que a mesma pena de me ver tão pouco humilde, me deu o
que me atrevera a pedir. Bem sabia que me era lícito pedi-los, mas parecia-me sê-lo para os que
estão dispostos, tendo procurado com todas as suas forças o que é verdadeira devoção, ou seja, não
ofender, a Deus e estar prontos e determinados para todo o bem.
Achava que aquelas minhas lágrimas eram mulheris e sem força, pois não alcançava com elas o que
desejava. Contudo, creio que me valeram; porque, como digo, em especial depois destas duas vezes
de tão grande compunção, lágrimas e dor de meu coração, comecei a dar-me mais à oração e a tratar
menos de coisas que me fizessem mal; ainda que não as deixasse de todo - mas, como digo -, foi-me
ajudando Deus a desviar-me delas.
Como Sua Majestade não estava à espera senão de alguma disposição em mim, foram crescendo as
mercês espirituais da maneira que direi. Coisa não habitual é dá-las o Senhor, senão aos que estão
em mais pureza de consciência.
CAPÍTULO 10. Começa a declarar as mercês que o Senhor lhe fazia na oração. Como nos
podemos ajudar e o muito que importa que entendamos as mercês que o Senhor nos faz. Pede a
quem envia esta relação da sua vida que fique no segredo o que escrever daqui em diante, já que
lhe mandam declarar em pormenor as mercês que lhe faz o Senhor
1. Tinha eu algumas vezes, como já disse, embora com muita brevidade, o começo do que agora
direi. Acontecia-me, nesta representação que eu me fazia de me pôr ao pé de Cristo - da qual já falei
e até algumas vezes lendo, vir-me a desoras um tal sentimento da presença de Deus, que de
nenhuma maneira podia duvidar que estivesse dentro de mim e eu toda engolfada n'Ele.
Isto não era a modo de visão. Creio ser o que se chama mística teologia. Suspende a alma de
maneira que toda parece estar fora de si. Ama a vontade, a memória - segundo julgo - está quase
perdida, o entendimento não discorre, a meu parecer, mas não se perde; no entanto, como digo, não
trabalha, senão que está como que espantado do muito que alcança; porque quer Deus entenda, que
daquilo que Sua Majestade lhe representa, nenhuma coisa entende.
2. Primeiro tinha tido mui de contínuo uma ternura que, em parte, algo dela - ao que me parece - se
pode procurar. É um regalo que nem é de todo bem sensível, nem é bem espiritual. Tudo é dado por
Deus. Mas penso que para isto podemos contribuir muito, considerando nossa baixeza e a ingratidão
que temos para com Deus, o muito que fez por nós, Sua Paixão com tão graves dores, Sua vida tão
atormentada; e deleitando-nos de ver Suas obras, Sua grandeza, o quanto nos ama e outras muitas
coisas em que tropeça muitas vezes quem com cuidado quer aproveitar, embora não ande com
muita advertência. Se, a par disto, há algum amor, regala-se a alma, enternece-se o coração, vêm as
lágrimas. Algumas vezes parece que as arrancamos à força; outras que o Senhor no-las dá para não
podermos resistir. Parece que nos paga Sua Majestade aquele cuidadito com um dom tão grande
como é o consolo que dá a uma alma ver que chora por tão grande Senhor; e não me espanto, pois
lhe sobra razão de se consolar. Ali se regala, ali folga.
3. Parece-me bem esta comparação que agora se me oferece: estes gozos de oração são como os que
devem ter aqueles que estão no Céu, pois, como não vêem mais do que o Senhor - conforme ao que
merecem - quer que vejam e vêem seus poucos méritos, cada um está contente no lugar onde está. E
isto, apesar de haver tão grande diferença entre gozar e gozar no Céu, muito mais do que aqui há
duns gozos espirituais a outros, que é grandíssima.
E, verdadeiramente, uma alma, ainda no princípio, quando Deus lhe faz esta mercê, quase lhe
parece que já nada mais há a desejar e dá-se por bem paga de tudo quanto tem servido. E tem
sobrada razão: pois uma lágrima destas que, como digo, quase nos esforçamos por ter - embora sem
Deus não se faça coisa alguma -, parece-me a mim que nem com todos os trabalhos do mundo se
pode comprar, porque com elas se ganha muito. E que maior ganho que o de ter algum testemunho
de contentarmos a Deus?
Assim, quem aqui chegar, louve-O muito, reconheça-se por muito devedor, porque já parece que o
Senhor o quer para Sua casa e escolhido de Seu reino, se não volta atrás.
4. Não se preocupe dumas humildades que há - das quais penso tratar - que lhes parece humildade
não entender que o Senhor lhes vai dando dons. Compreendamos bem como isto é, que no-los dá
Deus sem nenhum merecimento nosso e agradeçamo-lo a Sua Majestade; porque, se não
conhecermos que recebemos, não nos estimulamos a amar. E é coisa muito certa que, quanto mais
nos virmos ricos, reconhecendo que somos pobres, mais proveito nos advirá, e até mesmo mais
verdadeira humildade. O resto é acobardar o ânimo e dar-lhe a entender que não é capaz de grandes
bens e, começando o Senhor a dar-lhos, começa-se a atemorizar com medo de vanglória.
Creiamos que, Quem nos dá os bens, nos dará graça para que, começando o demônio a tentar neste
ponto, o entendamos e nos fortaleça para resistir; digo, se andamos com lhaneza diante de Deus,
pretendendo contentá-Lo só a Ele e não aos homens.
5. É coisa muito sabida amarmos mais uma pessoa quando muito nos lembramos das boas obras que
nos faz. Pois, se é lícito e tão meritório, termos sempre na memória que de Deus temos o ser e que
nos criou do nada e nos sustenta e de todos os mais benefícios da Sua morte e trabalhos, que muito
antes de nos, criar já os tinha feito por cada um dos que agora vivem, por que não será lícito
reconhecer e ver e considerar muitas vezes que costumava falar em vaidades e agora me concedeu o
Senhor que não queira falar senão d'Ele? Eis aqui uma jóia que, lembrando-nos que é dada e que já
a possuímos, forçosamente convida a amar: este é o fruto da oração fundada na humildade.
Pois, que será quando virem em seu poder outras jóias mais preciosas, como têm já recebido alguns
servos de Deus de menosprezo do mundo e até de si mesmos? É claro que se hão de ter por mais
devedores e mais obrigados a servir e entender que não tinham nada disto e a reconhecer a
liberalidade do Senhor. A uma alma tão pobre e ruim e de nenhum merecimento como a minha, que
bastava a primeira destas jóias e sobrava para mim, quis dar-me mais riquezas do que eu pudera
desejar.
6. É mister haurir daqui forças de novo para servir e procurar não ser ingrato porque, com essa
condição, as dá o Senhor. Se não usamos bem do tesouro e do alto estado em que nos põe, Ele no-lo
tornará a tirar e ficaremos muito mais pobres; e Sua Majestade dará as jóias a quem com elas brilhe
e aproveite a si e aos outros.
Pois, como aproveitará e gastará com largueza quem não entende que está rico? É impossível -, a
meu parecer -, dada a nossa natureza, ter ânimo para grandes coisas quem não compreende que é
favorecido por Deus. É que somos tão miseráveis e tão inclinados às coisas da terra, que mal poderá
aborrecer, de fato, tudo o que é cá de baixo e com grande desapego, quem não entender que tem
algum penhor lá de cima. É com estes dons que o Senhor nos dá a fortaleza que perdemos com os
nossos pecados. E, como poderá desejar que todos se descontentem com ele e o aborreçam, e como
praticará todas as demais grandes virtudes que possuem os perfeitos quem não tiver alguma prova
do amor que Deus lhe tem, juntamente com uma fé viva? É tão falho de vida este nosso natural que
nos deixamos levar pelo que vemos presente; assim estes mesmos favores são os que despertam a fé
e a fortalecem. Bem pode ser que eu, como sou tão ruim, julgue por mim. Outros haverá que não
precisem mais que da verdade da fé para fazer obras muito perfeitas; mas eu, como miserável, de
tudo isto tenho precisado.
7. Estes, eles o dirão. Eu digo o que passou por mim, conforme me mandaram. Se não estiver bem,
rasgá-lo-á aquele a quem isto envio; melhor de que eu, saberá entender o que vai mal. A este
suplico, por amor do Senhor, que o que até aqui tenho dito da minha ruim vida e pecados, o
publique; desde já lhe dou licença, e a todos os meus confessores, que também o é aquele para
quem isto vai. E se quiserem, já em minha vida, para que não se engane mais o mundo, pois pensa
que há algum bem em mim. E certo certo, com verdade digo, pelo que agora entendo de mim: darme-
á grande consolo.
Para o que de aqui em diante disser, não a dou; nem quero, se a alguém o mostrarem, digam quem
é, por quem isto passou, nem quem o escreveu. Por isso não me nomeio, nem a ninguém; mas
escreverei tudo o melhor que puder para não ser conhecida. E isto, peço-o por amor de Deus.
Bastam pessoas tão letradas e graves para autorizar alguma coisa boa, se o Senhor me der graça
para a dizer, porque, se o for, será Sua e não minha; pois eu, nem tenho letras, nem boa vida, e não
sou ajudada por letrado nem por pessoa alguma. Só os que me mandaram escrever sabem que o
escrevo, e ao presente não estão aqui. É quase furtando o tempo e com pena, porque me estorva de
tecer, e estou em casa pobre e com muitas ocupações. Ainda assim, se o Senhor me tivesse dado
mais habilidade e memória, eu poder-me-ia aproveitar do que tenho ouvido ou lido, mas é
pouquíssima a que tenho. Se, pois, algo de bom eu disser, é que o Senhor o quererá para algum
bem; o que for mal será meu e V. Mercê o tirará.
Para uma e outra coisa nenhum proveito tem o dizer o meu nome. Em vida, está claro que se não há
de dizer o bem; depois de morta, não há para quê, a não ser para perder autoridade o bem e não se
lhe dar nenhum crédito, por ser dito de pessoa tão baixa e tão ruim.
8. E por pensar que V. Mercê fará isto por amor do Senhor lhe peço e os demais que o hão de ver,
escrevo com liberdade; de outro modo teria grande escrúpulo, menos de dizer meus pecados que,
para isto não tenho nenhum. No mais, basta ser mulher para me caírem as asas, quanto mais mulher
e ruim. E, assim, tudo o que for mais do que dizer simplesmente a história da minha vida, tome-o V.
Mercê só para si - pois tanto me tem importunado para que escreva alguma declaração das mercês
que Deus me faz na oração - se for conforme às verdades da nossa santa fé católica. E se não, V.
Mercê queime-o logo, que a isto me sujeito. Direi, pois, o que se passa em mim para que, sendo
conforme a isto, lhe possa ser de algum proveito e, se não for, desenganará a minha alma para que
não ganhe o demônio onde me parece que ganho eu. Bem sabe o Senhor, como depois direi, que
sempre tenho procurado buscar quem me ilumine.
9. Por mais claramente que eu queira dizer estas coisas de oração, será bem escuro para quem não
tiver experiência. Alguns impedimentos direi que, a meu entender, não deixam ir adiante neste
caminho, e outras coisas em que há perigo, e do que o Senhor me tem ensinado por experiência, e
que depois tratei com grandes letrados e pessoas espirituais de há muitos anos. E vêem que em só
vinte e sete anos - que há que tenho oração - e apesar de andarem tantos tropeços e tão mal este
caminho -, metem dado Sua Majestade a experiência como a outros em quarenta e sete e em trinta e
sete, que têm caminhado por ele com penitência e grande virtude.
Seja bendito por tudo e sirva-se de mim, por Quem é Sua Majestade, que bem sabe o meu Senhor
que não pretendo outra coisa nisto, senão que seja louvado e engrandecido um pouquito por se ver
que, em um muladar tão sujo e de mau odor, se fizesse horto de tão suaves flores. Praza a Sua
Majestade, que por minha culpa, não as torne eu a arrancar e volte a ser o que era. Isto peço, por
amor do Senhor, que o peça V. Mercê, pois sabe quem eu sou com mais clareza do que me deixou
aqui dizer.
CAPÍTULO 11. Diz a razão por que não se ama a Deus com perfeição em breve tempo. Começa a
declarar, por uma comparação, quatro graus de oração. Vai tratando aqui do primeiro. É muito
proveitoso para os que começam e para os que não têm gostos na oração
1. Falando agora dos que começam a ser servos do amor - porquanto não me parece outra coisa o
determinarmo-nos a seguir neste caminho da oração a Quem tanto nos amou - é uma dignidade tão
grande que me regalo estranhamente em pensar nela; porque o temor servil logo desaparece se,
neste primeiro estado, vamos como devemos ir. Oh! Senhor da minha alma e Bem meu! Por que
não quisestes que, em se determinando uma alma a amar-Vos fazendo quanto pode no deixar tudo
para melhor se empregar neste amor de Deus, ela logo gozasse ao subir à posse deste amor perfeito?
Disse mal: deveria ter dito e queixar-me por nós não querermos, pois toda a culpa é nossa de não se
gozar logo de tão grande dignidade. Pois, em se chegando a ter este verdadeiro amor de Deus com
perfeição, ele traz consigo todos os bens. Fazemo-nos, no entanto, tão difíceis e somos tão tardios
em nos darmos de todo a Deus que, como Sua Majestade não quer que gozemos de coisa tão
preciosa senão a grande preço, não acabamos de nos dispor.
2. Bem vejo que não há com que se possa comprar na terra tão grande bem; mas, se fizéssemos o
que podemos em não nos apegarmos às coisas dela, e todo o nosso cuidado e trato fosse no Céu,
creio sem dúvida que, muito em breve se nos daria este bem, se, em breve, de todo nos
dispuséssemos, como alguns santos o fizeram. Mas, parecendo-nos que damos tudo, oferecemos a
Deus a renda e os frutos e ficamo-nos com a raiz e a posse. Determinámo-nos a ser pobres - e é de
grande merecimento - mas muitas vezes tornamos a ter cuidados e fazemos diligência para não nos
faltar, não só o necessário, senão também o supérfluo, e em procurar amigos que no-los dêem. E
assim pomo-nos em maior cuidado e, porventura, perigo, para que nada nos falte do que antes
tínhamos em possuir a fazenda.
Parece também que renunciamos à honra de ser religiosos ou ao ter já começado a ter vida espiritual
e a seguir a perfeição, e não nos têm ainda tocado num ponto de honra, quando nos esquecemos que
já a demos a Deus e nos queremos tornar a adornar com ela e a tomar-lha - como dizem - das mãos.
E depois de O termos - de livre vontade, ao que parece - feito Senhor dela!... Assim é com todas as
outras coisas.
3. Estranha maneira de buscar amor de Deus! E logo o queremos às mãos cheias, como se costuma
dizer. Termos as nossas afeições, visto que não procuramos efetuar nossos desejos, nem acabamos
de os levantar da terra e, muitas consolações espirituais, não está bem nem me parece que se
coadune uma coisa com a outra. E assim, porque se não acaba de dar tudo junto, não se nos dá por
junto este tesouro. Praza ao Senhor que, gota a gota, no-lo dê Sua Majestade, embora seja custandonos
todos os trabalhos do mundo.
4. Muito grande misericórdia faz Ele a quem dá graça e ânimo para se' determinar a procurar este
bem com todas as forças, porque, quando se persevera, não se nega' Deus a ninguém. Pouco a
pouco vai habilitando o ânimo para que se saia com esta vitória. Digo ânimo, porque são tantas as
dificuldades que não comecem o demônio apresenta a princípio para que não comecem de fato este
caminho, como quem sabe o dano que daqui lhe vem, porque não só perde aquela alma senão
muitas. Se o que começa se esforça, com o favor de Deus, para chegar ao cume da perfeição, creio
que jamais vai sozinho ao Céu; sempre leva muita gente atrás de si; como a bom capitão, dá-lhe
Deus quem vá em sua companhia. Põe-lhe diante o demônio tantos perigos e dificuldades, que é
mister não pouco ânimo para não voltar atrás, senão mui muito e muito favor de Deus.
5. Falando, pois, dos primeiros tempos dos que já estão determinados a prosseguir este bem e a sairse
com esta empresa (que do resto, do que comecei a dizer de mística teologia - creio que se chama
assim - falarei mais adiante), é nestes primeiros tempos que têm o maior trabalho; porque são eles
os que trabalham, conquanto seja o Senhor a dar-lhes os meios para isso. Nos outros graus de
oração o mais é prazer, ainda que, primeiros, medianos e últimos, todos levem suas cruzes embora
diferentes. Por este caminho, por onde foi Cristo, hão de ir os que O seguem, se não se querem
perder; e bem-aventurados trabalhos que ainda cá nesta vida tão sobejamente se pagam.
6. Terei de me aproveitar de alguma comparação, embora as quisesse escusar por ser mulher e
escrever simplesmente o que me mandam; mas esta linguagem de espírito é tão má de declarar aos
que não têm letras, como eu, que terei de buscar algum meio e poderá ser que as mais vezes não
acerte com a comparação; servirá para dar recreação a V. Mercê ver tanta ignorância.
Parece-me agora ter lido ou ouvido esta comparação, que, como tenho má memória, nem sei onde
nem a que propósito; mas, para o meu, contenta-me agora. Há de fazer conta, quem principia, que
começa a plantar um horto em terra muito infrutífera, que, temi muito más ervas, para que nele se
deleite o Senhor. Sua Majestade arranca as más ervas e vai plantando as boas. Façamos pois de
conta que isto já está feito quando uma alma se determina a ter oração e já dela começou a usar.
Com a ajuda de Deus, devemos procurar, como bons hortelãos, que cresçam estas plantas e ter
cuidado de as regar para que se não percam, mas que venham a dar flores de grande olor, a fim de
recrear a este Senhor nosso e Ele venha deleitar-Se muitas vezes a este horto e a gozar entre estas
virtudes.
7. Pois vejamos agora de que maneira se pode regar, para que entendamos o que temos de fazer, o
trabalho que nos há de custar, se é maior que o ganho, e quanto tempo se há de ter.
Parece-me a mim que se pode regar de quatro maneiras: ou com tirar água dum poço, que é à custa
de grande trabalho; ou com nora e alcatruzes, em que se tira com um torno (tenho-a tirado assim
algumas vezes) e é com menos trabalho que este outro e tira-se mais água; ou de um rio ou arroio, e
com isto se rega muito melhor, pois fica mais farta a terra de água e não é preciso regar tão amiúde,
e é com muito menos trabalho do hortelão; ou com chover muito, que a rega o Senhor sem trabalho
nenhum nosso e é sem comparação muito melhor que tudo o que ficou dito.
8. Agora, pois, aplicar estas quatro maneiras de ter água, com que se há de sustentar este horto -
porque, sem ela, perder-se-á -, é o que a mim me faz ao caso. Pareceu-me poder assim declarar algo
de quatro graus de oração em que o Senhor, por Sua bondade, tem posto algumas vezes a minha
alma. Praza a Sua bondade eu atine a dizê-lo de maneira que aproveite a uma das pessoas que me
mandaram escrever. A esta tem-na o Senhor levado - em quatro meses - muito mais adiante do que
eu estava ao fim de dezessete anos. Tem-se disposto melhor e assim, sem trabalho seu, rega este
vergel com todas estas quatro águas; embora a última ainda não lhe seja dada senão a gotas; mas vai
de modo a depressa se engolfar nela, com a ajuda do Senhor. Gostarei que se ria; se lhe parecer
desatino a maneira de o declarar.
9. Dos que começam a ter oração, podemos dizer que são os que tiram água do poço. É muito à sua
custa, como tenho dito, porque se hão de cansar em recolher os sentidos e, como estão acostumados
a andar distraídos, é forte trabalho. Têm necessidade de se irem acostumando a não se lhes dar nada
de ver nem de ouvir, e até mesmo de o pôr por obra nas horas de oração, de estar em soledade e,
apartados de tudo, pensar na sua vida passada embora isto, no entanto, primeiros e últimos, todos o
hão de fazer muitas vezes; ainda que haja mais e menos neste pensar, como depois direi. Ao
princípio ainda lhes dá pesar, porque não acabam de perceber se se arrependem dos pecados; e,:
sim, que o fazem, pois se determinam a servir a Deus tão deveras. Hão de procurar pensar na vida
de Cristo e cansa-se nisto o entendimento.
Até aqui nós o podemos conseguir por nós mesmos, entende-se com o favor de Deus, pois sem ele
já se sabe que nem podemos ter um bom pensamento. Isto é começar a tirar água do poço, e praza
ainda a Deus que a haja! Ao menos não falta por nossa parte, pois a vamos tirar e fazemos o que
podemos para regar estas flores. E é Deus tão bom que, quando por motivos que Sua Majestade
sabe - e porventura para grande proveito nosso -, Ele quer que o poço esteja seco, mesmo sem água
sustenta as flores e faz crescer as virtudes, fazendo nós, como bons hortelãos, o que está em nossas
mãos. Chamo aqui água às lágrimas, e, embora não as haja, à ternura e ao sentimento interior de
devoção.
10. Que fará pois, aqui, quem vê durante muitos dias que não há mais que secura e desgosto e
dissabor, e sente tão má vontade para vir tirar água? Pois, tudo deixaria se não se lembrasse que dá
prazer e serve ao Senhor da horta, e não olhasse a não perder tudo quanto já serviu, e ainda ao que
espera ganhar com o grande trabalho que é deitar muitas vezes o balde ao poço e tirá-lo sem água?
E muitas vezes lhe acontecerá até nem para isto se lhe alçarem os braços, nem poder ter um bom
pensamento, porque este trabalhar com o entendimento - entendido está - é o tirar água do poço.
Pois, como digo, que fará aqui o hortelão? Alegrar-se e consolar-se e ter por grandíssima mercê o
trabalharem horto de tão grande Imperador. E visto saber que O contenta naquilo, e seu intento não
há de ser de contentar-se a si mesmo senão a Ele, louve-O muito; o Senhor tem nele confiança pois
vê que, sem pagar-lhe nada, tem tão grande cuidado do que lhe encomendou. Ajude-O a levar a cruz
e pense que toda a vida nela viveu. Não queira aqui seu reino, nem deixe jamais a oração; e assim
determine-se - embora esta aridez lhe dure toda a vida - a não deixar Cristo cair sob o peso da cruz.
Tempo virá em que se lhe pague tudo por junto. Não tenha medo de perder o trabalho. A bom amo
serve, para ele está olhando. Não faça caso de maus pensamentos; olhe que também os representava
o demônio a São Jerônimo no deserto.
11. Têm seu preço estes trabalhos, que, como quem os passou muitos anos, são grandíssimos,
quando tirava uma gota de água deste bendito poço pensava que me fazia Deus mercê. E parece-me
que para estes trabalhos é mister mais ânimo de que para outros muitos do mundo. Mas tenho visto
claramente que Deus não os deixa sem grande prêmio ainda nesta vida, pois é bem certo que, numa
só hora das que, desde então para cá, o Senhor de Si mesmo me tem dado a gostar, ficam - a meu
parecer - pagas todas as angústias que passei muito tempo para me manter em oração. Tenho para
mim que o Senhor quer dar muitas vezes no princípio, e outras vezes no fim, estes. tormentos e
outras muitas tentações que se oferecem, para experimentar a Seus amadores e saber se poderão
beber o cálice e ajudá-Lo a levar a cruz, antes de lhes confiar grandes tesouros. E para bem nosso,
creio, quer Sua Majestade levar-nos por aqui, para entendermos bem o pouco que somos. É que
depois as mercês são de tão grande dignidade, que antes que no-las dê, quer que - por experiência -
vejamos primeiro a nossa miséria, para que não nos aconteça como a Lúcifer.
12. Que fazeis Vós, Senhor meu, que não seja para maior bem da alma que entendeis já ser Vossa e
que sé põe em Vosso poder para seguir-Vos por onde fordes até à morte da cruz,24 e que está
determinada a ajudar-Vos a levá-la e a não Vos deixar só com ela?
Quem vir em si esta determinação, não, não tem que temer! Gente espiritual não tem de que se
afligir; postos já em tão alto grau, como é querer tratar a sós com Deus e deixar os passatempos do
mundo, o mais difícil está feito. Louvai por isto a Sua Majestade e confiai na Sua bondade, porque
nunca faltou a Seus amigos. Tapai os olhos para não pensar, porque dá devoção àquele em tão
poucos dias, e não a mim em tantos anos. Acreditemos que é tudo para maior bem nosso. Leve-nos
Sua Divina Majestade por onde quiser; já não somos nossos, senão Seus. Grande mercê nos faz em
querer que queiramos cavar no horto do qual é Senhor e permanecermos junto d'Ele que, de certeza,
está conosco. Se Ele quer que cresçam estas plantas e flores, a uns, com dar-lhes água que tiram
deste poço, a outros, sem ela, que se me dá a mim? Fazei, Senhor, o que quiserdes, não Vos ofenda
eu, não se percam as virtudes, se alguma já me destes, só por Vossa bondade. Padecer quero,
Senhor, pois Vós padecestes. Cumpra-se em mim de todas as maneiras a Vossa vontade e não praza
a Vossa Majestade que coisa de tanto preço, como Vosso amor, se dê a gente que Vos serve só por
gostos.
13. Há de-se notar muito - e digo-o porque o sei por experiência - que a alma que neste caminho
espiritual de oração mental começa a caminhar com determinação e pode por si mesma conseguir
não fazer muito caso, nem de se consolar nem desconsolar muito, quer lhe faltem estes gostos e
ternura, quer lhos dê o Senhor, tem já andado grande parte do caminho. Não tenha medo de voltar
atrás, por mais que tropece, porque o edifício vai começado em firme fundamento. Sim, não está o
amor de Deus em ter lágrimas nem nestes gostos e ternura, que na maior parte os desejamos e
consolamos com eles, mas sim em servi-Lo com justiça e fortaleza de ânimo e humildade. Mais me
parece isto receber, que darmos nós alguma coisa.
14. Para mulherzitas como eu; fracas e com pouca fortaleza, parece-me convir o que Deus agora faz
comigo: levar-me com regalos para que possa sofrer alguns trabalhos que Sua Majestade tem
querido dar-me. Mas que servos de Deus, homens de tomo, de letras, de entendimento, façam tanto
caso como vejo fazer, de que Deus não lhes dá devoção sensível, dá-me desgosto ouvir. Não digo
que não a tomem, se Deus lha der, e a tenham em muito, porque então terá Sua Majestade visto que
convém; mas, quando a não tiverem, não se aflijam e entendam que não é necessária, pois Sua
Majestade não a dá, e andem senhores de si. Creiam que é falta; eu o tenho experimentado e visto.
Creiam que é imperfeição e não andar com liberdade de espírito, senão fracos para acometidas.
15. Isto não o digo tanto para os que começam, (embora faça tanto finca - pé nisto, porque lhes
importa muito começar com esta liberdade e determinação), mas para outros; pois haverá muitos, e
há realmente, que começaram e nunca mais acabam. E creio ter nisto grande parte este não abraçar
a cruz desde o princípio, e andarão aflitos parecendo-lhes que não fazem nada! Em deixando de
obrar o entendimento, não o podem sofrer e, porventura, é então que medra a vontade e cobra forças
e eles não o entendem.
Temos de pensar que o Senhor não olha a estas coisas, que embora a nós nos pareçam faltas, não o
são. Sua Majestade conhece a nossa miséria e baixo natural bem melhor do que nós mesmos, e sabe
que estas almas já desejam pensar n'Ele e ama-Lo sempre. Esta determinação é o que Ele quer; esta
outra aflição, que nos damos a nós mesmos, não serve senão para inquietar a alma e, se havia de
estar incapaz de aproveitar durante uma hora, esteja quatro. Porque, muitas vezes nasce da
indisposição corporal. Tenho grandíssima experiência disto e sei que é verdade, porque o tenho
observado com cuidado e tratado depois com pessoas espirituais. Somos tão miseráveis que, a
encarceradita desta pobre alma participa das misérias do corpo. As mudanças do tempo e a
variabilidade de humores muitas vezes fazem que, sem culpa sua, não possa fazer o que quer, mas
que padeça de todas as maneiras. E quanto mais a quiserem então forçar, pior é e mais dura o mal;
haja, pois, discrição para ver quando assim é e não afoguem a pobre. Entendam que são enfermos;
mude-se a hora da oração e muitas vezes será alguns dias. Passem como puderem este desterro, que
farta má ventura é a de uma alma que ama a Deus, ver que vive nesta miséria e que não pode o que
quer, por ter a tão mau hóspede, como é este corpo.
16. Disse "com discrição", porque algumas vezes o demônio fará isto; e assim é bom nem sempre
deixar a oração, quando há grande distração e perturbação no entendimento; nem sempre atormentar
a alma obrigando-a ao que não pode.
Há outras ocupações exteriores, de obras de caridade e de leitura; mas às vezes nem mesmo para
isto estará. Sirva então ao corpo por amor de Deus, para que ele sirva outras muitas vezes a alma; e
tome alguns passatempos santos de conversação - que o sejam - ou ir passear ao campo, conforme
aconselhar o confessor. Em tudo é grande coisa a experiência, pois dá a entender o que nos convém
e em tudo se se serve a Deus. Suave é Seu jugo e é grande negócio não levar a alma arrastada, como
se diz, mas com suavidade, para seu maior aproveitamento.
17. Assim, torno a avisar - e ainda que o diga muitas vezes nada se perde com isso - pois importa
muito: de securas, de inquietação e distração dos pensamentos, ninguém se deprima nem aflija. Se
quer ganhar liberdade de espírito e não andar sempre atribulado, comece por não se espantar com a
cruz e verá como o Senhor também lha ajuda a levar, e o contento com que anda e o proveito que
tira de tudo. Porque já se vê que, se do poço não mana água, nós não lha podemos pôr. Verdade é
que não havemos de ficar descuidados para a tirar, quando a haja; porque então já Deus quer, por
este meio, multiplicar as virtudes.
CAPÍTULO 12. Prossegue no assunto deste primeiro grau de oração. Diz até onde podemos
chegar, com o favor de Deus, e o dano que há em querer elevar o espírito a coisas sobrenaturais,
até que o Senhor o faça.
1. O que pretendi dar a entender no capítulo anterior - embora me tenha desviado muito em outras
coisas, por me parecerem muito necessárias - foi dizer o que podemos por nós mesmos adquirir e
como, nesta primeira devoção, nos podemos em certo modo ajudar a nós mesmos. É que, pensar e
esquadrinhar o que o Senhor passou por nós, move-nos à compaixão e é saborosa esta pena e as
lágrimas que daqui procedem. Pensar na glória que esperamos e no amor que o Senhor nos teve e
'na Sua ressurreição, infunde em nós um gozo que nem é de todo espiritual nem sensível, mas sim
gozo virtuoso, e pena muito meritória.
Desta maneira são todas as coisas que causam devoção adquirida, em parte, com o entendimento,
que esta não se pode merecer nem ganhar se Deus a não dá. Convém muito a uma alma a quem o
Senhor não fez subir mais do que até aqui, não procurar fazê-lo subir mais acima por si mesma: e
note-se isto muito porque não lhe aproveitará senão para perder.
2. Pode neste estado fazer muitos atos para se determinar a trabalhar muito por Deus e despertar o
amor; assim como para ajudar a crescer as virtudes, conforme diz um livro chamado «Arte de servir
a Deus», que é muito bom e apropriado para os que estão neste grau, porque trabalha o
entendimento. Pode representar-se que está diante de Cristo e acostumar-se a enamorar-se muito da
Sua Sagrada Humanidade, trazendo-O sempre consigo. E fale com Ele. É pedir-Lhe ajuda para as
necessidades e queixar-se-Lhe dos trabalhos. É alegrar-se com Ele nos contentos e não O olvidar
por eles. Isto sem procurar orações compostas, mas palavras conforme aos seus desejos e
necessidade.
É excelente maneira de aproveitar e muito em breve. Quem trabalhar em trazer consigo esta
preciosa companhia e se aproveitar muito dela e deveras cobrar amor a este Senhor, a Quem tanto
devemos, eu o dou por aproveitado.
3. Para isto não se nos há de dar nada de não ter devoção sensível, como tenho dito,' mas sim
agradecer ao Senhor que nos deixa andar desejosos de O contentar, embora sejam fracas as obras.
Este modo de trazer a Cristo conosco aproveita em todos os estados e é um meio seguríssimo para ir
aproveitando no primeiro e chegar em breve ao segundo grau de oração e, nos últimos, andar
seguros contra os perigos que o demônio pode armar.
4. Pois isto é o que podemos. Quem quiser passar daqui e levantar o espírito a sentir gostos que, lhe
não são dados, perde uma e outra coisa, a meu parecer, porque é coisa sobrenatural; e perdida a
ajuda do entendimento, fica a alma deserta e com muita aridez. E como este edifício vai todo
fundado em humildade, quanto mais chegados a Deus, mais adiante há de ir esta virtude e, se assim
são for, vai tudo perdido. E parece algum gênero de soberba querermos subir a mais, pois Deus já
faz demasiado, segundo o que somos, em nos achegar a Si.
Não se há de entender com isto que o digo do subir - com o pensamento - a pensar coisas altas do
Céu e das grandezas que lá há ou de Deus, e Sua grande sabedoria. Embora eu nunca o fizesse, que
para isso não tinha habilidade, como já tenho dito, Deus fazia-me mercê de que entendesse esta
verdade - pois eu achava-me tão ruim - que até para pensar coisas da terra, não era pouco
atrevimento, quanto mais as do Céu. Outras pessoas se aproveitarão, em especial se têm letras, que
é, a meu parecer, um grande tesouro para este exercício, se forem com humildade. Há uns dias para
cá o tenho visto por alguns letrados que há pouco começaram e têm aproveitado mui muito. Isto
faz-me ter grandes ânsias de que muitos sejam espirituais, como adiante direi.
5. Pois, isto que digo - que não subam sem que Deus os faça subir - é linguagem de espírito;
entender-me-á quem tiver alguma experiência - que eu não o sei dizer - se, tal como o digo, não se
entende. Na mística teologia de que comecei a falar, deixa de trabalhar o entendimento porque Deus
o suspende, como depois mais hei-de declarar, se o souber e Ele me der para isto o Seu favor.
Presumir ou pensar de o suspendermos nós, é o que eu digo que não se faça, nem se deixe de
discorrer com ele porque ficaremos numa pasmaceira e frios e não faremos uma nem outra coisa.
Quando o Senhor suspende o entendimento e o faz parar, dá-lhe com que se espante e se ocupe e,
sem discorrer, entenda mais no espaço dum Credo do que nós podemos entender com todas as
nossas diligências da terra em muitos anos. Mas ocuparmos nós as potências da alma e pensarmos
fazê-las estar quietas, é desatino.
E torno a dizer, ainda que não se entenda: não é de grande humildade. Embora não haja culpa, pena
sim que haverá, pois será trabalho perdido, e fica a alma com um desgostozinho como quem vai a
saltar e a seguram por detrás: parece-lhe já ter empregado sua força e encontra-se sem efetuar o que
com ela queria fazer. No pouco lucro que lhe fica, verá - quem nisto quiser reparar - este pouquito
de falta de humildade que digo. Porque isto tem de excelente esta virtude: não há obra que ela
acompanhe que deixe a alma desgostada.
Parece-me tê-lo dado a entender e, porventura, será só para mim. Abra o Senhor os olhos dos que o
lerem com a experiência, e - por pouca que seja - logo o compreenderão.
6. Bastantes anos passei em que lia muita coisa e não entendia nada; e também muito tempo em
que, embora mo desse Deus a entender, não sabia dizer palavra para o dar a compreender, e não me
custava isto pouco trabalho. Quando Sua Majestade quer, num momento, ensina tudo de maneira
que me espanto. Uma coisa posso dizer com verdade: embora falasse com muitas pessoas
espirituais que me queriam dar a entender o que o Senhor me dava para que o soubesse dizer, o
certo é que era tanta a minha rudeza que, nem pouco nem muito, isso me aproveitava. Ou assim o
quereria o Senhor - para que não tivesse ninguém a quem agradecer -, pois Sua Majestade foi
sempre o meu mestre. Seja por tudo bendito, que grande confusão é para mim poder dizer isto com
verdade. Sem o querer, nem pedir (pois nisto não tenho sido nada curiosa - e teria sido virtude sê-lo
senão em outras vaidades), deu-me Deus num momento a graça de compreender tudo com toda a
claridade e de o saber dizer, de maneira que se espantavam meus confessores e eu mais do que eles,
porque entendia melhor a minha rudeza. Isto é de há pouco e, assim, o que o Senhor não me ensina,
não procuro saber, se não for coisa que toque à minha consciência.
7. Torno outra vez a avisar que muito importa não levantar o espírito, se o Senhor não o eleva. O
que isto seja, entende-se logo. Em especial para mulheres é maior o mal, pois poderá o demônio
causar alguma ilusão; ainda que tenho por certo o Senhor não consentir que faça dano a quem
procura com humildade achegar-se a Ele, antes tirará mais proveito e lucro por onde o demônio
pensava fazê-lo perder. Por ser este caminho mais usado dos principiantes e porque importam muito
os avisos que dei, me fui alongando tanto. Tê-los-ão escrito em outras partes muito melhor, eu o
confesso, e foi com farta confusão e vergonha que o escrevi, embora não com tanta como havia de
ter.
Seja o Senhor bendito por tudo, pois a uma como eu, quer e consente que fale em coisas Suas, tais e
tão sublimes.
CAPÍTULO 13. Continua a tratar do primeiro grau de oração e dá uns conselhos para algumas
tentações que o demônio apresenta algumas vezes. É muito proveitoso.
1. Parece-me bem falar de algumas tentações que tenho visto haver ao princípio -algumas tenho-as
eu tido - e dar alguns avisos sobre coisas que julgo necessárias. Procure-se andar ao princípio com
alegria e liberdade, porque há pessoas a quem parece que se lhes vai a devoção se se descuidam um
pouco. Bom é cada qual andar com temor para não se fiar pouco nem muito de si mesmo, pondo-se
em ocasiões em que lhe é fácil ofender a Deus. Isto é muito necessário até já se estar muito forte na
virtude. E não há muitos que o estejam tanto que, metidos em ocasiões favoráveis ao seu natural, se
possam descuidar. Que sempre - enquanto vivemos, e até por humildade - é bom conhecer a nossa
miserável natureza. Mas há muitas coisas em que se pode, como já disse, tomar recreação, mesmo
para se voltar mais forte à oração. Em tudo é preciso discrição.
2. Ter grande confiança, pois convém muito não apoucar os desejos, mas esperar de Deus que, se
nos esforçamos, pouco a pouco - embora não seja logo -poderemos chegar aonde muitos santos
chegaram com Seu favor. Se eles nunca se tivessem determinado a desejá-lo e pouco a pouco pô-lo
por obra, nunca teriam subido a tão alto estado. Quer Sua Majestade e é amigo de almas animosas,
logo que andem com humildade e sem nenhuma confiança em si. Não tenho visto a nenhuma destas
que se fique cá por baixo neste caminho, nem a nenhuma alma cobarde - sob capa de humildade que
ande em muitos anos o que essas outras andam em muito poucos. Espanta-me o muito que faz neste
caminho o animar-se a grandes coisas; porque, embora depois a alma não tenha forças, dá um vôo e
chega a muito, ainda que - como avezita que tem fracas penas - se canse e fique mais algum tempo.
Isto aproveitou-me muito como aquilo que diz Santo Agostinho: «Dá-me, Senhor, o que me mandas
e manda o que quiseres». Pensava muitas vezes que S. Pedro nada tinha perdido em se lançar ao
mar, embora depois temesse. Estas primeiras determinações são grande coisa, ainda que, neste
primeiro estado, seja preciso ir-se detendo e ater-se à discrição e parecer do mestre; mas há de
olhar-se a que seja tal, que não ensine a andar como sapos nem se contente com que a alma se afaça
a só caçar lagartixas. A humildade, no entanto, sempre à frente para se compreender que não hão de
vir - estas forças - das nossas.
4. Mas é mister entendermos como há de ser esta humildade, porque penso que o demônio faz
muito dano, a fim de que não vão muito adiante almas que têm oração, fazendo-lhes compreender
mal a humildade, e que lhes pareça soberba o ter grandes desejos e querer imitar os santos e desejar
o martírio. Logo nos diz ou dá a entender que as coisas dos santos são para admirar, mas não para as
fazermos nós que somos pecadores.
Isto também o digo eu; mas temos de olhar ao que é de espantar 6 e ao que é de imitar. De fato, não
seria bem que uma pessoa fraca e enferma se expusesse a muitos jejuns e penitências ásperas, e
fosse para um deserto onde não pudesse dormir nem tivesse que comer, ou coisas semelhantes. Mas
sem pensar que nos podemos esforçar com o favor de Deus a ter um grande desprezo do mundo, a
não estimar honras, nem estar atido à fazenda. Temos uns corações tão apertados, que parece nos há
de faltar a terra em querendo-nos descuidar um pouco do corpo para darmos ao espírito. Depois nos
parece que ajuda ao recolhimento ter muito bem consertado tudo o que é preciso, porque os
cuidados inquietam a oração.
A mim, isto me pesa; termos tão pouca confiança em Deus e tanto amor próprio, que nos inquiete
este cuidado. E assim é que, onde o espírito está tão pouco medrado como isto, umas ninharias nos
dão tão grande trabalho como a outros coisas grandes e de muito tomo. E, a nosso juízo,
presumimos de espirituais!
5. Parece-me agora a mim esta maneira de caminhar a querer conciliar corpo e alma para não perder
cá na terra o descanso e gozar lá no Céu de Deus. E assim será, se andarmos em justiça e apegados
à virtude, mas é passo de galinha; nunca com ele se chegará à liberdade de espírito. Maneira muito
boa de proceder, me parece, para o estado de casados, que hão de viver conforme à sua vocação;
mas para outro estado, de maneira alguma desejo tal maneira de aproveitar, nem me farão crer que é
boa. Tenho-a experimentado e sempre me ficaria assim, se o Senhor, por Sua bondade, não me
tivesse ensinado outro atalho.
6. Ainda que, nisto de desejos, sempre os tive grandes, procurava isto que tenho dito: ter oração e
viver a meu belo prazer. Creio que, se tivesse tido quem me lançasse a voar, mais me teria eu
empenhado em que estes desejos fossem com obras. Mas são - por nossos pecados - tão poucos e
tão contados os que não tenham neste caso discrição demasiada, que julgo ser isto causa bastante
para os que começam, não chegarem mais depressa a uma grande perfeição. O Senhor nunca falta,
nem é por Ele que há falha; nós é que somos os faltosos e miseráveis.
7. Também se podem imitar os santos procurando solidão e silêncio e outras muitas virtudes, que
não nos matarão estes negros corpos que tão concertadamente se querem levar para desconcertar a
alma. E o demônio ajuda muito a torna-los inaptos; quando vê um pouco de temor. Mais não quer
para nos dar a entender que tudo nos há de matar e tirar a saúde; até o ter lágrimas faz-nos temer de
cegar... Passei por isto e por isso o sei, e não sei que melhor vista nem saúde podemos desejar que
perdê-la por tal causa.
Como sou tão enferma, até que me determinei a não fazer caso do corpo nem da saúde, sempre
estive atada, sem valer para nada; é ainda agora faço bem pouco. Mas quis Deus que eu entendesse
este ardil do demônio; e quando ele me punha diante ó perder a saúde, dizia: «Pouco vai em que eu
morra». Quando era o descanso: «Não tenho necessidade de descansar, mas sim de cruz». E assim
outras coisas. Vi claramente que, em mui muitas delas, embora eu de fato fosse muito enferma, era
tentação do demônio ou frouxidão minha. Desde que não ando com tantos cuidados e não sou tão
amimada, tenho muito mais saúde.
Assim vai muito de, nos princípios - ao começar a ter oração - não apoucar os pensamentos. Creiam
o que digo, porque sei isto por experiência. E, para que escarmentem em mim, poderá também
aproveitar o dizer estas minhas faltas.
8. Outra tentação que há logo muito de ordinário, é desejar que todos sejam muito espirituais, pois
começam a saborear o sossego e o lucro que ele traz. Desejar isto não é mal; o procurá-lo é que
poderá não ser bem se não há muita discrição e dissimulação para proceder de modo a não parecer
que querem ensinar; porque neste caso, quem quiser fazer algum bem, precisa de ter as virtudes
muito fortes para não causar tentação aos outros.
Aconteceu isto comigo - e por isso o compreendo - quando procurava, como já tenho dito, que
outras tivessem oração. Como, por um lado, me viam enaltecer o grande bem que era ter oração e
por outro lado me viam com grande pobreza de virtudes, trazia-as eu tentadas e desatinadas, como
depois me disseram. E tinham sobrada razão, porque não percebiam como se podia harmonizar uma
coisa com a outra. E fui eu causa de não terem por mal o que de si o era, por verem que o fazia
algumas vezes, parecendo-lhes haver algum bem em mim.
9. E isto faz o demônio: parece ajudar-se das boas virtudes que temos para autorizar - no que pode -
o mal que pretende. Por pouco que este seja, quando é numa comunidade, deve ganhar muito,
quanto mais que o que eu fazia de mal o era muito, muito. E assim, em muitos anos, só três
aproveitaram do que lhes dizia; mas depois, quando o Senhor me havia já dado mais forças na
virtude, em dois ou três anos aproveitaram muitas, como depois direi.
E, além disto, há outro grande inconveniente que é prejudicar a alma; pois o que mais havemos de
procurar ao princípio é de cuidar só dela, fazendo de conta que não há na terra senão Deus e ela; e
isto é o que muito lhe convém.
10. Dá ainda outra tentação que é sentir pena dos pecados e faltas que se vêem nos outros. É que
todas elas vêm com capa de zelo pela virtude que é mister entender e andar com cuidado. Persuade
o demônio que a pena é só por se querer que não se ofenda a Deus e pesar-lhes por Sua honra, e
logo o querem remediar. Inquieta isto tanto que impede a oração, e o maior dano é pensar que é
virtude e perfeição e grande zelo de Deus.
Deixo a pena que dão os pecados públicos - se o houvesse por costume - duma Congregação ou os
males da Igreja, dessas heresias onde vemos perderem-se tantas almas. Este pesar é muito bom e,
como tal, não inquieta. A certeza será pois, para a alma que tiver oração, descuidar-se de tudo e de
todos e tomar conta de si mesma e em contentar a Deus. Isto convém muito, muito, porque, se fosse
dizer os erros que tenho visto cometer, fiados na boa intenção! ...
Procuremos, pois, atender sempre às virtudes e às coisas boas que virmos nos outros e tapar seus
defeitos com os nossos grandes pecados. E com esta maneira de agir - embora não se faça logo com
perfeição ganha-se uma grande virtude, que é: de termos a todos por melhores do que nós. E
começa-se a lucrar por aqui com o favor de Deus que é necessário em tudo, e, quando falta,
escusadas são as diligências. Supliquemos-Lhe que nos dê esta virtude, pois, fazendo nós o que está
em nossas mãos, Deus não faltará.
11. Atendam também a este aviso os que discorrem muito com o entendimento, tirando de uma
coisa muitas outras e conceitos. Aos que não podem obrar com ele - como a mim me acontecia -
não há mais a dizer senão que tenham paciência até que o Senhor lhes dê em que se ocupem, e luz,
pois podem tão pouco por si mesmos que o entendimento mais os embaraça que ajuda.
Pois voltando aos que discorrem, digo que não se lhes vá todo o tempo nisso; embora seja muito
meritório, porque - como é oração saborosa parece-lhes que não há de haver dia de domingo, nem
momento que não seja de trabalho. Logo julgam perderem o tempo e eu tenho por grande ganho
esta perda. Mas antes - como tenho dito - imaginem-se diante de Cristo e, sem cansaço do
entendimento, estejam falando e regalando-se com Ele, sem se cansarem a compor razões, mas
apresentando-Lhe necessidades e a razão que Ele tem para não nos sofrer ali; uma coisa a um tempo
e outra a outro, para que se não canse a alma de comer sempre o mesmo manjar. Estes são muito
gostosos e proveitosos - se o paladar se acostuma a comer deles - e trazem consigo grande sustento
para dar à alma vida e grandes lucros.
12. Quero-me explicar melhor, porque estas coisas de oração são todas elas dificultosas e, se não se
encontra mestre, muito más de entender. Isto faz que, embora eu quisesse abreviar - e bastava
apenas menciona-las, para o bom entendimento de quem me mandou escrever estas coisas de
oração a minha rudeza não dá lugar a dizer e dar a entender em poucas palavras uma coisa que tanto
importa declarar bem. Eu passei tanto que tenho dó dos que começam só com livros porque é coisa
estranha quão diferentemente se entende o que ali se vê, depois de experimentado. Pois, voltando ao
que dizia, ponhamo-nos a pensar num passo da Paixão, digamos, o de quando o Senhor estava atado
à coluna. Anda o entendimento rebuscando o que ali há a considerar: as grandes dores e pena que
Sua Majestade teria naquela soledade e outras muitas coisas que, se o entendimento é vivo, poderá
deduzir daqui. E então, se se é letrado!? Este é o modo de oração por que todos hão de começar e
continuar e acabar; é mui excelente e seguro caminho, até que o Senhor os leve a outras coisas
sobrenaturais.
13. Digo «todos»; mas, no entanto, há muitas almas que tirarão mais proveito de outras meditações
do que na da sagrada Paixão pois, assim como há muitas moradas no Céu, há muitos caminhos.
Algumas pessoas aproveitam considerando-se no inferno, outras no Céu - e afligem-se em pensar
no inferno -outras na morte. Algumas, se são ternas de coração, doem-se muito de pensar sempre na
Paixão e regalam-se e tiram fruto em contemplar o poder e a grandeza de Deus nas criaturas e o
amor que nos teve, o qual se manifesta em todas as coisas. E é admirável maneira esta de proceder
não deixando, no entanto, muitas vezes a Paixão e vida de Cristo, que é donde nos veio e vem todo
o bem.
14. É necessário que esteja de aviso o que começa, para verem que aproveita mais. Para isto, é
muito necessário ter mestre experimentado; que, se não, muito pode errar e trazer uma alma sem a
entender nem deixar que ela se entenda a si mesma. Pois, como esta sabe que é grande mérito estar
sujeita a um mestre, não ousará sair daquilo que lhe mandam.
Eu tenho encontrado almas encurraladas e angustiadas por não ter experiência quem as ensinava,
que me faziam lástima. Algumas nem sabiam já que fazer de si; porque, não entendendo eles o
espírito, afligem alma e corpo e impedem o aproveitamento. Uma, que tratou comigo, tinha-a o
mestre atada, havia oito anos; não a deixava sair do próprio conhecimento. E o Senhor tinha-a já em
oração de quietude e assim passava muito trabalho.
15. Embora isto do conhecimento próprio jamais se deva deixar, não há alma tão gigante que não
tenha muitas vezes de tornar a ser menino e de mamar (e isto jamais se olvide e quiçá o direi mais
vezes, porque importa muito). É que não há estado de oração tão subido que não seja muitas vezes
necessário tornar ao princípio. E isto dos pecados e conhecimento próprio é o pão com que todos os
manjares se hão de comer, por delicados que estes sejam, neste caminho de oração e sem este pão
elas não se poderiam sustentar. Mas há de comer-se com conta e medida. Depois que uma alma se
vê já rendida e entende claramente que de si não tem coisa boa, e se sente envergonhada diante de
tão grande Rei, e vê o pouco que Lhe paga para o muito que Lhe deve, que necessidade há de gastar
aqui o tempo? mas sim irmos a outras coisas que o Senhor nos põe diante e não há razão para que as
deixemos, pois Sua Majestade sabe melhor do que nós o que nos convém comer.
16. Assim importa muito que o mestre seja avisado -digo, de bom entendimento - e que tenha
experiência. Se com isto tem letras, é grandíssima coisa; mas, se não se podem encontrar estas três
coisas juntas, as duas primeiras importam mais, porque letrados podem procurar para com eles
comunicarem quando tiverem necessidade. Digo que nos princípios, se eles não têm oração,
aproveitam pouco as letras? Não digo que não se trate então com letrados, porque espírito que não
vá fundado na verdade, eu mais o quisera sem oração. Grande coisa é ter letras, porque estas nos
ensinam aos que pouco sabemos e nos dão luz e, apoiados nas verdades da Sagrada Escritura,
fazemos o que devemos. De devoções tontas, livre-nos Deus!...
17. Quero-me explicar melhor, pois creio que me meto em muitas coisas. Sempre tive esta falta de
não me saber dar a entender - como já tenho dito - senão à custa de muitas palavras. Começa uma
freira a ter oração; se um simplório a dirige e se a este assim se lhe afigurar, dar-lhe-á a entender
que é melhor obedecer-lhe a ele do que ao superior; e isto sem malícia, mas pensando que acerta,
porque se não é religioso, parecer-lhe-á que é assim. E, se é mulher casada, dir-lhe-á que é melhor,
quando haveria de atender à sua casa, estar em oração, ainda que descontente o marido. E assim não
saberá ordenar nem o tempo nem as coisas, para que tudo vá conforme à verdade. Por faltar-lhe a
ele a luz, não a dá aos outros ainda que queira. E embora pareça que para isto não são precisas
letras, a minha opinião foi sempre e será que qualquer cristão procure tratar - se puder - com quem
as tem boas e, quanto mais, melhor. E os que vão por caminho de oração têm disto maior
necessidade, e tanto maior, quanto mais espirituais.
18. E não se engane dizendo que letrados sem oração não são para quem a tem. Tenho tratado com
muitos e, de há uns anos para cá, tenho-os procurado mais sendo maior a necessidade e sempre fui
amiga deles. E embora alguns não tenham experiência, não aborrecem o espírito nem o ignoram;
porque na Sagrada Escritura que estudam, sempre encontram a verdade do bom espírito. Tenho para
mim que pessoa de oração que trate com letrados, se ela se não quiser enganar, não a enganará o
demônio com ilusões, pois creio que os demônios temem de grande modo as letras humildes e
virtuosas, sabendo que serão descobertos e sairão com perda.
19. Disse isto porque há opiniões de que os letrados não são para gente de oração, se não têm
espírito. Já disse que é necessário mestre espiritual; mas se este não for letrado, é grande
inconveniente. Contudo, será de muita ajuda tratar com eles, desde que sejam virtuosos; porque,
embora não tenham espírito, aproveitar-nos-á e Deus lhes dará a entender o que têm de ensinar e até
os fará espirituais para nosso proveito. E isto não o digo sem o ter experimentado e aconteceu-me a
mim com mais de dois. Digo que, para se render uma alma a estar de todo sujeita a um só mestre,
erra muito se não procurar que seja tal como fica dito. Se for religioso, há de estar sujeito a seu
Prelado, a quem porventura faltarão todas as três coisas, - o que não será já pequena cruz -sem que
ele, de sua própria vontade, sujeite o seu entendimento a quem o não tenha bom. Pelo menos disto
nunca eu me pude convencer a mim mesma nem me parece que convém. Se é secular, louve a Deus
porque pode escolher a quem há de estar sujeito e não perca esta tão virtuosa liberdade; antes esteja
sem nenhum até o encontrar. O Senhor lho dará, desde que vá tudo fundado em humildade e com
desejo de acertar. Eu louvo-O muito - e nós as mulheres e os que não têm letras sempre Lhe
havíamos de dar infinitas graças - por haver quem, com tantos trabalhos, tenha alcançado a verdade
que nós, ignorantes, ignoramos.
20. Espantam-me muitas vezes letrados - religiosos em especial - com o trabalho com que ganharam
o que sem nenhum, mais que o de perguntar, me aproveite a mim. E que haja pessoas que se não
querem aproveitar disto! Não o queira Deus! Vejo-os sujeitos aos trabalhos da Religião, que são
grandes, com penitência e mau comer, rendidos à obediência que é certo ser-me isto, algumas
vezes, de grande confusão e, além disso, mau dormir, tudo trabalho, tudo cruz. Parece-me que seria
grande mal se alguém, por sua culpa, perdesse tanto bem. E poderá ser que pensemos alguns dos
que estamos livres destes trabalhos e vivendo a nosso prazer, dando-nos eles tudo já guisado -como
se diz - que, por termos um pouco mais de oração, nos havemos de avantajar a tantos trabalhos.
21. Bendito sejais Vós, Senhor, que tão inábil e sem proveito me fizestes; mas louvo-Vos muito, por
despertardes a tantos que nos despertem. Havia de ser mui contínua a nossa oração por esses que
nos esclarecem. Que seríamos sem eles entre tão grandes tempestades como agora tem a Igreja? Se
alguns tem havido ruins, mais resplandeceram os bons. Praza ao Senhor que os tenha de Sua mão e
os ajude para que nos ajudem. Amém.
22. Muito tenho saído propositadamente do que comecei a dizer; mas tudo é a propósito para os que
começam, a fim de que comecem caminho tão alto, de maneira a irem metidos no verdadeiro
caminho. Pois, voltando ao que dizia, de pensar em Cristo atado à coluna, é bom discorrer um
pouco e pensar nas penas que ali teve e por que as teve e quem é Aquele que as teve e o amor com
que as passou. Mas não se canse em andar sempre a buscar isto, antes se fique ali com Ele,
aquietado o entendimento. Se puder ocupá-lo em ver que o Senhor o olha, e acompanhe-O, e fale, e
peça, e humilhe-se, e regale-se com Ele, e lembre-se que não merecia estar ali. Quando puder fazer
isto - embora seja logo de princípio, ao começar a oração, achará grande proveito, pois dá grandes
lucros este modo de oração; pelo menos teve-os a minha alma.
Não sei se acerto em o dizer; V. Mercê o verá. Praza ao Senhor acerte eu em O contentar sempre.
Amém.
CAPÍTULO 14. Começa a declarar o segundo grau de oração que é o Senhor já fazer sentir à alma
gostos mais particulares. Declara-o para fazer ver como já são sobrenaturais. É muito para se ter
em conta.
1. Já fica dito com que trabalhos se rega este vergel e quão à força de braços, tirando a água do
poço. Digamos agora o segundo modo de a tirar que o Senhor do horto ordenou para que, por meio
de um torno e alcatruzes, o hortelão tirasse mais água e com menos trabalho e pudesse descansar
sem estar continuamente trabalhando.
Este modo, aplicado à oração que chamam de quietude, é o que eu agora quero tratar.
2. Aqui começa a recolher-se a alma e toca já em coisa sobrenatural, porque de nenhuma maneira
ela o pode conseguir, por mais diligências que faça. Verdade é que parece ter-se cansado, algum
tempo em andar ao torno a trabalhar com o entendimento, enchendo os alcatruzes; aqui, porém, a
água subiu mais alto e assim trabalha-se muito menos para a tirar do poço? Digo que a água está
mais perto, porque a graça dá-se mais claramente a conhecer à alma.
Isto é um recolherem-se as potências dentro de si para gozar daquele contento com mais gosto; mas
não se perdem, nem ficam adormecidas Só a vontade se ocupa de maneira que, sem saber como, se
torna cativa, dando somente consentimento para que a prenda Deus, como quem bem sabe ser presa
de Quem ama. Oh! Jesus e Senhor meu, como nos vale aqui o Vosso amor! porque este tem o nosso
tão atado que lhe não deixa liberdade para, naquele ponto, amar coisa alguma senão a Vós.
3. As outras duas potências ajudam a vontade para que se vá tornando capaz de gozar de tanto bem,
ainda que algumas vezes, mesmo estando unida a vontade, aconteça desajudarem muito. Mas então,
não faça caso delas, mas fique-se em seu gozo e quietude; porque se as quer recolher, ela e elas
perderão. São, então, como pombas que não se contentam com a comida que lhes dá o dono do
pombal sem trabalho algum e vão buscar de comer a outras partes; mas acham-no tão mau, que
voltam, e assim vão e vêm a ver se a vontade lhes dá aquilo de que goza. Se o Senhor lhes quer
deitar comida, detêm-se; se não, tornam a ir buscá-la. Devem pensar que dão proveito à vontade e,
às vezes, em querer a memória ou imaginação representar-lhe o que goza, a prejudicará. Tenha,
pois, cuidado de se haver com elas como direi.
4. Tudo isto que aqui se passa é com grande consolo e com tão pouco trabalho que não cansa a
oração, embora dure muito tempo; porque o entendimento obra aqui muito passo a passo e tira
muito mais água do que tirava do poço. As lágrimas que Deus aqui dá, já são com gozo; ainda que
se sintam, não se procuram.
5. Esta água, de grandes bens e mercês que o Senhor dá aqui, faz crescer as virtudes muito mais sem
comparação do que na oração anterior. É que a alma já se vai elevando acima da sua miséria e já se
lhe dá alguma noticia dos gostos da glória. Isto, creio, a faz crescer mais e também chegar mais
perto da verdadeira virtude donde todas as virtudes procedem, que é Deus; porque começa Sua
Majestade a comunicar-se a esta alma e quer que ela sinta como se lhe comunica.
Em chegando aqui, começa logo a perder a cobiça das coisas de cá de baixo, deixando ao mesmo
tempo perder poucas graças, porque vê claramente que um momento daquele gosto não se pode
aqui conseguir, nem há riquezas, nem senhorios, nem honras, nem deleites que bastem para dar,
num abrir e fechar de olhos, este contentamento porque é verdadeiro, e contento que se vê que nos
contenta. Porque os de cá de baixo, só por maravilha -julgo eu -entenderemos onde está esse
contentamento; nunca lhes falta um «senão». Nestes é tudo «sim» enquanto dura; o «não» vem
depois, por se ver que acabou e que não o pode voltar a recuperar, nem sabe como; pois, mesmo que
se faça em pedaços com penitências e orações e todas as demais coisas, se o Senhor não lho quiser
dar, de pouco lhe aproveita. Quer Deus, por Sua grandeza, que esta alma entenda que Sua
Majestade está tão perto dela, que já não tem necessidade de enviar mensageiros, mas tão somente
falar ela mesma com Ele e não em alta voz: já está tão perto que num mexer os lábios a entende.
6. Parece impertinência dizer isto, pois sabemos que Deus sempre nos entende e está conosco. Nisto
não há que duvidar que é assim. Mas quer este Imperador e Senhor nosso que compreendamos aqui
que nos entende e o que faz em nós a Sua presença. E faz também entender que quer
particularmente começar a operar na alma pela grande satisfação interior e exterior que lhe dá e pela
diferença que há, como já tenho dito, entre este deleite e contentamento e os de cá da terra. Parece
encher o vazio que, pelos nossos pecados, tínhamos feito na alma. É no mui íntimo da alma esta
satisfação, sem ela saber por onde nem como lhe veio, nem sabe muitas vezes o que há de fazer,
nem querer, nem pedir. Tudo lhe parece encontra junto e não sabe o que encontra, nem mesmo eu
sei como dá-lo a entender; é que, para muitas coisas, ser-me-ia preciso ter letras. Aqui ficaria bem
dar a entender o que é auxílio geral e particular, que muitos o ignoram e, como o Senhor quer que a
alma aqui veja este auxílio particular quase à vista de olhos, como dizem. Ser-me-iam também
precisas letras para muitas coisas que irão erradas; mas, como será visto por pessoas que entendem
se há erro, vou descuidada: porque, tanto a respeito de letras como de espírito, sei que o posso estar,
indo para as mãos de quem vai, pois saberão entender e tirar o que estiver mal.
7. Quereria, pois, dar isto a entender, porque são princípios fundamentais e, quando o Senhor
começa a fazer estas mercês, a própria alma não as entende nem sabe o que há de fazer de si.
Porque, se Deus a leva por caminho de temor, como me fez a mim, é grande trabalho se não há
quem a entenda, e grande o gosto ao ver-se como que pintada, pois vê então claramente que é por
ali que vai. E é grande bem saber e o que há a fazer para se ir aproveitando em qualquer destes
estados. Como tenho sofrido muito e perdido largo tempo por não saber que fazer, sinto grande
lástima das almas que se vêem sós quando chegam aqui. Tenho lido muitos livros espirituais, e
embora toquem no que faz ao caso, explicam muito pouco e, se não for alma muito exercitada,
mesmo explicando bem, ela terá ainda bastante que fazer para se entender.
8. E quereria muito que o Senhor me favorecesse para aqui dizer os efeitos que operam na alma
estas coisas que começam a ser sobrenaturais, para que se entenda, pelos efeitos, quando é espírito
de Deus. Digo “se entenda" conforme ao que aqui se pode entender. Será sempre bom, no entanto,
andarmos com temor e recato; porque, embora seja de Deus, alguma vez poderá o demônio
transfigurar-se em anjo de luz. E, se não for alma muito exercitada, não o entenderá; e tão
exercitada que, para o entender, é preciso chegar muito ao cume da oração.
Ajuda-me pouco o pouco tempo de que disponho e assim será mister Sua Majestade fazê-lo por
mim, porque tenho de andar com a Comunidade e com outras muitas ocupações, pois estou em casa
que agora se começa, como depois se verá; e assim é muito sem ter assento o que escrevo, e a pouco
e pouco. Isto não quisera eu, porque, quando o Senhor dá espírito, escreve-se com mais facilidade e
melhor; parece então que é como quem tem um modelo na frente, por onde vai copiando aquele
labor; mas, se o espírito falta, não mais se concerta esta linguagem: parece uma algaravia - é
maneira de dizer -ainda que se tenham tido muitos anos de oração. E assim me parece de
grandíssima vantagem, quando escrevo, estar concentrada, porque vejo então claramente que não
sou eu quem o diz, nem o ordeno com o entendimento, nem sei depois como acertei a dizê-lo. Isto
acontece-me muita vez.
9. Agora, voltemos à nossa horta ou vergel, e vejamos como começam estas árvores a impregnar-se
para florescer e dar depois fruto, e as flores e os cravos na mesma, para dar perfume. Regala-me
esta comparação. Muitas vezes, em meus princípios (e praza ao Senhor haja eu agora começado a
servir Sua Majestade! digo, nos primeiros tempos do que direi de aqui por diante da minha vida),
era para mim grande deleite considerar a minha alma como um jardim e que o Senhor se passeava
nele. Suplicava-Lhe aumentasse o odor das florzitas de virtudes que começavam - segundo me
parecia - a querer sair à luz e fosse para Sua glória e, pois eu nada queria para mim, que as
sustentasse e cortasse as que quisesse, porquanto bem sabia eu haviam de sair melhores. Disse
"cortar", porque vem tempo em que na alma não há memória deste horto; tudo parece estar seco e
não haverá água para o sustentar, nem mesmo parece ter havido jamais na alma coisa de virtude!
Passa-se muito trabalho, porque o Senhor quer que lhe pareça ao pobre do hortelão que tudo quanto
tem feito para o cultivar e regar, vai perdido. Então é o verdadeiro escardear e arrancar de raiz as
ervazitas más - embora pequenas - que tenham ficado, reconhecendo que não há diligência que
baste se Deus nos tira a água da graça, e termos em pouco o nosso nada e até menos que nada.
Ganha-se aqui muita humildade; tornam de novo a crescer as flores.
10. Oh! Senhor meu e Bem meu! Não posso dizer isto sem lágrimas e grande regalo da minha alma,
pois Vós, Senhor, quereis estar assim conosco e estais no Sacramento, porque com toda a verdade
assim se pode crer, pois que é de fé. E com grande verdade podemos fazer esta comparação. E, a
não ser por nossa culpa, poderemos gozar convosco e Vós folgareis conosco, pois dizeis ter Vossas
delícias em estar com os filhos dos homens. Oh! Senhor meu! Que é isto? Sempre que oiço esta
palavra dá-me grande consolo e isto mesmo quando andava muito perdida. Será possível, Senhor,
que haja uma alma que chegue a ponto de Vós lhe fazerdes mercês e regalos semelhantes, e
entender que Vós folgais com ela, e Vos torne a ofender depois de tantos favores e de tão grandes
mostras do amor que lhe tendes, do qual se não pode duvidar, pois se vê claramente a obra?
Sim, há, por certo, e não uma vez mas muitas, que sou eu. E praza à Vossa bondade, Senhor, que
seja só eu a ingrata e a que tenha feito tão grande maldade e tido tão excessiva ingratidão. Porque,
ao menos dela, a Vossa infinita bondade tem tirado algum bem; e quanto maior foi o mal, mais
resplandece o grande bem de Vossas misericórdias. E com quanta razão as posso eu para sempre
cantar!
11. Suplico-Vos, Deus meu, que assim seja e eu as cante sem fim, já que tivestes por bem de as usar
tão excessivas para comigo, que pasmam os que as vêem. A mim, fazem-me sair muitas vezes de
mim mesma, para melhor Vos poder louvar; porque, estando em mim sem Vós, nada poderei,
Senhor meu, senão tornar a ver cortadas as flores deste horto, de sorte que esta miserável terra
voltaria a servir de muladar como antes. Não o permitais, Senhor, nem queirais que se perca uma
alma que com tantos trabalhos comprastes e tantas vezes de novo a tornastes a resgatar e a tirar dos
dentes do terrível dragão.
12. Perdoe-me V Mercê sair do assunto; e, como falo a meu propósito, não se espante, pois é como
se apodera da alma aquilo que escreve. Às vezes, muito faz em não se deixar ir por diante em
louvores a Deus, pois se lhe representa, enquanto vai escrevendo, o muito que Lhe deve. E creio
não causará desgosto a V. Mercê, porque ambos, me parece, podemos cantar uma e a mesma coisa,
ainda que de maneira diferente; pois é muito mais o que eu devo a Deus, por Ele mais me ter
perdoado, como V. Mercê sabe.
CAPÍTULO 15. Prossegue na mesma matéria e dá alguns avisos sobre o modo de proceder na
oração de quietude. Diz como há muitas almas que chegam a ter esta oração e poucas as que
passam adiante. São muito necessárias e proveitosas as coisas que aqui se dizem.
1. Voltemos agora ao assunto. Esta quietude e recolhimento de alma é coisa que se torna muito
sensível pela satisfação e paz que infunde, com grandíssimo contentamento e sossego das potências,
e muito suave deleite. Parece-lhe - como nunca chegou a mais - que nada lhe fica a desejar e de boa
vontade diria, como São Pedro, para ser ali a sua morada. Não ousa mexer-se nem menear,
porquanto lhe parece que lhe há de fugir das mãos aquele bem, nem respirar algumas vezes
quereria. Não percebe a pobrezita que, se por si mesma nada pode para trazer a si aquele bem, ainda
menos poderá para o deter além do tempo que o Senhor quiser.
Já disse que neste primeiro recolhimento e quietude não se perdem as potências da alma; mas está
tão satisfeita com Deus que, enquanto aquilo dura, embora as duas potências se desbaratem, como a
vontade está unida a Deus, não perde a quietude e o sossego mas, antes, torna pouco a pouco a
recolher o entendimento e a memória. Porque, embora não esteja ainda de todo em todo engolfada,
está tão bem ocupada, sem saber como, que, por mais diligências que elas empreguem, não lhe
podem tirar o seu contento e gozo, antes muito sem trabalho vai ajudando esta centelhazita de amor
de Deus para que ela não se apague.
2. Praza à Sua Majestade dar-me graça para que eu dê isto bem a compreender, porque há muitas,
muitas almas que chegam a este estado, e poucas as que passam adiante, e não sei quem tem a
culpa. Bem certo é não ser Deus que falta, pois, visto que Sua Majestade faz mercê de que se
chegue a este ponto, não creio que cesse de fazer muitas mais, a não ser por nossa culpa. E importa
muito que a alma; em chegando aqui, conheça a grande dignidade em que está e a grande mercê que
o Senhor lhe tem feito e como, em boa razão, não deveria já ser da terra, pois parece que Ele, em
Sua bondade, a fez cidadã do Céu, se ela o não estorvar por culpa sua. E desventurada será se voltar
atrás! Penso que seria para ir até ao mais baixo, como eu ia, se a misericórdia do Senhor não me
tivesse feito voltar. É que, para a maior parte, será por graves culpas, a meu parecer, pois não é
possível deixar tão grande bem sem grande cegueira de muito mal.
3. E assim rogo, por amor do Senhor, às almas a quem Sua Majestade fez tão grande mercê de
chegarem a este estado, que se conheçam e tenham em muito, com uma humildade e santa
presunção para não voltarem às panelas do Egito. E se, por sua fraqueza e maldade, e ruim e
miserável natural caírem como eu fiz, tenham sempre diante de si o bem que perderam e tenham
suspeita e andem com temor. E têm razão de o ter porque, se não voltam à oração, hão de ir de mal
a pior. Isto chamo eu verdadeira queda: o aborrecer o caminho por onde se ganhou tanto bem. É
com estas almas que falo; não digo que não hão de ofender a Deus e cair em pecados, ainda que em
boa razão deles se havia de guardar muito quem começou a receber estas mercês, mas somos
miseráveis. Do que aviso muito é que não deixe de ter oração, que ali entenderá o que faz e obterá
do Senhor arrependimento e fortaleza para se levantar. Creia que, se desta se apartar, a meu parecer,
está em perigo. Não sei se entendo o que digo, porque - como tenho dito - julgo por mim...
4. É, pois, esta oração uma centelhazita de Seu verdadeiro amor que o Senhor começa a acender na
alma, e Ele quer que a alma vá compreendendo que coisa é esse regalado amor. Esta quietude e
recolhimento e centelhazita, se é espírito de Deus e não gosto dado pelo demônio ou procurado por
nós à quem tenha experiência, impossível é deixar de entender que é coisa que não se pode adquirir.
Este nosso natural é, porém, tão desejoso de coisas saborosas, que tudo quer provar. Mas fica logo
muito frio porque, por muito que se queira começar a fazer atear o fogo para alcançar este gosto, só
parece que se lhe deita água para o apagar. Esta centelhazita posta por Deus; por pequenita que seja,
faz muito ruído; e, se a alma não a mata por sua culpa, é á que começa a atear o grande fogo que
lança de si as chamas, como direi em seu lugar, do grandíssimo amor de Deus que Sua Majestade
faz arder nas almas perfeitas.
5. Esta centelha é um sinal ou penhor que Deus dá a esta.alma de já, a ter escolhido para grandes
coisas se ela se dispuser para as receber. É grande dom, muito maior do que eu poderei dizer.
E isto, para mim é de grande lástima, porque - como digo - conheço muitas almas que chegam aqui,
e as que passam de aqui, como haveriam de passar, são tão poucas que me causa vergonha deizê-lo.
Não digo eu que haja poucas, que muitas deve haver - pois para alguma coisa nos sustenta Deus.
Digo o que tenho visto. Quisera eu muito avisá-las de que procurem não esconder o talento, pois
parece que Deus as quer escolher para proveito de outras muitas, em especial nestes tempos em que
há falta de amigos fortes de Deus para sustentar os fracos. Os que em si reconhecerem esta mercê,
tenham-se por tais, e saibam responder com as leis que até mesmo a boa amizade do mundo exige.
E, se assim não for, temam e tenham medo, - como já disse - não se façam mal a si, e praza a Deus
que seja só a eles.
6. O que a alma há de fazer nos tempos desta quietude, não é mais que proceder com suavidade e
sem ruído. Chamo "ruído" andar com o entendimento buscando muitas palavras e considerações
para dar graças por este benefício e amontoar pecados e faltas para ver que o não merece. Tudo isto
põe-se aqui em acção: e representa o entendimento, e revolve-se a memória. Estas potências, certo
é, a mim me cansarem às vezes, pois, apesar de ter pouca memória, não a posso subjugar. A
vontade, com serenidade e sensatez, entenda que não se negocia bem com Deus à força de braços e
que estes 'S são como que grandes troços de madeira postos sem discrição, que mais não servem
senão para abafar esta centelha. Reconheça-o e diga com humildade: - Senhor, que posso eu aqui?
Que tem que ver a serva com o Senhor e a terra com o Céu? - Ou outras palavras que aqui se lhe
oferecerem de amor bem fundado no conhecimento de que é verdade o que diz. E não faça caso do
entendimento que é um maçador. Nem ela lhe queira dar parte do que goza ou trabalha para o
recolher, pois muitas vezes a alma ver-se-á nesta união de vontade e sossego e com o entendimento
muito desbaratado e mais vale que ela - digo a vontade - o deixe e não se vá atrás dele, mas que se
fique a gozar daquela mercê, recolhida como sábia abelha. Se nenhuma entrasse na colméia e para
se trazerem umas às outras todas se fossem, mal se poderia fabricar o mel.
7. Assim perderá muito a alma se não tem cuidado nisto; em especial se o entendimento for agudo;
porque, quando começa - por pouco que seja a ordenar práticas e a buscar razões, se são bem
apresentadas, pensará que faz alguma coisa. A razão que aqui há de haver é entender claramente
que não há nenhuma para que Deus nos faça tão grande mercê, mas tão somente a Sua bondade. E,
vendo que estamos tão perto de Sua Majestade, pedir mercês e rogar-Lhe pela Igreja e pelos que se
nos recomendaram e pelas almas do purgatório. Não com ruído de palavras, mas com o sentimento
de desejar que nos ouça. É oração que abarca muito e alcança-se mais com ela de que com muito
relatar do entendimento. Desperte em si a vontade algumas razões que se lhe apresentarão da
mesma razão de se ver tão melhorada, para avivar este amor e proponha-se alguns atos amorosos a
fazer por Aquele a Quem tanto deve, mas sem admitir - como tenho dito - ruído do entendimento, à
busca de grandes coisas. Mais fazem aqui ao caso umas palhazitas postas com humildade (e menos
serão de que palhas, se formos nós a pô-las) e mais ajudam a acender este fogo que muita lenha
junta de razões muito doutas, a nosso parecer, que no espaço dum Credo abafarão a centelha. Isto é
bom para os letrados que mo mandaram escrever; porque, por bondade de Deus, todos chegaram
aqui e poderá ser que se lhes vá o tempo em aplicar as Escrituras. E ainda que as letras não deixarão
de lhes aproveitar muito, antes e depois, aqui, nestes momentos de oração, pouca necessidade há
delas - ao que me parece - a não ser que seja para entibiar a vontade. É que o entendimento está
então com uma tão grande claridade, por se ver tão perto da luz, que até eu, com ser a que sou,
pareço outra.
8. E assim tem-me acontecido, estando nesta quietude, que, apesar de não entender quase nada do
que rezo em latim, em especial no Saltério, não só entender o texto em língua vulgar, mas de ir mais
além regalando-me ao ver o que ele quer dizer.
Deixemos o caso dos que tivessem de pregar ou ensinar, por que então bom é servirem-se eles
daquele bem, para ajudar aos pobres de pouco saber como eu, pois é grande coisa a caridade e este
desejo de fazer aproveitar sempre as almas, indo claramente só por Deus.
Assim, pois, nestes tempos de quietude deixe descansar a alma com o seu descanso. Quedem-se ás
letras a um lado. Tempo virá em que elas lhes sejam de proveito no serviço do Senhor e eles as
tenham em tanto que, por nenhum tesouro, ás quereriam ter deixado de saber, só para servir a Sua
Majestade, pois que ajudam muito. Mas, diante da Sabedoria infinita, creiam-me que vale mais um
pouco de estudo de humildade e um acto dela, de que toda a ciência do mundo! Aqui não há que
argüir, mas somente conhecer com simplicidade o que somos e apresentarmo-nos assim diante de
Deus. Quer Ele que a alma se faça néscia - como de verdade o é ante a Sua presença - pois Sua
Majestade se humilha tanto que a suporta junto de Si, sendo nós o que somos.
9. Também se aplica o entendimento a dar graças bem preparadas; mas a vontade, com sossego,
com um não ousar elevar os olhos como o publicano, dá mais agradecimentos que quantos o
entendimento - com transtornar a retórica - por ventura possa dar. Aqui, enfim, não se há de deixar
de todo a oração mental , nem mesmo algumas orações vocais, se alguma vez o quiserem ou
puderem, porque, se a quietude for grande, mal se pode falar, a não ser a muito custo.
Sente-se, a meu parecer, quando é espírito de Deus ou quando procurado por nós, isto é, se - com
um começo de devoção que Deus nos concede - nós queremos, por nós mesmos, passar já a este
sossego da vontade, como já tenho dito; não produz nenhum efeito, acaba depressa e deixa aridez.
10. Se é do demônio, uma alma exercitada o entenderá, penso eu, porque deixa inquietação e pouca
humildade e pouca disposição para os efeitos que consigo traz o espírito de Deus. Não deixa luz no
entendimento, nem firmeza na verdade. O demônio pode causar aqui pouco ou nenhum dano se a
alma endereçar o deleite e suavidade que ali sente para Deus e n'Ele põe seus pensamentos e
desejos, como ficou dito. Nada pode então ganhar o demônio; antes permitirá Deus que, com o
próprio deleite que causa na alma, venha a perder muito, porque este deleite ajudará a que a alma -
como pensa que é de Deus - venha muitas vezes à oração com cobiça de O gozar; se ela for humilde
e não curiosa nem interesseira de deleites, ainda mesmo que estes sejam espirituais, senão amiga de
cruz, pouco caso fará do gosto que dá o demônio. E isto não poderá ela assim fazer, se for espírito
de Deus, mas antes o terá em muito. Mas em coisa sugerida pelo demônio, como ele é todo mentira,
ao ver que a alma com o gosto e deleite se humilha - porque nisto há de ela ter muito, e em todas as
coisas de oração e gostos procurar sair humilde - o demônio não voltará muitas vezes, vendo que
perde.
11. Por isto e por muitas outras coisas, avisei eu no primeiro modo de oração -na primeira água - o
muito que importa começarem as almas a terem oração indo-se desapegando de todo o gênero de
contentamentos e entrarem nela determinadas única e somente a ajudarem Cristo a levar a cruz,
como bons cavaleiros que, sem soldo algum, querem servir a seu Rei, pois sabem que têm a paga
bem segura. E olhos postos no verdadeiro e perpétuo reino que pretendemos ganhar! Grandíssima
coisa é ter-se isto sempre bem presente, em especial nos princípios. Depois vê-se mui claramente
que mais preciso é esquecê-lo para poder viver; do que procura-lo: lembrar o pouco que tudo dura, e
como tudo é nada. e o nada em que se há de apreciar o descanso.
12. Parece ser isto coisa muito baixa e assim é na verdade. Os mais adiantados em perfeição teriam
até por afronta e correr-se-iam a si mesmos se pensassem que deixam os bens deste mundo porque
se hão de acabar, quando - embora estes durassem para sempre - eles se alegrariam de os deixar por
Deus e isto tanto mais, quanto mais perfeitos fossem, e quanto mais durassem. Aqui, nestes, já está
crescido o amor e é ele o que opera. Mas, para os que começam, é-lhes importantíssimo ter estes
pensamentos e não os tenham por baixos. É grande o bem que se ganha e assim o recomendo tanto.
Isto ser-lhes-á necessário - até aos muitos encumeados em oração em certas épocas em que Deus os
quer provar e parecem abandonados por Sua Majestade. Pois, como já tenho dito - e quisera eu que
não o esquecessem -, nesta vida em que vivemos a alma cresce, e cresce de verdade mas não como
o corpo, embora assim o digamos. É que, uma criança; depois de crescer e deitar corpo e o ter
grande - já de homem - não torna a decrescer e a ter corpo de menino. Aqui, quer o Senhor que seja
assim (ao que tenho visto por mim) pois não o sei por outra via. Deve ser para nos humilhar para
nosso maior bem e não nos descuidemos enquanto estivermos neste desterro, pois quem mais alto
estiver, mais há de temer e fiar-se menos de si.
Ocasiões há em que estes mesmos, que já têm a sua vontade tão posta na de Deus, que se deixariam
atormentar e passariam mil mortes para não cair e cometer uma imperfeição, se vêem tão
combatidos de tentações e perseguições que - para não fazer pecados e se livrarem de ofender a
Deus - é preciso, e torna-se-lhes necessário aproveitar as primeiras armas da oração, e voltar a
pensar que tudo acaba, e que há Céu e inferno, e outras coisas deste gênero.
13. Pois, voltando ao que dizia, grande fundamento é, para se livrar dos ardis e gostos vindos do
demônio, uma alma começar com a determinação de seguir caminho de cruz desde o princípio e de
não desejar as ditas consolações. O mesmo Senhor nos ensinou este caminho de perfeição ao dizer:
«Toma a tua cruz e segue-Me». É Ele o nosso modelo; não tem que temer quem, só para O
contentar, segue Seus conselhos.
14. No aproveitamento que virem em si entenderão estas almas que isso não lhes vem do demônio.
É que; embora tornem a cair, fica-lhes um sinal de que esteve ali o Senhor: o levantarem-se
depressa, além destes que agora direi: - quando é espírito de Deus, não é necessário andar atrás de
coisas à busca de humildade e confusão, porque o mesmo Senhor as dá de modo bem diferente do
que podemos obter por meio das nossas consideraçõezinhas, que não são nada em comparação
duma verdadeira humildade, que traz consigo luz, que aqui ensina o Senhor e que produz uma
confusão que nos desfaz. É coisa muito perceptível este conhecimento que Deus dá para que
entendamos que nenhum bem possuímos por nós mesmos, e quanto maiores as mercês, maior a
compreensão. -Incute um grande desejo de ir avante na oração e de não a deixar por nenhuma coisa
de trabalho que possa advir. A tudo se oferece. - Sente uma segurança com humildade e temor de
que se há de salvar. - Deita logo para longe o temor servil da alma e dá-lhe o filial temor muito mais
acrescido. - Vê que lhe começa um amor a Deus muito sem interesse próprio. - Deseja momentos de
solidão para mais gozar daquele bem.
15. Enfim, para não me cansar, é um princípio de todos os bens, um estarem já as flores em termos
de não lhes faltar senão um quase nada para desabrochar. Isto verá muito claramente a alma e de
nenhuma maneira poderá por então convencer-se de que não esteve Deus com ela, até se ver de
novo com quebras e imperfeições, que então tudo teme. E é bem que tema, embora haja almas que
lhes é de mais proveito acreditarem, de certeza, que é Deus, de que todos os temores que lhes
possam infundir. Se a alma é de si amorosa e agradecida, mais a faz voltar para Deus a memória da
mercê que Ele lhe fez, do que todos os castigos do inferno que lhe representam. Pelo menos a mim,
apesar de tão ruim, isto me acontecia.
16. Porque os sinais do bom espírito se irão dizendo; mas como a quem lhe custa muito trabalho
tirá-los a limpo, não os digo agora aqui. Creio que, com o favor de Deus, nisto atinarei alguma
coisa; porque, mesmo deixando à parte a experiência em que muito tenho entendido, o sei de alguns
letrados muito letrados e de pessoas muito santas a quem é de razão que se dê crédito. Não andem,
pois, as almas tão afadigadas quando aqui chegarem pela bondade do Senhor, como, eu tenho
andado.
CAPÍTULO 16. Trata do terceiro grau de oração e vai declarando coisas muito elevadas, e o que
pode a alma que aqui chega, e os efeitos que fazem estas mercês tão grandes do Senhor. É muito
para elevar o espírito em louvores a Deus e para grande consolação de quem aqui chegar.
1. Falemos agora da terceira água com que se rega esta horta: é a água corrente de rio ou de fonte, e
rega-se com muito menos trabalho, embora algum dê o encaminhar a água. Quer aqui o Senhor
ajudar o hortelão, de maneira que quase é Ele o jardineiro e quem faz tudo.
É um sono das potências em que nem de todo se perdem nem entende como operam. O gosto,
suavidade e deleite são, sem comparação, maiores de que o passado. É a água da graça que chega à
garganta desta alma, de modo que já não pode ir para diante, nem sabe como, nem como tornar
atrás; quereria gozar de grandíssima glória. É como alguém que está com a vela na mão,' por lhe
faltar pouco para morrer da morte que deseja. Está gozando naquela agonia com o maior deleite que
se pode dizer. Não me parece outra coisa senão um morrer quase de todo a todas as coisas do
mundo e estar gozando de Deus.
Eu não sei outros termos para o dizer ou declarar, nem sabe então a alma o que fazer; porque nem
sabe se há de falar, calar, rir ou chorar. É um glorioso desatino, uma celestial loucura; onde se
aprende a verdadeira sabedoria, e é deleitosíssima maneira de a alma gozar.
2. E é assim que o Senhor me deu em abundância e muitas vezes esta oração, creio que há cinco ou
até seis anos; mas eu nem a entendia nem a saberia dizer; e assim tinha para mim ser melhor dizer
muito pouco ou nada, em chegando aqui. Que de todo em todo não era união de todas as potências e
que era mais que a passada, bem o entendia eu e muito claramente; mas confesso, não podia
determinar nem perceber como era esta diferença.
Creio que pela humildade que V. Mercê tem tido em se querer ajudar de uma simplicidade tão
grande como a minha, em acabando hoje de comungar, deu-me o Senhor esta oração sem eu poder
ir adiante; e inspirou-me estas comparações e ensinou a maneira de o dizer e o que há de fazer aqui
a alma. Certo é que me espantei e o entendi num momento.
Muitas vezes estive assim, como desatinada e embriagada neste amor, e jamais tinha podido
entender como era. Bem via eu ser obra de Deus, mas não podia compreender como operava aqui;
porque, embora as potências estejam de fato e em verdade quase de todo unidas a Ele, não estão
contudo tão engolfadas que não operem. Gostei em extremo de tê-lo agora entendido. Bendito seja
o Senhor que assim me regalou!
3. Só têm habilidade as potências para se ocuparem todas em Deus. Nem parece que alguma se ouse
mexer, nem que a possamos fazer mover, a não ser que, com muito trabalho, nos quiséssemos
distrair; e ainda assim não me parece que isso se pudesse então conseguir. Dizem-se aqui muitas
palavras em louvor de Deus, sem ordem nem concerto, se o mesmo Senhor as não concerta. Pelo
menos o entendimento não vale aqui nada. Quisera a alma dar vozes em louvores e está que não
cabe em si; um desassossego saboroso. Já se abrem as flores, já começam a dar seu olor. Aqui
quereria a alma que todos a vissem e entendessem a sua glória para que á ajudassem nos louvores a
Deus e quisera comunicar e dar-lhes parte do seu gozo, porque não pode com tanto gozar. Pareceme
ser como a que diz o Evangelho que queria chamar ou chamou as suas vizinhas. Isto, a meu
parecer, devia sentir o admirável espírito do real profeta David quando tangia a harpa é cantava os
louvores de Deus. Deste glorioso Rei sou eu muito devota e quereria que todos o fossem, em
especial os que somos pecadores.
4. Oh! Valha-me Deus! Como fica uma alma quando está assim! Toda ela quereria ser línguas para
louvar ao Senhor! Diz mil desatinos santos, atinando sempre em contentar a Quem a tem assim. Eu
sei duma pessoa que, sem ser poeta, lhe acontecia fazer de repente coplas muito sentidas,
declarando bem a sua pena, não tiradas do seu entendimento, senão que, para mais gozar a glória
que tão saborosa pena lhe dava, dela se queixava a seu Deus.
Todo o seu corpo e alma quereria se despedaçassem para mostrar o gozo que sente com esta pena.
E, que tormentos se lhe poderiam pôr então diante dela que lhe não fosse saboroso passá-los por seu
Senhor? Vê claramente que não faziam quase nada de sua parte os mártires em os passar, porque
bem conhece a alma que a fortaleza lhe vem de outra parte. Mas, que sentirá por ter razão, a fim de
viver no mundo e voltar aos cuidados e cortesias que nele há?
Não penso, porém, ter encarecido coisa alguma que não fique baixa em relação a este modo de gozo
que o Senhor quer neste desterro dar a gozar à alma. Bendito sejais para sempre, Senhor, e louvem-
Vos todas as coisas eternamente. E pois que ao escrever isto não estou fora desta santa loucura
celestial - de que tão sem méritos meus e por Vossa bondade e misericórdia me fazeis mercê - eu
Vos suplico, meu Rei, que tenhais agora por bem que todos aqueles com quem eu tratar estejam ou
loucos de Vosso amor ou permiti que eu não trate com ninguém. Ordenai, Senhor, ou que eu não
tenha já em conta coisa que seja do mundo, ou tirai-me dele. Não pode já, Deus meu, esta Vossa
serva sofrer tantos trabalhos como tem por se ver sem Vós e, assim, se há de viver, não quer
descanso nesta vida, nem que Vós lho deis. Quereria já esta alma ver-se livre do corpo: o comer, a
mata; o dormir, a atormenta; vê que se lhe passa o tempo da vida vivendo em regalos e que nada já
a pode regalar afora Vós. Parece que vive contra a natureza, pois já não quereria viver em si, senão
em Vós.
5. Oh! Verdadeiro Senhor e glória minha, que tênue e pesadíssima cruz tendes preparada para os
que chegam a este estado! Tênue, porque é suave; pesada, porque vezes há que não há sofrimento
que a sofra. Jamais queria, no entanto, ver-se livre dela, se não fosse para ver-se já conVosco.
Quando se recorda que não Vos serviu em nada e que, vivendo, Vos pode servir, quereria carregarse
com muito mais pesada cruz e nunca, até ao fim do mundo, morrer. Tem em nada o seu descanso
a troco de Vos fazer um pequeno serviço; não sabe o que desejar, mas bem entende que não deseja
outra coisa senão a Vós.
6. Oh! filho meu! (que é tão humilde que assim se quer nomear aquele a quem isto vai dirigido e mo
mandou escrever), sejam só para si algumas coisas em que V. Mercê vir que saio dos limites. É que
não há razão que baste para não me tirar dela quando o Senhor me põe fora de mim, nem creio sou
eu a que falo desde que comunguei esta manhã. Parece-me sonhar o que vejo e não quereria ver
senão enfermos do mal com que eu agora estou. Suplico a V Mercê que sejamos todos loucos por
amor d'Aquele a Quem por nós assim chamaram. Diz V. Mercê que me quer bem, pois em dispor-se
para que Deus lhe faça esta mercê quero eu que mo mostre, porque vejo muito poucos que os não
veja com senso demasiado para o que lhes diz respeito. Bem pode ser que o tenha eu mais que
todos. Não mo consinta V. Mercê, meu Padre, pois também o é, assim como é filho, pois é meu
confessor e a quem confiei a minha alma. Desengane-me com verdade, que se usam muito pouco
estas verdades.
7. Este contrato quisera eu que fizéssemos os cinco que, ao presente, nos amamos em Cristo. Como
outros que nestes tempos se juntavam em.segredo para ir contra Sua Majestade e ordenar maldades
e heresias, procurássemos nós juntarmo-nos alguma vez para nos desenganarmos uns aos outros e
dizerem que nos poderíamos emendar e contentar mais a Deus. Não há quem tão bem se conheça a
si mesmo como nos conhecem os que nos estão olhando, se é com amor e cuidado do nosso
aproveitamento.
Digo "em segredo", porque já não se usa esta linguagem. Até os pregadores vão ordenando seus
sermões de modo a não descontentar. Boa será a intenção e a obra também; mas assim emendam-se
poucos. Mas, como é que não são muitos os que, por meio dos sermões, deixam vícios públicos?
Sabe o que. me parece? Têm muito senso os que pregam. Não estão sem ele, com o grande fogo de
amor de Deus como estavam os apóstolos, e assim aquece pouco esta chama. Não digo que seja
tanta como eles tinham, mas quisera que fosse mais do que vejo. Sabe V. Mercê o que deve fazer
muito ao caso? Em ter já aborrecimento à vida e em pouca estima a honra. Nada se lhes dava - a
troco de dizer uma verdade e de a sustentar para glória de Deus - de perder tudo ou de ganhar tudo;
porque, quem deveras tudo tem arriscado por Deus, com igual ânimo suporta tanto uma como outra
coisa. Não digo que sou destas, mas quereria sê-lo.
8. Oh! grande liberdade, termos por cativeiro o ter de viver e tratar conforme às leis do mundo!
Como esta se alcance do Senhor, não há escravo que não arrisque tudo para se resgatar e voltar à
sua terra. É, pois, este o verdadeiro caminho; não há que parar nele, porque nunca acabaremos de
ganhar tão grande tesouro, até que se nos acabe á vida. O Senhor nos dê para isto o Seu favor.
Rasgue V Mercê isto que tenho dito, se lhe parecer, e tome-o como uma carta para si e perdoe-me
por ter sido muito atrevida.
CAPÍTULO 17. Prossegue na mesma matéria deste terceiro grau de oração. Acaba de expor os
efeitos que produz. Diz o dano aqui causado pela imaginação e a memória.
1. Fica razoavelmente dito este modo de oração e o que há de fazer a alma ou, para melhor dizer, o
que nela faz Deus, pois é já Ele quem toma o ofício de hortelão e quer que ela folgue. A vontade só
tem de consentir naquelas mercês que goza, e de se oferecer a tudo quanto nela quiser operar a
verdadeira Sabedoria. E de certo que é preciso ânimo, porque já é tanto o gozo que parece algumas
vezes não faltar nada para a alma acabar de sair deste corpo. E que venturosa morte seria!
2. Aqui me parece ser bom, como disse a V. Mercê, a alma abandonar-se, de todo em todo, nos
braços de Deus. Se a quiser levar ao Céu, vai; se ao inferno, não tem pena, logo que vá com o seu
Bem; que se acabe de todo a vida, isso quer; se há de durar mil anos, também. Disponha dela Sua
Majestade como de coisa própria; já não é senhora de si mesma; está dada de todo ao Senhor;
despreocupe-se, pois, de tudo.
Digo: quando Deus dá tão alta oração como esta, a alma pode fazer tudo isto e muito mais - pois
estes são os seus efeitos - e entende que o faz sem nenhum cansaço do entendimento. Somente me
parece que está como que espantada de ver como o Senhor faz tão bem de hortelão, não querendo
que ela tenha trabalho algum, senão o de se deleitar em que comecem as flores a dar perfume. Num
contacto destes - por pouco que dure - é tal o Hortelão que enfim, como Criador da água, dá-a sem
medida. O que a pobre da alma, com trabalho e cansaço do entendimento, não pôde porventura
conseguirem vinte anos, fá-lo este Hortelão celestial num instante; e a fruta cresce e amadurece de
maneira que a alma se pode sustentar do seu horto, querendo-o o Senhor. Mas não lhe dá licença de
repartir a fruta, até que esteja forte com o que dela tenha comido. Não se lhe vá tudo em a provar. E
não lhe dando nada de proveito, nem lha pagando aqueles a quem a der, os mantenha e dê de comer
à sua custa, e fique, porventura, morta de fome.
Isto, bem entendido, vai dirigido a tais entendimentos que o saberão aplicar melhor de que eu o
saberei dizer, por muito que me canse.
3. Enfim; as virtudes ficam agora mais fortes que na passada oração de quietude. E isto de modo à
alma não as poder ignorar, porque se vê outra e, sem saber como, começa a obrar grandes coisas
com o perfume que as flores dão de si. Quer o Senhor que estas se abram para que ela veja que tem
virtudes, embora veja muito bem que não as podia ganhar nem o tem podido em muitos anos e,
naquele breve espaço de tempo, lhas deu o Celestial Hortelão. Aqui é muito maior e muito mais
profunda que no passado a humildade que fica na alma, porque vê mais claramente que de si não
fez nem pouco nem muito, a não ser consentir que o Senhor lhe fizesse mercês e as abraçasse a
vontade. Este modo de oração parece-me união muito evidente de toda a alma com Deus. Mas dirse-
ia que Sua Majestade quer dar licença às potências para que entendam e gozem do muito que Ele
ali opera.
4. Acontece algumas vezes - e até muitas - estando unida a vontade que se vê e se entende
claramente que está presa e gozando e em muita quietude. Digo que isto se vê claramente, mas só
quanto à vontade, pois, por outro lado, o entendimento e a memória ficam tão livres que podem
tratar de negócios e atender a obras de caridade. A mim, pelo menos, isto trouxe-me tonta e por isso
o digo aqui para que V. Mercê veja que pode ser e o entenda quando o tiver.
Isto, que agora disse, ainda que pareça tudo uma e mesma coisa é, em parte, diferente da oração de
quietude. É que ali a alma está que nem se quereria mexer nem menear, gozando naquele ócio santo
de Maria. Nesta oração pode também ser Marta, e assim quase que está trabalhando a um tempo na
vida ativa e contemplativa. Pode atender a obras de caridade e a negócios que convenham ao seu
estado, e ler, embora o entendimento e a memória não estejam de todo senhores de si e entendam
bem que a melhor parte da alma está em outro lugar. É como se estivéssemos falando com alguém
e, por outro lado, nos falasse outra pessoa: nem bem estaríamos com uma nem com outra. É coisa
que se sente muito claramente e dá muita satisfação e contento quando se tem e é muito boa
disposição para que, em achando tempo de solidão ou de desocupação de negócios, a alma chegue a
mui sossegada quietude. É um andar como uma pessoa que está em si satisfeita, que não tem
necessidade de comer, sente o estômago satisfeito, de maneira que não se poria a comer qualquer
manjar, mas não está tão farto que, se os vir bons, deixe de o fazer de boa vontade. Assim não
quereria então a alma contentos do mundo, porque tem em si o que mais a satisfaz. Maiores
contentamentos de Deus, desejos de satisfazer Seus desejos, de gozar mais, de estar com Ele, é isto
o que quer.
5. Há outro modo de união, que ainda não é perfeita união, mas que é mais do que esta que acabo de
dizer, embora não o seja tanto como a que se disse desta terceira água.
Quando o Senhor lhas der todas - se não as tem já - gostará muito V. Mercê de encontrar tudo
escrito e entender o que é. Uma coisa é dar o Senhor a mercê; outra, entender qual é a mercê e qual
a graça; e outra, o sabê-la dizer e dar a compreender como é. Pois, embora pareça não ser mister
mais do que a primeira para a alma não andar confusa e medrosa e prosseguir com mais ânimo no
caminho do Senhor, calcando debaixo dos pés todas as coisas do mundo, contudo é grande proveito
e mercê entendê-lo. Por cada uma destas graças, é motivo para que louve muito ao Senhor quem a
tem. Quem a não tem, louve-O igualmente por Sua Majestade a conceder a alguns dos que vivem
para que nos aproveitasse a nós.
Ora, acontece muitas vezes esta maneira de união que agora quero dizer (pois a mim, em especial,
tem-me Deus feito esta mercê não poucas vezes) apodera-se Deus da vontade e também do
entendimento, a meu parecer, porque este não discorre, mas está ocupado gozando de Deus, tal
como quem está olhando e vê tanta coisa que nem sabe para onde olhar, perde-se-lhe a vista por um
e outro objeto, e não sabe dar conta de coisa alguma. A memória permanece livre e unida à
imaginação e, como se vê só, é para louvar a Deus a guerra que ela faz e como procura
desassossegar tudo. A mim, traz-me cansada e me aborrece, e muitas vezes suplico ao Senhor que,
se tanto me há de estorvar, ma tire nestas alturas. Digo-lhe algumas vezes: quando, meu Deus, há de
estar já toda unida a minha alma no Vosso louvor e não feita em pedaços sem poder valer-se a si
mesma? Aqui, vejo o mal que nos fez o pecado, pois assim nos sujeitou a não fazer sempre o que
queremos, ou seja, de estar sempre ocupados em Deus.
6. Digo que me acontece às vezes, - e hoje tem sido uma delas e assim tenho-o bem na memória -,
que vejo desfazer-se a minha alma com o desejo de se ver toda ela unida onde tem a maior parte de
si mesma e ser-lhe impossível, pois dá-lhe tal guerra a memória e imaginação que o não pode
conseguir. E como a estas lhes falta a ajuda das outras potências, de nada valem nem mesmo para
fazer mal. Muito fazem em desassossegar. "Para fazer mal" digo, porque não têm força nem sabem
estar quietas. Como o entendimento não ajuda pouco nem muito no que lhe representa a memória,
esta não pára em nada, anda dum lado para o outro, que não parece senão destas borboletas da noite,
importunas e irrequietas. Muito a propósito, me parece vir esta comparação, porque ainda que não
tenha força para fazer nenhum mal, importuna aos que a vêem.
Para isto não sei que remédio haja, pois até agora não mo fez Deus entender; de boa vontade o
tomaria para mim, pois me atormenta, como digo, muitas vezes. Apresenta-se-nos aqui a nossa
miséria, e mui claramente o grande poder de Deus; pois esta potência, que permanece à solta, tanto
nos danifica e nos cansa, e as outras que estão com Sua Majestade, tão grande descanso nos dão.
7. O último remédio que encontrei ao cabo de me ter afadigado muitos anos, é o que disse na oração
de quietude:zz que não se faça mais caso da imaginação que dum louco; é deixá-la com seu tema,
que só Deus lho pode tirar. Enfim, aqui fica por escrava. Temos que a sofrer com paciência, como
fez Jacob a Lia; pois bastante mercê nos faz o Senhor permitindo que gozemos de Raquel. Digo que
fica escrava porque, afinal, não pode, por muito que faça, trazer a si as outras potências. Antes, são
estas que, sem nenhum trabalho, a fazem ir muitas vezes a elas. Algumas vezes, é Deus servido de
se compadecer, ao vê-Ia tão perdida e desassossegada com o desejo de estar com as outras, e
consente-lhe, então, Sua Majestade que se queime no fogo daquela vela divina onde ás outras já
estão feitas em pó, perdido o seu ser natural, tornado quase sobrenatural, gozando de tão grandes
bens.
8. Em todas estas modalidades, desta última água da fonte de que falei, é tão grande a glória e
descanso da alma, que o corpo participa muito sensivelmente daquele gozo e deleite. E isto
claramente se vê e as virtudes ficam tão crescidas, como tenho já dito.
Parece que o Senhor quis declarar-me estes estados de oração em que a alma se vê, tanto quanto
aqui se pode dar a entender, segundo julgo. Trate disto, V. Mercê, com pessoa espiritual que tenha
chegado aqui e tenha letras. Se lhe disser que está bem, creia que lho comunicou Deus. Tenha-o em
muito apreço e agradeça a Sua Majestade. Com o andar do tempo - como tenho dito - folgará muito
de assim entender o que é, enquanto não lhe é dada a graça para compreender, por si mesmo,
embora lhe seja dado de o gozar. Uma vez que Sua Majestade lhe tenha concedido a primeira, com
o seu entendimento e letras, logo entenderá, pelo que ficou aqui dito.
Seja Ele por tudo louvado por todos os séculos dos séculos. Amém.
CAPÍTULO 18. Trata do quarto grau de oração. Começa a declarar, de modo excelente, a grande
dignidade a que o senhor eleva a alma que está neste estado. Serve de estímulo aos que tratam de
oração para se esforçarem a chegar a tão alto estado, pois se pode alcançar na terra, não pelos
próprios merecimentos mas por bondade do Senhor. Leia-se com atenção, pois é descrito muito
delicadamente e apresenta coisas muito importantes.
1. O Senhor me ensine palavras com que possa dizer alguma coisa sobre a quarta água. Bem preciso
é o Seu favor, mais ainda de que para a anterior, na qual a alma ainda sente não estar morta de todo.
E podemos assim dizer, pois embora o esteja ao mundo, tem, no entanto, - como já se disse -
sentidos para compreender que está na terra e sentir sua soledade e apro- veita-se do exterior para
dar a entender aquilo que está sentindo, sequer ao menos por sinais.
Em todos os modos de oração que ficam ditos, trabalha algum tanto o hortelão; ainda que nestes
últimos vai o trabalho acompanhado de tanta glória e consolo de alma que jamais se quereria sair
dele, e assim não se sente como trabalho, mas antes como glória.
Aqui não há sentir, senão gozar sem entender o que se goza. Entende-se que se goza um bem, onde
se encerram conjuntamente todos os bens, mas não se compreende que bem seja este. Todos os
sentidos sentem este gozo, de modo que não fica nenhum desocupado para se poder empregar em
outra coisa exterior ou interior.
Antes, dava-se-lhes licença para fazerem, como disse, algumas mostras do grande gozo que
sentiam; aqui, a alma goza mais, sem comparação e, no entanto, pode-se dar a entender muito
menos, porque não fica poder no corpo, nem a alma o tem, para comunicar aquele gozo. Nesse
tempo tudo lhe seria de grande embaraço e tormento e estorvo para seu descanso. E digo até que, se
é união de todas as potências - enquanto estiver nela não pode, embora o queira, e se pode, já não é
união.
2. Como seja esta oração a que chamam união g e em que consista, não o sei dar a entender. Isto
declara-se na mística teologia, que os termos eu não os saberei nomear, nem sei entender o que é a
mente, nem tão pouco que diferença tenha da alma ou do espírito. Tudo me parece uma mesma
coisa, se bem que a alma saia algumas vezes de si mesma à maneira dum fogo que está ardendo e
feito chama, e cresce algumas vezes com ímpeto e as chamas sobem muito acima do fogo, mas nem
por isso é coisa diferente, senão a mesma chama que está no fogo.
Isto V.V. Mercês - com suas letras - o entenderão porque melhor eu não sei dizer. O que pretendo
declarar é o que sente a alma quando está nesta divina união.
3. O que é união, já se sabe: é de duas coisas divididas fazer-se uma. Oh! Senhor meu, como sois
bom! Bendito sejais para sempre! Louvem-Vos, Deus meu, todas as coisas, pois assim nos amastes,
a podermos com verdade falar desta comunicação que, ainda estando neste desterro, tendes com as
almas. Até mesmo com as que são boas é grande liberalidade e magnanimidade Vossa, Senhor meu;
enfim, dais como quem sois. Oh! liberalidade infinita, quão magníficas são as Vossas obras! Isto
espanta a quem não tem o entendimento ocupado com coisas da terra de modo a não ter nenhum
para entender verdades. Mas, que façais mercês tão soberanas a almas que tanto Vos ofendem, por
certo que a mim isto faz que se me acaba o entendimento e, quando chego a pensar nisto, não posso
ir adiante. Para onde há de ir que não seja voltar atrás? Dar-Vos graças por tão grandes mercês, não
sabe como. Em dizer disparates, acho alívio algumas vezes.
4. E muitas, em acabando de receber estás mercês ou quando Deus mas começa a fazer - pois uma
vez nelas, já tenho dito não há poder para nada - acontece-me dizer: "Senhor, olhai ao que fazeis,
não esqueçais tão depressa meus tão grandes males. Já que para me perdoardes, os tendes olvidado,
suplico-Vos que, para pôr limite nas mercês, deles Vos recordeis. Não ponhais, Criador meu, tão
precioso licor em vaso tão quebrado, pois já tendes visto, de outras vezes, que o torno a derramar.
Não ponhais tesouro semelhante onde ainda não está perdida de todo, como deveria estar, a cobiça
das consolações da vida, pois gastá-lo-á mal. Como confiais a defesa desta cidade e as chaves da
fortaleza a alcaide tão cobarde que, ao primeiro embate dos inimigos, os deixa entrar dentro? Não
seja tanto o Vosso amor, ó Rei Eterno, que ponhais em risco jóias tão preciosas. Parece, Senhor
meu, dar-se assim ocasião a que se tenham em pouco, pois as colocais em poder de criatura tão
ruim, tão baixa, tão fraca e miserável e de tão pouco valor. Pois, se bem que trabalhe para não as
perder com o Vosso favor - e não pequeno precisa de ser, conforme sou -, não posso com elas dar
ganho a ninguém; enfim, mulher e não boa, senão ruim. Dir-se-ia que não só se escondem os
talentos, mas que se enterram, pondo-os em terra tão desprezível. Não costumais Vós, Senhor, fazer
semelhantes grandezas e mercês a uma alma senão para que aproveite a muitas. Já sabeis, Deus
meu, que, com toda a vontade e todo o coração Vos suplico e tenho suplicado algumas vezes e o
tenho por bem de perder o maior bem que se possui na terra, para que Vós façais estas mercês a
quem mais aproveite com este bem, a fim de que cresça a Vossa glória".
5. Estas e outras coisas tem-me acontecido dizê-las muitas vezes. Via depois a minha insensatez e
pouca humildade, porque bem sabe o Senhor o que convém e que não havia forças em minha alma
para se salvar, se Sua Majestade - com tantas mercês - nela não as pusesse.
6. Também pretendo dizer ás graças e os efeitos que ficam na alma e o que ela por si mesma pode
fazer ou se contribui para chegar a tão alto estado.
7. Acontece vir esta elevação de espírito ou junção com o amor celestial. A meu entender, é
diferente a união do levantamento desta mesma união. A quem não tiver experimentado este último,
parecer-lhe-á que não, e a mim me parece que, apesar de ser tudo um, o Senhor opera de diferente
modo. No vôo de espírito cresce muito mais o desapego das criaturas. Eu tenho visto claramente ser
particular mercê, embora - como tenho dito seja tudo a mesma coisa ou o pareça; também um fogo
pequeno é fogo, tal como um grande, e bem se vê a diferença que há de um ao outro. Num fogo
pequeno, antes que um pequeno pedaço de ferro se ponha em brasa passa muito tempo, mas, se o
fogo é grande, embora seja maior o ferro, em muito pouquinho tempo perde, na aparência, a
natureza que tem. É assim, a meu parecer, nestes dois modos de mercês do Senhor, e sei que, quem
tiver chegado a arroubamentos, o entenderá bem. Se o não tiver experimentado, parecer-lhe-á
desatino, e bem pode ser que o seja, porque querer urna como eu falar em coisas tão altas e dar a
entender algo daquilo de que parece até impossível haver palavras para o começar a dizer, não é
muito que desatine.
8. Mas creio que o Senhor me há de ajudar, pois sabe Sua Majestade que, depois de obedecer, a
minha intenção é de engulosinar as almas com um tão sumo bem. Não direi coisa que não tenha
experimentado muito. E assim é que, quando comecei a escrever desta última água, mais impossível
me parecia saber tratar alguma coisa dela do que falar em grego, pois tão dificultoso é. Com isto,
deixei tudo e fui comungar. Bendito seja o Senhor que assim favorece os ignorantes! Oh! virtude da
obediência que tudo podes! Esclareceu-me Deus o entendimento, umas vezes com palavras e outras
pondo-me diante como o havia de dizer, pois, tal como fez na oração passada, parece que Sua
Majestade quer dizer o que eu não posso nem sei.
Isto que digo é inteira verdade e assim, o que for bom, é Sua a doutrina; o mau, está claro, é deste
pélago de males que eu sou. E assim digo que se houver pessoas que tenham chegado às coisas de
oração que o Senhor tem feito mercê a esta miserável - e muitas deve haver - se quiserem tratar
destas coisas comigo, parecendo-lhes descaminhadas, o Senhor ajudará a Sua serva para sair avante
com Sua verdade.
9. Falemos agora desta água que vem do Céu, para com sua abundância encher e fartar todo este
horto. Se o Senhor nunca deixasse de a dar quando dela houvesse necessidade, já se vê o descanso
que teria o hortelão. E se não houvesse inverno, mas sempre tempo ameno, sem nunca faltarem
flores e frutas, já se vê o deleite que teria. Mas, enquanto vivermos, é impossível; sempre há de
haver o cuidado de, quando faltar uma água, procurar outra. Esta do Céu vem muitas vezes quando
mais descuidado está o hortelão. Verdade é que, nos princípios, quase sempre é depois de larga
oração mental que, dum grau a outro, o Senhor vem a tomar esta avezita e a pô-la no ninho, para
que descanse. Como a tem visto voar muito tempo, procurando com o entendimento e a vontade e
com todas as forças buscar a Deus e contentá-Lo, quer dar-lhe o prêmio ainda nesta vida. E que
grande prêmio! Basta um momento para ficarem pagos todos os trabalhos que nela pode haver.
10. Estando assim a alma buscando a Deus, sente-se, com deleite grandíssimo e suave, quase de
todo desfalecer, à maneira de desmaio. Vai-lhe faltando o fôlego e todas as forças corporais, de
modo que não pode sequer menear as mãos a não ser a muito custo. Os olhos fecham-se-lhe sem os
querer fechar, ou se os tem abertos, não vê quase nada. Se lê, nem acerta a dizer letra nem quase
atina bem a conhecê-la: vê as letras, mas como o entendimento não ajuda, não as consegue ler
embora queira. Ouve, mas não entende o que ouve. Não se aproveita, pois, nada dos sentidos, a não
ser para eles não a deixarem acabar de se entregar a seu prazer e assim antes a estorvam. Falar, é
por demais; não atina a formar palavra, nem há forças - ainda que atinasse - para a poder
pronunciar; porque toda a força exterior se perde e se concentra nas da alma aumentando-lhas para
melhor poder gozar da sua glória. O deleite exterior que se sente é grande e muito manifesto.
11. Esta oração, por longa que seja, não faz dano; pelo menos a mim nunca fez. Nem me recordo
ter-me o Senhor feito alguma vez esta mercê, por mal que então estivesse, que me sentisse pior,
antes ficava com grande melhoria. Mas, que mal pode fazer tão grande bem? São tão manifestas as
operações exteriores, que não se pode duvidar que grande foi a causa, pois assim tirou as forças
com tanto deleite para as deixar maiores.
12. Verdade é que nos princípios passa em tão breve tempo - pelo menos a mim assim acontecia
que, quando assim passa com brevidade, nem estes sinais exteriores, nem a falta de sentidos, se dão
tanto a perceber. Mas bem se compreende pela abundância das mercês, que foi grande a claridade
do sol que esteve na alma, pois assim a derreteu. E note-se isto: por longo que tenha sido o espaço
de tempo em que a alma esteve nesta suspensão de todas as potências, é bem breve a meu parecer.
Quando estivesse meia hora, é já muito; eu - segundo julgo - nunca estive tanto. Verdade é que mal
se pode calcular o tempo que se está, pois então não se dá conta; mas digo que, duma assentada,
sem que volte a si alguma potência, é muito pouco tempo. A vontade é que segura a teia, mas as
outras duas potências depressa voltam a importunar. Como a vontade está quieta, volta-se de novo a
suspender e assim se ficam outra vez um pouco e depois tornam a reviver.
13. Nisto podem-se passar algumas horas de oração e passam-se de fato; porque, começando as
duas potências a embriagar-se e a gostar daquele vinho divino, com facilidade se tornam a perder,
para muito mais ganharem; e, acompanhando a vontade, gozam todas três. Mas, neste estarem de
todo perdidas e em nada terem imaginação - pois a meu parecer também esta se perde de todo -,
digo que é por breve espaço. Contudo não voltam a si totalmente que não possam estar algumas
horas como que desatinadas, voltando Deus, pouco a pouco acolhê-las a Si.
14. Venhamos agora ao interior, ao que a alma aqui sente. Diga-o.quem ó sabe, pois nem se pode
entender, quanto mais dizer.
Estava eu pensando, depois de comungar e de sair desta mesma oração que descrevo, quando quis
escrever isto: o que fazia a alma nesse tempo. Disse-me o Senhor estas palavras: “Desfaz-se toda,
filha, para mais se meter em Mim; já não é ela quem vive, senão Eu”. Como não pode compreender
o que entende, é um não entender entendendo.
Quem o tiver experimentado entenderá algo disto. Com mais clareza não se pode dizer por ser tão
obscuro o que ali se passa. Só poderei dizer que se representa a alma estar junta com Deus e fica
uma certeza que de nenhuma maneira se pode deixar de crer. Aqui faltam e se suspendem todas as
potências de modo que - como tenho dito -, de nenhuma maneira, se percebe a sua acção. Se a alma
estava pensando em um passo da Paixão, perde-o da memória como se nunca dele a tivera; se estava
lendo, não há acordo nem detença no que lia; se reza, tão-pouco. Assim é que a esta borboletazita
importuna da memória aqui se lhe queimam as asas; já não mais pode esvoaçar. A vontade deve
estar bem ocupada em amar, mas não compreende como ama. O entendimento, se entende, não
percebe como entende; pelo menos, não pode compreender nada do que entende. A mim, não me
parece que entende, porque - como digo - não se entende a si mesmo. E não acabo de entender isto.
15. Aconteceu-me a mim a princípio que, na minha ignorância, não sabia que Deus estava em todas
as coisas e, como me parecia tê-Lo tão presente, parecia-me impossível. Deixar de crer que
estivesse ali; não podia, por me parecer quase evidente ter percebido estar ali a Sua mesma
presença. Os que não tinham letras me diziam que estava presente só pela graça; eu não o podia
crer, porque - como digo - parecia-me estar presente e assim andava com pesar. Um grande letrado
da Ordem do glorioso São Domingos tirou-me desta dúvida, dizendo-me como estava presente e se
comunicava a nós, o que muito me consolou.
Ê de notar e entender que esta água do Céu, este grandíssimo favor do Senhor, deixava sempre a
alma com grandes ganhos, como agora direi.
CAPÍTULO 19. Prossegue na mesma matéria. Começa a declarar os efeitos produzidos na alma,
neste grau de oração. Aconselha a que não tornem atrás nem deixem a oração, ainda que, depois
desta mercê, tornem a cair. Diz os danos que há em não se fazer isto. E de grande consolo para os
fracos e pecadores.
1. Fica a alma, desta oração e união, com uma grandíssima ternura, de maneira que se quereria
desfazer, não de pena, senão de lágrimas de gozo. Encontra-se banhada delas sem sentir nem saber
quando nem como as chorou; mas dá-lhe grande deleite ver aplacado aquele ímpeto de fogo com
água que mais o faz crescer.
Isto parece algaravia, mas é assim mesmo. Acontecia-me algumas vezes, neste grau de oração, estar
tão fora de mim, que não sabia se era sonho ou se em verdade se dava aquela glória que tinha
sentido; e ao ver-me inundada daquela água que sem custo corria com tanto ímpeto e presteza, que
parecia a destilava aquela nuvem do céu, via, que não tinha sido sonho. Isto era nos princípios,
quando esta mercê passava com brevidade.
2. A alma fica tão animosa que, se naquele momento a fizessem em pedaços por Deus, ser-lhe-ia
grande consolo. Ali são as promessas e determinações heróicas, a viveza dos desejos, o começar a
aborrecer o mundo, e ver muito claramente sua vaidade. Está muito mais aproveitada e elevada de
que nas orações passadas e a humildade mais crescida. É que vê nitidamente que, para tão excessiva
e grandiosa mercê, não houve diligências suas nem teve parte em a atrair ou a possui-ia. Com
clareza vê-se indigníssima, e vê a sua miséria porque, em aposento onde entra muito sol, não há teia
de aranha escondida. Vai tão longe a vanglória, que nem lhe parece a poderia ter, porque já tem à
vista de olhos o pouco ou nada que pode, pois não houve ali quase consentimento; dir-se-ia até que,
embora não quisesse, lhe cerraram a porta a todos os sentidos para que mais pudesse gozar do
Senhor. Fica-se a sós com Ele; que há de fazer senão amá-Lo? Não vê nem ouve, a não ser à força
de braços; pouco há que lhe agradecer. Representa-se-lhe depois a sua vida passada e a grande
misericórdia de Deus, com grande verdade e sem o entendimento ter necessidade de andar à caça,
pois vê ali guisado o que há de comer e entender. Vê que merece o inferno e que a castigam dandolhe
glória. Desfaz-se em louvores de Deus, e eu me quisera agora desfazer neles. Bendito sejais,
Senhor meu, que duma lama tão suja como eu, fazeis água tão clara que sirva para a Vossa mesa!
Sede louvado, ó delícia dos Anjos, que assim quereis levantar um verme tão vil!
3. Permanece algum tempo este aproveitamento na alma. Esta já pode, com entender claramente
que não é sua a fruta, começar a reparti-Ia sem lhe fazer a ela falta. Começa a dar mostras de alma
que guarda tesouros do Céu, e a ter desejos de os repartir com outros e a suplicar a Deus não seja
ela só a ser rica. Começa a aproveitar aos próximos quase sem o entender, nem fazer nada de per si;
eles é que o entendem, já as flores têm tão crescido o olor que lhes dá que desejo de se achegarem a
elas. Compreendem que têm virtudes e vêem a fruta que é apetecível. Gostariam de a ajudar a
comer.
Se esta terra está muito cavada com trabalhos e perseguições e murmurações e enfermidades - que
poucos devem aqui chegar sem isto - e, se está bem solta por andar muito desapegada do próprio
interesse, a água embebe-se tanto nela que quase nunca seca. Mas se é terreno que ainda é terra por
lavrar e com tantos espinhos como eu estava ao princípio, e ainda não apartada das ocasiões, nem
tão agradecida como merece tão subida mercê, a terra volta a secar.
E se o hortelão se descuida, e se o Senhor, por Sua bondade somente, não torna a querer mandar
chuva, dai por perdido o horto. Assim me aconteceu algumas vezes, que certo é me espanto e, se
isto se não tivesse passado comigo, não o poderia crer.
Escrevo-o para consolo de almas fracas como a minha, para que nunca desesperem nem deixem de
confiar na grandeza de Deus. Ainda que caiam. depois de tão encumeadas como é o trazê-las o
Senhor até aqui, não desfaleçam, se não se querem perder de todo. As lágrimas tudo alcançam; uma
água traz outra.
4. Esta foi uma das razões por que me animei - sendo a que sou - a obedecer a escrever isto e a dar
conta da minha ruim vida e das mercês que me tem feito o Senhor, apesar de não O servir senão
com ofensas. Certo é que eu quisera ter aqui grande autoridade para que nisto me acreditassem; e
suplico ao Senhor que ma dê Sua Majestade. Digo pois, que não desfaleça ninguém, dos que
começaram a ter oração, dizendo: Se hei-de tornar a ser mau, é pior continuar a levar por diante o
seu exercício. Se se deixar a oração e se não se emendar do mal, assim o creio; mas se não a deixar,
creia antes que ela o levará a porto de salvação. Deu-me nisto tanta bateria o demônio e passei
tanto, por me parecer pouca humildade ter oração sendo tão ruim, que -como já disse- deixei-a ano
e meio, pelo menos um ano, pois do meio não me recordo bem. Isto mais não era, nem foi, que
meter-me eu mesma no inferno, sem necessidade de demônios que lá me fizessem cair. Oh! valhame
Deus, que cegueira tão grande! E, quão bem acerta o demônio - para conseguir seus fins -em
carregar aqui a mão! Sabe o traidor que alma que tenha oração e nela perseverar, está para ele
perdida e que todas as quedas que lhe fizer dar a ajudarão, por bondade de Deus, a dar depois maior
salto no serviço do Senhor. Isto muito lhe importa.
5. Ó Jesus meu! o que é ver uma alma que aqui tem chegado e depois, caída em um pecado, quando
Vós, por Vossa misericórdia, lhe tornais a dar a mão e a levantais! Como ela reconhece a multidão
das Vossas grandezas e misericórdias e a sua miséria! Aqui é o desfazer-se deveras e conhecer
Vossas grandezas; aqui o não ousar erguer os olhos; aqui o levanta-los para reconhecer o que Vos
deve; aqui se faz devota da Rainha do Céu para que Vos aplaque; aqui invoca os santos que caíram
depois de Vós os terdes chamado, para que a ajudem; aqui o parecer-lhe que lhe chega à larga tudo
o que dais, porque vê que não merece a terra que pisa; o acudir aos Sacramentos, a fé viva que lhe
fica de ver a virtude que Deus pôs neles, o louvar-Vos por terdes deixado tal medicina e ungüento
para as nossas chagas, que não só as cura mas as tira de todo. Disto se espantam e quem, Senhor da
minha alma, se não há de espantar da misericórdia tão grande e de mercê tão acrescida, em paga de
traição tão feia e abominável? Não sei como se me não parte o coração quando isto escrevo, porque
sou ruim.
6. Com estas lagrimazitas que aqui choro, dadas por Vós - água de muito mau poço no que é da
minha parte -; parece que Vos tenho dado satisfação por tantas traições, pois ando sempre fazendo
mal e procurando desfazer as mercês que Vós me tendes feito. Dai-lhes, Senhor meu, valor; aclarai
água tão turva, sequer ao menos para não dar tentação a alguém, como a mim metem dado de fazer
maus juízos, pensando por que deixais, Senhor, a pessoas muito santas que sempre Vos têm servido
e trabalhado por Vós, criadas em Religião e dela sendo-o de verdade e não como eu que não tenho
mais de que o nome, vendo claramente que não lhes fazeis mercês como a mim. Bem vejo, Bem
meu, que lhes guardais o prêmio para lho dar por junto, e que minha fraqueza disto necessita. A
eles, que como fortes Vos servem sem isso, os tratais como a gente esforçada e não interesseira.
7. Contudo, Vós sabeis, Senhor meu, que eu clamava muitas vezes diante de Vós desculpando as
pessoas que contra mim murmuravam, por me parecer que lhes sobejava razão. Isto era já, Senhor,
depois que me seguráveis, por bondade Vossa, para que não Vos ofendesse tanto e eu já me ia
desviando de tudo quanto me parecia poder desgostar-Vos. Em fazendo eu isto, começastes,
Senhor, a abrir Vossos tesouros à Vossa serva: Dir-se-ia não esperardes outra coisa, senão que
houvesse em mim vontade e preparação para os receber, tal a brevidade com que começastes, não
só a dá-los, mas a querer que se entendesse que mos dáveis.
8. Entendido isto, começou-se a ter boa opinião daquela de quem todos ainda não tinham
compreendido quanto era má, embora muito transluzisse. Mas logo começou também a
murmuração e perseguição e - a meu parecer - com muita razão; e assim não tomei inimizade a
ninguém, mas suplicava-Vos que olhásseis à razão que tinham. Diziam que eu me queria fazer
passar por santa e que inventava novidades, não tendo ainda chegado então a cumprir, em grande
parte, com toda a minha Regra, nem a igualar às muito boas e santas freiras que havia na casa. Nem
creio chegarei se Deus, por Sua bondade, não fizer tudo de Sua parte! Da minha, antes era capaz de
tirar o que havia de bom e meter costumes que não o fossem; ao menos, fazia o que podia para os
introduzir e no mal era muito o que podia. Assim, sem culpa sua, me culpavam. Não digo que
fossem só as freiras, mas também outras pessoas; descobriam-me verdades, porque Vós assim lho
permitíeis.
9. Uma vez, rezando as Horas, como eu tinha algumas vezes esta tentação, cheguei ao versículo que
diz: «justus es, Domine e Teus juízos...». Comecei a pensar como era grande esta verdade; porque
nisto, o demônio jamais teve força para me tentar de modo a eu duvidar terdes Vós, meu Senhor,
todos os bens, nem em verdade alguma de fé. Antes me parecia que, quanto mais as verdades iam
sem caminho natural, mais firme era a minha fé e dava-me grande devoção. Em serdes Todo-
Poderoso ficam incluídas, para mim, todas as grandezas que Vós fizerdes, e nisto - como digo -
jamais tive dúvida. Pensando, pois, como permitíeis com justiça que muitas servas Vossas, que as
havia - como tenho dito - não tivessem os regalos e mercês que me fazíeis a mim, sendo eu a que
era, respondeste-me, Senhor: «Serve-Me tu a Mim, e não te metas nisso». Foi a primeira palavra
que eu entendi que Vós me dizíeis e assim espantou-me muito.
Porque depois declararei esta maneira de entender, com outras coisas, não o digo aqui, pois que é
sair do assunto e creio já muito tenho saído; quase não sei o que tenho dito. Nem pode deixar de ser
assim, meu filho, e V. Mercê há de suportar estas interrupções; porque quando vejo o que Deus me
tem sofrido e me vejo neste estado, não é muito que perca o tino do que digo e hei de dizer. Praza
ao Senhor que sejam sempre estes os meus desatinos e não permita Sua Majestade tenha eu ainda
poder para ir contra Ele num só ponto que seja. Antes me consuma Ele neste em que estou.
10. Já basta para se ver as Suas grandes misericórdias, não uma senão muitas vezes em que tem
perdoado tanta ingratidão. A S. Pedro, uma vez; a mim, muitas. Com razão me tentava o demônio
para não pretender amizade tão estreita com Quem usava de inimizade tão pública. Que cegueira tão
grande a minha! Onde pensava eu, Senhor meu, encontrar remédio senão em Vós? Que disparate
fugir da luz para andar sempre tropeçando!
Que humildade tão soberba inventava em mim o demônio: apartar-me de estar arrimada à coluna e
ao báculo que me havia de sustentar para não dar tão grande queda! Agora me persigno e julgo não
ter passado perigo tão grande como esta invenção que o demônio me ensinava por via de
humildade. Punha-me no pensamento como é que coisa tão ruim e tendo recebido tantas mercês, me
havia de chegar à oração? Bastava-me rezar aquilo a que estava obrigada, como todos, e, pois que
até isto não fazia bem, como queria fazer mais? Era pouco respeito e ter em pouco as mercês de
Deus.
Bem era pensar e entender isto, mas o pô-lo por obra foi grandíssimo mal. Bendito sejais Vós,
Senhor, que assim me remediastes.
11. Princípio da tentação com que o demônio perdeu a Judas isto me parece, senão que o traidor não
ousava andar tão a descoberto; mas, pouco a pouco, teria vindo a dar comigo aonde deu com ele.
Atendam a isto, por amor de Deus, todos os que tratam de oração. Saibam que no tempo em que
vivi sem ela, andava muito mais perdida a minha vida. Veja-se que bom remédio me dava o
demônio e que perigosa humildade! Era um grande desassossego. Mas, como havia de sossegar a
minha alma? Apartava-se a infeliz do seu descanso, tinha em si bem presentes as mercês e os
favores, via que os contentos aqui da terra são asco. Como pude passar por isto, me espanta. Era na
esperança de voltar à oração. É que não pensava - ao que agora me recordo, porque isto deve ter
sido há mais de vinte e um anos poder deixar de estar determinada a isso, mas esperava o ficar mais
limpa de pecados. Oh! que mal encaminhada ia nesta esperança! Até ao dia do juízo, disso me
livraria o demônio para de ali me levar ao inferno!
12. Pois se tendo oração e leitura - conhecendo verdades e o ruim caminho que levava -e
importunando muitas vezes ao Senhor com lágrimas, era tão ruim que não me podia valer, afastada
disto, metida em passatempos com muitas ocasiões e poucas ajudas - e ouso até dizer nenhuma, a
não ser para me ajudar a cair - que esperava senão isso?
Creio que merece muito diante de Deus um frade de São Domingos; grande letrado, que me
despertou deste sono. Fez-me comungar, como creio ter dito, de quinze em'quinze dias. Foi menos
então o mal. Comecei a cair em mim; embora não deixasse de fazer ofensas ao Senhor. Como,
porém, não tinha perdido o caminho, caindo e levantando-me, ia por ele, embora pouco a pouco; e
quem não deixa de andar e vai para a frente, ainda que tarde, sempre chega. Perder o caminho não
me parece ser outra coisa senão deixar a oração. Deus nos livre disso, por Quem Ele é.
13. Fica daqui entendido - e note-se isto muito, por amor do Senhor que, embora uma alma chegue
a receber de Deus tão grandes mercês na oração, não fie de si, pois pode cair, nem se meta de
nenhuma maneira em ocasiões de queda. Olhe-se muito a isto, que importa muito. Pois, embora a
mercê tenha sido certamente de Deus, o demônio pode depois causar aqui enganos: aproveitando-se
o traidor da mesma mercê naquilo que lhe é possível e enganar a pessoas não crescidas nas virtudes,
nem mortificadas, nem desapegadas. É que não ficam aqui fortalecidas tanto quanto baste - como
depois direi para se meterem em ocasiões e perigos, por grandes que sejam os desejos e
determinações que tenham... É excelente doutrina esta; não é minha, senão ensinada por Deus, e
assim quisera que pessoas ignorantes, como eu, a soubessem. Porque, ainda quando uma alma se
ache neste estado, não há de confiarem si mesma para sair a combater; já fará muito em se defender.
Aqui tem necessidade de armas para se defender dos demônios e não tem ainda forças para pelejar
contra eles e os trazer debaixo dos pés, como fazem os que estão no: estado que depois direi.
14. Este é o engodo com que o demônio colhe a alma: como esta se vê tão chegada a Deus e. a
diferença que há entre os bens do Céu e os da terra e vê o amor que o Senhor lhe tem mostrado,
nasce-lhe desse amor e confiança e segurança de não decair do que goza. Parece-lhe antever claro o
prêmio e que já não lhe é possível deixar o que, até nesta vida, é tão deleitoso e suave, por coisa tão
baixa e vil como é o deleite cá de baixo.
Com esta confiança faz-lhe o demônio perder a pouca que há de ter em si, e -como digo - mete-se
em perigos e começa, com bom zelo, a dar a fruta sem conta nem medida, julgando que não tem já
nada a temer de si mesma. E isto não é soberba - pois bem percebe que de si mesma não pode nada
- senão pela muita confiança em Deus, mas sem discrição. Não olha a que ainda tem fracas asas.
Pode sair do ninho e Deus tira-a dele para fora, mas ainda não é para voar; porque as virtudes não
estão fortes, nem tem experiência para enfrentar os perigos, nem sabe o mal que faz em confiar em
si.
15. Isto foi o que a mim me arruinou. E para isto, como para tudo, há grande necessidade de mestre
e trato com pessoas espirituais. Bem creio eu que alma que Deus traz a este estado - se ela não deixa
de todo em todo a Sua Majestade -, Ele não a deixará de favorecer nem a deixará perder. Mas
quando cair, como tenho dito, olhe, olhe por amor do Senhor, não a engane o demônio levando-a a
deixar a oração -como fez a mim - por uma falsa humildade, como já tenho dito e muitas vezes o
quisera dizer.
Confie na bondade de Deus, que é maior de que todos os males que podemos fazer e não se lembra
da nossa ingratidão, quando, reconhecendo o que somos, queremos voltar à Sua amizade. Nem se
recorda das mercês que nos tem feito para por elas nos castigar; antes ajudam a, perdoar-nos mais
depressa, como a gente que já era de Sua casa e tem comido - como dizem - o seu pão.
Lembrem-se das Suas palavras e vejam o que fez comigo: mais me cansei eu de O ofender, que Sua
Majestade de me perdoar. Nunca Ele se cansa de dar nem se podem esgotar Suas misericórdias; não
nos cansemos nós de receber.
Seja bendito para sempre, Amém, e louvem-nO todas as criaturas.
CAPÍTULO 20. Trata da diferença que há entre a união e arroubamento. Declara o que é
arroubamento e diz alguma coisa sobre o bem que existe na alma que o Senhor, pela Sua bondade,
faz chegar a Ele. Enumera os efeitos que produz. É muito para admirar.
1. Quereria eu saber declarar, com o favor de Deus, a diferença que há a entre união e
arroubamento. Arroubamento ou rapto ou o que chamam vôo de espírito ou arrebatamento, é tudo o
mesmo. Digo que estes diferentes nomes são tudo uma e mesma coisa e também se chama êxtase. É
grande a vantagem que leva à união; seus efeitos são muito maiores e realiza outras muitas
operações. É que a união parece princípio, meio e fim; e assim é quanto ao interior; mas tal como
estes outros favores são iras em mais alto grau, assim também produz efeitos interior e
exteriormente. Declare isto o Senhor, como tem feito no demais, porque certo é que, se Sua
Majestade não me tivesse dado a entender o modo e maneira de poder dizer alguma coisa disto, eu
não o saberia.
2. Consideremos agora que esta última água, de que falamos, é tão Copiosa que, se não fora não o
consentir a vida temporal, poderíamos crer que está conosco, aqui nesta terra, esta nuvem da
soberana Majestade. Mas, quando agradecemos este grande bem, acorrendo com obras, conforme as
nossas forças, o Senhor colhe e levanta a alma, digamos agora, à maneira como as nuvens colhem
os vapores da terra. Tenho ouvido assim isto: as nuvens ou o sol colhem os vapores, e sobe a nuvem
ao céu. Assim, Deus levanta a alma toda e leva-a consigo e começa-lhe a mostrar coisas do reino
que lhe tem preparado. Não sei se quadra a comparação, mas é, de fato, assim que isto se passa.
3. Nestes arroubamentos, parece que a alma não anima o corpo; e assim, este sente, muito ao vivo,
faltar-lhe o calor natural e vai-se esfriando, embora seja com grandíssima suavidade e deleite. Aqui
não há meio algum para se poder resistir. Na união, como estamos em terreno nosso, temos meios
para isso; embora seja com custo e à força, pode-se quase sempre resistir. Aqui, não só as mais das
vezes nenhum remédio há, senão que muitas, sem prevenção do pensamento, sem nenhuma ajuda
nossa, vem um ímpeto tão acelerado e forte, que sentis e vedes levantar-se esta nuvem ou esta águia
caudalosa e colher-vos em suas asas.
4. E digo que se entende e vos vedes levar e não sabeis para onde. É que, embora seja com deleite, a
fraqueza da nossa natureza faz-nos temer ao princípio. É preciso ser alma determinada e animosa -
muito mais do que para o que já ficou dito - para arriscar tudo, venha o que vier, e abandonar-se nas
mãos de Deus e ir, de bom grado, aonde nos levarem, pois vos levam por mais que vos pese. E é em
tanto extremo, que muitas vezes quisera eu resistir e emprego todas as minhas forças, em especial
algumas quando é em público e outras a sós, temendo ser enganada. Em algumas podia eu algo;
porém, com grande quebrantamento, como quem peleja com um homenzarrão forte, ficava eu
depois cansada. Outras, era impossível resistir, senão que me levava a alma e quase de ordinário a
cabeça ia atrás dela sem eu a poder deter e algumas vezes todo o corpo a ponto de o levantar.
5. Isto tem sido poucas vezes. Uma delas foi quando estávamos todas juntas no coro, e indo a
comungar, estando de joelhos. Deu-me isto grandíssima pena, pois me parecia coisa muito
extraordinária e logo haveria de ser muito notada. Assim mandei às irmãs - porque foi agora depois
que tenho ofício de prioresa - que não o dissessem. De outras vezes, em começando a ver que o
Senhor ia fazer o mesmo, estendia-me no chão e aproximavam-se a deter-me o corpo e, no entanto,
não deixava de se ver. Uma delas foi estando presente senhoras principais, pois era a festa do
Orago, durante o sermão. Supliquei muito ao Senhor que jamais quisesse dar-me mercês que
tivessem manifestações exteriores; porque eu já estava cansada de andarem tanta conta e aquela
mercê podia-ma fazer o Senhor sem que se percebesse. Parece que, por Sua bondade, foi servido de
me ouvir, pois nunca até agora a tenho tido; verdade é que foi há pouco. É assim que me parecia,
quando queria resistir, que desde a sola dos pés me levantavam forças tão grandes que não sei a que
as comparar. Eram com muito mais ímpeto que estas outras coisas de espírito de que tenho falado e
assim ficava feita em pedaços; porque é grande peleja. Enfim, de pouco aproveita quando o Senhor
quer, pois não há poder contra o Seu poder. Outras vezes é Ele servido em contentar-se com que
vejamos que nos quer fazer a mercê e que não falha por parte de Sua Majestade. Resistindo-se por
humildade, deixa os mesmos efeitos como se de todo se consentisse.
7. Naqueles a quem faz isto, grandes são os efeitos. O primeiro é mostrar-se o grande poder do
Senhor e como, da nossa parte, não temos nenhum, quando Sua Majestade quer, para deter o corpo -
e tão-pouco a alma - nem somos senhores dele. Mas, por muito que nos pese, vemos que há alguém
superior e que estas mercês são dadas por Ele e que, por nós mesmos, não podemos nada em nada.
Imprime-se muita humildade. E até confesso que me fez grande temor ao princípio, e grandíssimo,
ver-se assim levantar um corpo da terra, embora o espírito o leve atrás de si e seja com grande
suavidade, se não se resiste. Não se perdem os sentidos; eu, pelo menos, estava em mim, de maneira
que podia compreender que era levada. Mostra a majestade de quem pode fazer aquilo, que se
eriçam os cabelos e fica um grande temor de ofender a tão grande Deus. Este envolto em
grandíssimo amor que se cobra de novo a quem vemos que o tem tão grande, a um verme tão podre,
que parece não se contentar com levar a Si tão deveras a alma, senão que também quer o corpo,
ainda que tão mortal e de terra tão suja, como se tornou por tantas ofensas.
8. Também deixa um desapego estranho que eu não saberei dizer como é. Parece-me poder dizer
que é de algum modo diferente; digo que é mais que estas outras coisas de mero espírito. Porque
embora se esteja, quanto ao espírito, com todo o desapego das coisas, aqui parece que o Senhor quer
que até o corpo o ponha por obra. Cria-se uma estranheza nova para com as coisas da terra, que
torna a vida muito mais penosa.
9. Depois dá um pesar que nem a podemos atrair nem, uma vez que veio, se pode afastar. Muito
quisera eu dar a entender esta grande pena e creio que não poderei, mas alguma coisa direi se
souber. Há de notar-se que estas coisas, que agora digo, são muito lá para o fim, depois de todas as
visões e revelações que mais adiante descreverei; e no tempo em que costumava ter oração na qual
o Senhor me dava tão grandes gostos e regalos, agora, ainda que isto não cesse algumas vezes, o
mais freqüente e o mais habitual é esta pena que agora direi.
Ora é maior, ora menor. De quando é maior quero eu agora falar, porque, mais adiante; falarei
destes grandes ímpetos que me aconteciam quando o Senhor me quis dar os arroubamentos, os
quais não têm - a meu parecer - tanta comparação com isto como uma coisa muito corporal com
uma muito espiritual e creio que não ó encareço muito. É que parece que aquela pena - embora a
sinta a alma - é em companhia do corpo; ambos parecem participar dela, mas não com o extremo do
desamparo desta.
Para isto - como tenho dito - não pomos nada da nossa parte. Assim muitas vezes, a desoras, vem
um desejo que não sei como se move, e deste desejo que penetra toda a alma num momento, ela
começa a afligir-se tanto que sobe muito acima de si e de todo o criado. Põe-na Deus tão alheia a
todas as coisas que, por muito que se esforce, nenhuma lhe parece haver sobre a terra que a
acompanhe, nem ela o quisera, senão morrer naquela soledade. Se lhe falam e se ela quiser
empregar toda a sua força para responder, de pouco lhe aproveita, porque o seu espírito, por mais
que ela faça, não se aparta daquela soledade.
E, apesar de me parecer que Deus está então longíssimo, às vezes Ele comunica as Suas grandezas
do modo mais estranho que se pode pensar. Assim, nem se sabe dizer, nem creio que o acreditará
nem compreenderá quem não houver passado por isso; porque não é comunicação para consolar,
senão para mostrar a razão que a alma tem de se afligir por estar ausente do Bem que em Si possui
todos os bens.
10. Com esta comunicação cresce o desejo e o extremo de soledade em que se vê, com uma pena
tão aguda e penetrante, que, embora a alma já estivesse posta naquele deserto, parece-me que ao pé
da letra, se pode então dizer o que disse o real Profeta estando na mesma soledade: «Vigilavi, et
factus sum sicut passer solitarius in tecto». Senão que a ele, como santo, lhe daria o Senhor a sentir
isto num modo mais excessivo. E de tal maneira se me representa então este versículo, que me
parece que o vejo em mim e consola-me ver que outras pessoas - quanto mais sendo. elas tais -
sentiram tão grandes extremos de soledade.
Parece que a alma não está em si, senão no telhado ou teto de si mesma e de tudo quanto é criado,
porque até acima da parte muito superior da alma, me parece que ela está.
11. Outras vezes parece que a alma anda como necessitadíssima, dizendo e perguntando a si
mesma: «Onde está o teu Deus?». É de notar que a tradução destes versos eu não sabia bem qual era
e, depois que a compreendi, consolava-me de ver que mos havia trazido Deus à memória sem
procurá-lo eu. Outras vezes me recordava do que diz S. Paulo: que estava crucificado para o mundo.
Não digo que isto seja assim, bem vejo que não; mas parece-me estar assim a alma: nem do Céu lhe
vem consolo nem está nele, nem da terra o quer nem está nela; está como crucificada entre o céu e a
terra, padecendo sem lhe vir socorro de nenhum lado. Porque o que lhe vem do Céu, (que é, como
tenho dito, uma notícia de Deus admirável, muito acima de tudo o que podemos desejar), é para
mais tormento. Acresce o desejo de maneira que - a meu parecer - a intensidade da dor tira algumas
vezes os sentidos, mas está-se pouco tempo sem eles. Parecem transes de morte, mas traz consigo
um tão grande contentamento este padecer que não sei a que o comparar. É um duro martírio
saboroso, pois tudo quanto se pode representar à alma de coisas da terra - embora seja do que lhe
costuma dar mais prazer - nenhuma admite; logo parece lançá-lo para longe de si.
Bem entende que não quer senão a seu Deus, mas d'Ele não ama uma coisa particular; e a Ele todo
inteiro que quer e não sabe o que quer. Digo que não sabe porque a imaginação não lhe representa
nada; nem penso que, durante muito tempo daquele em que está assim, operam as potências, tal
como na união e no arroubamento as suspende o gozo, aqui é a dor.
12. Oh, Jesus! Quem pudesse dar isto bem a entender a V Mercê, até para que me dissesse o que é,
pois nisto anda agora sempre a minha alma! O mais normal -em se vendo desocupada - é ficar
nestas ânsias de morte e teme, quando vê que começam, porque sabe que não há de morrer. Mas,
chegada a isto, o que houvesse de viver quereria fosse neste padecer; embora seja tão excessivo que
a natureza mal o pode suportar. E assim, algumas vezes, quase me falta de todo o pulso - segundo
dizem algumas das irmãs que então se chegam a mim e isto já melhor entendem- e sinto as canas
dos braços abertas e as mãos tão hirtas; que eu, algumas vezes, não as posso juntar e assim me
ficam dores até ao outro dia nos pulsos e no corpo, parece que se desconjuntaram.
13. Eu bem penso que, alguma vez, há de ser o Senhor servido, se isto vai por diante como agora,
que se acabe com acabar a vida, pois, a meu parecer, bastante é para isso tão grande pena, mas eu
não o mereço. Então toda a ânsia é morrer. Não me recordo do purgatório nem dos grandes pecados
que tenho feito, pelos quais merecia o inferno. Tudo se me olvida com aquela ânsia de ver a Deus e
aquele deserto e soledade parece melhor à alma, que toda a companhia do mundo.
Se alguma coisa lhe pudesse dar consolo é tratar com quem tivesse passado por este tormento; mas
ver que, embora se queixe dele, ninguém, segundo lhe parece, a há de acreditar!
14. Também a atormenta ser esta pena tão grande que não quisera solidão como em outras, nem
companhia, a não ser com quem se pudesse queixar. É como quem tem a corda ao pescoço e se está
afogando, e procura tomar fôlego. Assim parece-me que este desejo de companhia provém da nossa
fraqueza, porque nos põe em perigo de morte. Isto sim, de certo, que o faz. E tenho-me visto nesse
perigo algumas vezes com grandes enfermidades e ocasiões, como tenho dito, e creio poder dizer
que este é tão grande como todos os outros. E assim, o desejo que o corpo e a alma têm de não se
apartarem, é que faz pedir socorro para tomar fôlego e, com dizê-lo e queixar-se e distrair-se, buscar
remédio para viver, muito contra a vontade do espírito ou da parte superior da alma que não
quereria sair desta pena.
15. Não sei se atino no que digo ou se o sei dizer, mas bem me parece isto passar-se assim. Veja, V.
Mercê que descanso posso ter nesta vida; pois o que eu tinha - que era a oração e soledade, porque
ali me consolava o Senhor - é agora habitual este tormento. É, porém, tão saboroso e a alma vê que
é de tanto preço, que já lhe quer mais que a todos os regalos que costumava ter. Parece-lhe mais
seguro, porque é caminho de cruz e contém em si um gosto de muito valor, a meu parecer, porque
dele não participa o corpo, senão da pena somente e é a alma a que padece e goza sozinha do gozo e
contento que dá este padecer.
Eu não sei como isto possa ser, mas sei que é assim. E, segundo penso, eu não trocaria esta mercê
que o Senhor me faz - e muito de Sua mão e, como tenho dito, nada adquirida por mim, porque é
muito sobrenatural -, por todas as que depois direi. Não digo todas juntas, senão tomada cada uma
de per si. E não se deixe de ter na lembrança que é depois de tudo o que vai escrito neste livro e em
que agora metem o Senhor.
16. Estando eu a princípio com temor (como me acontece quase sempre a cada nova mercê que me
faz o Senhor, até que, com a continuação, Sua Majestade me infunde segurança), Ele disse-me que
não temesse e a tivesse em mais conta que todas as que me tinha feito. Nesta pena se purifica a alma
e se lavra e purifica, tal como o ouro no crisol, a fim de melhor poder receber os esmaltes de seus
dons, e que ali se purificava pelo que havia de estar no purgatório.
Bem entendia que era grande mercê, mas fiquei com muita mais segurança e o meu confessor disseme
que era bom. E embora eu temesse por ser tão ruim, nunca pude crer que fosse mau; era antes o
muito sobrado bem que me fazia temer, lembrando-me quão mal o havia merecido. Bendito seja o
Senhor que tão bom é. Amém.
17. Vejo que saí do meu propósito, porque comecei a falar de arroubamentos e isto que disse é
ainda mais que arroubamento, e assim deixa os efeitos mencionados.
18. Agora voltemos aos arroubamentos, ao que neles acontece mais ordinário.
Digo que muitas vezes me parecia que me deixava o corpo tão leve que dele me tirava todo o peso;
e algumas era tanto à força que quase não me apercebia pôr os pés no chão. Pois, quando a alma
está em arroubamento, o corpo fica muitas vezes como morto, sem nada poder fazer por si e, tal
como é tomado por este arroubamento, assim se fica sempre: ou em pé, ou sentado, ou mãos
abertas, ou fechadas. E ainda que poucas vezes se percam os sentidos, algumas tem-me acontecido
de os perder de todo, porém poucas vezes e por pouco tempo. Normalmente, o sentido turva-se e,
ainda que nada possa fazer por si quanto ao exterior, não deixa de entender e ouvir, mas como de
longe.
Não digo que entenda e ouça quando está no maior auge deste ímpeto (chamo o mais subido, aos
momentos em que se perdem as potências, porque estão muito unidas com Deus), porque então não
vê, nem ouve, nem sente, segundo me parece. Mas, como disse na oração de união de que falei
atrás, esta transformação da alma toda em Deus dura pouco; mas no tempo que dura, nenhuma
potência se sente, nem sabe o que ali passa.
Deve ser para que não se compreenda enquanto vivemos na terra; pelo menos Deus não o quer; por
não termos capacidade para isso. Tenho-o visto por mim.
19. Perguntar-me-á V Mercê, como é que, algumas vezes, dura tanto tempo o arroubamento. Muitas
vezes, o que se passa comigo é que - como disse na oração passada - se goza com intervalos. E
muitas vezes se engolfa a alma ou a engolfa o Senhor em Si, para melhor dizer, e, detendo-a assim
um pouco, fica-se só com a vontade. Parece-me que este bulício destas outras duas potências é
como o de uma linguetazita destes relógios de sol, que nunca pára; mas quando o Sol da Justiça
quer, fá-las deter.
Digo que isto é por pouco tempo. Mas, como foi grande o ímpeto e levantamento de espírito,
embora estas potências tornem a mexer-se, permanece engolfada a vontade e, como senhora de
tudo, faz aquela operação no corpo. Já que as outras duas potências buliçosas a querem estorvar - e
de inimigos os menos - não a estorvem também os sentidos e assim faz com que estejam suspensos,
porque assim o quer o Senhor. E, na maior parte das vezes, estão cerrados os olhos, ainda que não
os queiramos cerrar; e, se alguma vez estão abertos - como já disse -, não se atina nem se adverte no
que vê.
20. Aqui é muito menos o que o corpo pode fazer por si, para que, quando se tornarem as potências
ajuntar, não haja tanto que fazer. Por isso, a quem o Senhor der isto, não se desconsole quando se
vir assim atado o corpo durante muitas horas e o entendimento e a memória às vezes distraídos.
Verdade é estarem estas potências habitualmente embebidas em louvores a Deus ou em querer
compreender o que se passou por elas e ainda para isto não estão bem despertas, senão como uma
pessoa que tenha dormido muito e sonhado e ainda não acabou de despertar.
21. Declaro-me tanto nisto porque sei que há agora, mesmo neste lugar, pessoas a quem o Senhor
faz estas mercês, e se os que as governam não passaram por isto, parecer-lhes-á, talvez, que elas hão
de estar como mortas no arroubamento, em especial se não são letrados e é lástima o que se padece
com os confessores que não o compreendem, como direi depois. Porventura não saberei o que digo;
V Mercê o entenderá, se eu atinar em alguma coisa, pois o Senhor já lhe deu experiência disso,
embora, como não é de há muito tempo, talvez não o tenha ainda considerado tanto como eu.
Assim é que, embora muito procure fazê-lo, durante bom espaço de tempo, não há forças no corpo
para se poder menear; todas as levou consigo a alma. Muitas vezes fica são - pois estava bem
enfermo.e cheio de grandes dores - e com mais capacidade, porque é grande coisa o que ali se dá, e
quer o Senhor algumas vezes, como repito, que goze o corpo, pois já obedece ao que a alma quer.
Depois que volta a si, se foi grande o arroubamento, acontece andarem um dia ou dois, e até três,
tão absortas as potências ou a alma como embevecida, que parece não anda em si.
22. Aqui é a pena de ter de voltar a viver; aqui o nascerem-lhe asas para bem voar; já lhe caiu a
penugem. Aqui se levanta já de todo a bandeira por Cristo, pois outra coisa não parece senão que o
alcaide-mor desta fortaleza subiu, ou que o levaram à torre mais alta a levantar bandeira por Deus.
Olha para os de baixo como quem está a salvo; já não teme os perigos, antes os deseja, como pessoa
a quem, de certa maneira, ali foi dada segurança da vitória. Aqui se vê mui claramente o pouco em
que tudo o que é cá de baixo se há de estimar e a ninharia que tudo é. Quem está no alto alcança
muita coisa; já não quereria querer, nem quisera ter livre alvedrio, e assim o suplica ao Senhor. Dálhe
as chaves da sua vontade.
Eis aqui o hortelão feito alcaide-mor: não quer fazer outra coisa senão a vontade do Senhor; nem
deseja ser senhor de si, nem de nada, nem dum pêro deste horto... Se alguma coisa de bom nele
houver, que o reparta Sua Majestade. Doravante não quer coisa própria, senão que Ele disponha de
tudo conforme à Sua glória e à Sua vontade.
23. E, de fato e em verdade, é assim que se passa tudo isto, se os arroubamentos são verdadeiros,
pois fica a alma com os efeitos e o aproveitamento que fica dito. Se estes assim não fossem,
duvidaria eu muito virem os arroubamentos de Deus; antes temeria não fossem os
«enraivecimentos» de que fala S. Vicente. Isto entendo-o eu, e tenho visto por experiência que a
alma fica aqui senhora de tudo e com liberdade, até em menos de uma hora, que nem ela se pode
conhecer. Bem vê que para isto nada fez, nem sabe como lhe foi dado tanto bem; mas entende
claramente o grandíssimo proveito que cada rapto destes traz consigo.
Não há quem o acredite se não passou por isto; e assim não dão crédito à pobre alma por a terem
visto tão ruim e tão depressa a verem pretender fazer coisas tão arriscadas; pois, logo dá em não se
contentar com servir em pouco ao Senhor, senão no mais que ela puder. Pensam que é tentação e
disparate. Se compreendessem que isto não nasce dela, senão do Senhor, a Quem já entregou as
chaves da sua vontade, não se espantariam.
24. Tenho para mim que uma alma, que chega a este estado, já não fala nem faz coisa alguma por si
mesma, senão que, de tudo quanto ela há de fazer, tem cuidado este Soberano Rei. Oh! valha-me
Deus, quão claramente se entende aqui a declaração do versículo do Salmo 54 e se vê, que tinha
razão o salmista - e a terão todos - em pedir asas de pomba! Entende-se claramente que é vôo o que
o espírito dá para se levantar acima de tudo o criado e de si mesmo, em primeiro lugar; mas é vôo
suave, é vôo deleitoso, vôo sem ruído.
25. Que senhorio tem uma alma a quem o Senhor chega até aqui, que a tudo atende sem ficar nisso
enredada! Que envergonhada está do tempo em que o ficava! Que espantada da sua cegueira! Como
lastima os que estão nela, em especial se é gente de oração e a quem Deus já regala! Quereria dar
vozes para dar a entender quão enganados estão, e mesmo assim o fazem algumas vezes e chovemlhe
sobre a cabeça mil perseguições. É tida por pouco humilde e por querer ensinar aqueles de quem
deveria aprender, especialmente se é mulher; então é que é o condenar, e não sem razão, porque não
sabem o ímpeto que a move, ao qual, às vezes, não pode resistir nem pode deixar de desenganar
aqueles a quem quer bem e deseja ver soltos do cárcere desta vida: pois menos não é, nem menos
lhe parece aquilo em que ela tem estado.
26. Dói-se do tempo em que olhou a pontos de honra e do engano que trazia em crer que era honra o
que o mundo chama honra. Vê que é grandíssima mentira e que todos andamos nela. Entende que a
verdadeira honra não é mentirosa, senão verdadeira, dando valor ao que, de fato, o tem e tendo o
que não é nada, por bagatela, pois é nada, e menos que nada, tudo o que se acaba e não contenta a
Deus.
27. Ri-se de si, do tempo em que tinha em alguma conta dinheiro e o cobiçava, ainda que nisto creio
que nunca - e assim é verdade - confessei culpa; bastante culpa era já tê-lo em algum apreço. Se
com ele se pudesse comprar o bem que agora vejo em mim, tê-lo-ia em muito; mas vejo que este
bem se ganha com deixá-lo de todo em todo. Que é isso que se compra com estes dinheiros que
desejamos? É coisa de preço? É coisa durável? Ou, para que o queremos.? Negro descanso se
procura, que tão caro custa! Muitas vezes se procura com eles o inferno e se compra fogo
perdurável e pena sem fim. Oh! se todos dessem em tê-los por terra sem proveito, que consertado
andaria o mundo! Sem tráfegos e com que amizade se tratariam todos! Se faltasse ti interesse de
honras e dinheiros, tenho para mim que se remediaria tudo.
28. Vê a grande cegueira dos prazeres e como com eles se compra trabalho e desassossego, até para
esta vida. Que grande inquietação! Que pouco contento! Quanto trabalho em vão!
Aqui não só vê as teias de aranha da sua alma e as faltas grandes, mas até um pozinho que haja, por
pouco que seja, porque o sol está muito claro. E assim, por muito que trabalhe uma alma em se
aperfeiçoar, se deveras a colhe este Sol, toda ela se vê muito turva. É como a água que está num
copo que, enquanto lhe não dá o sol, está muito clara, mas se vem a dar nela, vê-se que está cheia de
impurezas. Esta comparação é ao pé da letra. Antes de estar a alma neste êxtase, parece-lhe que traz
cuidado de não ofender a Deus e que, conforme às suas forças, faz quanto pode. Mas uma vez
chegada aqui, quando dá nela este Sol de Justiça que lhe faz abrir os olhos, vê tantas arestas que os
quereria voltar a fechar. Ainda não é tão filha desta águia real que possa fitar este sol sem
pestanejar. Mas, por pouco que os tenha abertos, vê-se toda turva. Recorda-se do verso que diz:
«Quem será justo diante de Ti?»
29. Quando olha para este Divino Sol fica deslumbrada com a claridade. Mas, como se vê a si
mesma, o barro lhe tapa os olhos, cegando esta pobre pombazita. Assim acontece-lhe, muitas vezes,
ficar cega de todo, absorta, espantada, desvanecida por tantas grandezas que vê.
Aqui se ganha a verdadeira humildade para não se lhe dar nada de dizer bem de si mesma nem que
outros o digam. É o Senhor do horto que reparte a fruta e não ela, e assim nada se lhe apega às
mãos. Todo o bem que possui vai endereçado a Deus; e se alguma coisa diz de si, é para Sua glória.
Sabe que ali não tem nada seu; ainda mesmo que queira, não o pode ignorar, porque vê a olhos
vistos que, por mais que lhe pese, lhos fazem fechar às coisas do mundo e tê-los abertos para
entender verdades.
CAPÍTULO 21. Prossegue e acaba este último grau de oração. Diz o que a alma sente por
continuar a viver no mundo; e como o Senhor a esclarece dos enganos deste mesmo mundo. Tem
boa doutrina.
1. Pois acabando o que ia dizendo, digo que Deus não tem aqui necessidade do consentimento da
alma; já Lho deu e sabe que voluntariamente se entregou em Suas mãos e que não O pode enganar,
porque é sabedor de tudo. Não é como aqui, que toda a vida está cheia de enganos e falsidades.
Quando pensais que tendes conquistado um coração, segundo se vos mostra, vindes a descobrir que
tudo é mentira. Não há quem viva em tanto desassossego, em especial se mete de permeio um
pouco de interesse.
Bem-aventurada a alma que o Senhor traz a entender verdades? Oh! que estado este para os reis!
Como lhes valeria muito mais procurá-lo, que grande senhorio! Que retidão não haveria no reino!
Quantos males não se escusariam e teriam evitado! Aqui não só teme perder vida nem honra por
amor de Deus. Que grande bem este para quem está. mais obrigado a olhar à honra do Senhor de
que à de todos os inferiores, pois hão de ser os reis a quem se segue! Por um ponto de aumento na
fé e por se ter dado em algumas coisas luz aos hereges, perderia mil reinos e com razão. É outro
ganho: o de um reino que não se acaba. Com uma só gota que uma alma prove da água que nele há,
lhe causa asco tudo o que é de cá. Pois, quando estiver de todo engolfada, que será?
2. Oh, Senhor! Se me désseis ocasião para dizer isto em altas vozes! Não me acreditariam, como
fazem a muitos que o sabem dizer de outro modo do que eu; mas, ao menos, sentir-me-ia satisfeita.
Teria em pouco a vida para dar a entender uma só verdade destas, julgo eu. Depois não sei o que
faria, que não há que fiar de mim. Sendo eu, porém, a que sou, dão-me tão grandes ímpetos de dizer
isto aos que governam, que me desfazem. E, por não poder mais, volto-me para Vós, Senhor meu, a
pedir-Vos remédio para tudo. E bem sabeis Vós que mui de boa vontade me despojaria das mercês
que me tendes feito, contanto que ficasse em estado de Vos não ofender, e as daria aos reis; porque
sei que seria impossível consentirem eles coisas que agora se consentem, nem deixar de haver
grandes bens.
3. Oh! Deus meu! Dai-lhes a entender aquilo a que estão obrigados, pois Vós os quisestes assinalar
na terra de modo que até tenho ouvido dizer que há sinais no céu quando levais algum deles.
Quando penso nisto, certo é, Rei meu, fazer-me devoção o Vós quererdes que, até nisto, eles
entendam que Vos devem imitarem vida, pois que, de algum modo, à sua morte, há sinal no céu
como quando Vós morrestes.
4. A muito me atrevo. Rasgue isto V. Mercê, se lhe parecer este mal e creia que lho diria melhor em
presença, se pudesse ou pensasse que me haviam de acreditar, porque os encomendo muito a Deus e
quereria fosse com proveito. Tudo isto faz aventurar a vida, que desejo muitas vezes perder; era
aventurar-me a ganhar muito por pouco preço. Porque não há já quem viva, vendo a olhos vistos o
grande engano em que andamos e a cegueira que trazemos.
5. Chegada uma alma aqui, não são só desejos o que ela tem por Deus; Sua Majestade dá-lhe forças
para os pôr por obra. Nenhuma coisa se lhe põe diante, em que pense podê-Lo servir, a que não se
abalance, e não faz nada, porque - como digo - vê claramente que tudo é nada, a não ser contentar a
Deus. Trabalho é o não haver coisa que se ofereça às que são de tão pouco préstimo, como eu. Sede
Vós, meu Deus, servido que venha tempo em que eu possa pagar algum cornado do muito que Vos
devo. Ordenai Vós, Senhor, como Vos aprouver, que esta Vossa serva Vos sirva em alguma coisa.
Mulheres eram outras e fizeram coisas heróicas por amor de Vós; eu não sirvo senão para tagarelar
e assim não quereis, Deus meu, meter-me em obras. Tudo quanto hei-de servir vai-se em palavras e
desejos e, ainda para isto, não tenho liberdade, porque, se porventura a tivera, faltaria em tudo.
Fortalecei Vós a minha alma e disponde-a primeiro, Bem de todos os bens e Jesus meu, e ordenai
logo modo e meios com que faça alguma coisa por Vós, porque não há já quem sofra receber tanto e
nada pagar. Custe o que custar, Senhor, não queirais que me apresente diante de Vós com as mãos
tão vazias, pois, conforme às obras, se há de dar o prêmio. Aqui está a minha vida, aqui está minha
honra e minha vontade; tudo Vos dei; Vossa sou, disponde de mim conforme Vos agradar. Bem
vejo, meu Senhor, o pouco que posso; mas chegada a Vós, do alto desta atalaia donde se vêem as
verdades, não Vos afastando Vós de mim, tudo poderei. Se Vos afastais, por pouco que seja, irei
para onde estava, que era o inferno.
6. Oh! o que é uma alma, que se vê aqui, ter de voltar a tratar com todos, olhar e ver a farsa desta
vida tão mal concertada, gastar tempo a cuidar do corpo, dormindo e comendo! Tudo a cansa. Não
sabe como fugir. Vê-se encadeado e presa. Sente, então, mais verdadeiramente o cativeiro que
trazemos com os corpos e a miséria da vida. Conhece a razão que tinha S. Paulo de suplicar a Deus
que o livrasse dela, dá vozes como ele, pede a Deus liberdade, como outras vezes tenho dito. Aqui,
porém, é com tão grande ímpeto, que muitas vezes parece que a alma quer sair do corpo a buscar
esta liberdade, já que não a tiram dele. Anda como que vendida em terra estranha e o que mais a
aflige é não encontrar muitos que se queixem com ela e peçam isto mesmo, senão que o mais
normal é desejar viver. Oh! se não estivéssemos apegados a nada, nem tivéssemos posto o nosso
contento em coisa alguma da terra, como a pena que sentiríamos em viver sempre sem Ele,
temperaria o medo da morte com o desejo de gozar da vida verdadeira!
7. Considero algumas vezes, que, se alguém como eu, apesar de ter tão tíbia caridade e tão incerto o
descanso verdadeiro por não o terem merecido minhas obras, sinto muitas vezes - só por o Senhor
me ter dado esta luz - tão grande pesar de me ver neste desterro, qual não seria o sentimento dos
santos? Que devem ter passado São Paulo, a Madalena e outros semelhantes em quem tão crescido
estava este fogo de amor de Deus? Devia ser para eles um contínuo martírio. Parece-me que me dá
algum alívio e descanso o trato de pessoas a quem posso falar destes desejos; digo, desejos com
obras, porque há algumas pessoas que se julgam estar desprendidas de tudo e assim o apregoam e
havia de ser, pois o seu estado e os muitos anos que há, desde que algumas começaram caminho de
perfeição, assim o pede. Contudo, esta alma conhece bem, e de longe, os que o são só de palavras
ou os que já confirmaram estas palavras com obras. É que já compreendem o pouco proveito que
dão uns e o muito os outros. É coisa que, quem tem experiência, vê muito claramente.
8. São, pois, estes os efeitos que realizam os arroubamentos quando são do espírito de Deus.
Verdade é que há mais e menos. Digo menos, porque no princípio, embora cause estes efeitos, não
estão experimentados com obras e assim não se pode entender que os têm. Também vai crescendo a
alma em perfeição, procurando que não haja memória de teia de aranha e isto requer algum tempo.
E quanto mais crescem nela o amor e a humildade, maior cheiro exalam de si estas flores de
virtudes, para ela e para os outros. Verdade é que, num rapto destes, o Senhor pode operar de
maneira a que fique à alma pouco trabalho em adquirir a perfeição. Ninguém poderá mesmo
acreditar, se não o tiver experimentado, o que o Senhor dá aqui; não há - a meu parecer - diligência
nossa que a isso tanto possa chegar. Não digo que, com o favor do Senhor, trabalhando a alma
durante muitos anos e servindo-se dos meios que descrevem os que têm escrito sobre oração, seus
princípios e meios, não cheguem à perfeição e a muito desapego com grande custo. Mas não será,
porém, em tão breve tempo nem sem nenhum esforço da nossa parte, como obra aqui o Senhor, pois
determinadamente tira a alma da terra e lhe dá senhorio sobre quanto nela há, e isto ainda que nesta
alma não haja mais merecimentos que havia na minha, o que sem encarecimento posso dizer, não
era quase nenhum.
9. O motivo pelo qual o faz Sua Majestade, é porque quer, e fá-lo como quer, e ainda que não haja
na alma disposição, dispõe-na para receber o bem que Sua Majestade lhe dá. Assim, nem sempre
concede suas mercês por as terem merecido, cultivando bem o horto, embora esteja muito certo que,
a quem faz isto bem e procura desapegar-se, não deixe Sua Majestade de regalar. É, porém, de Sua
vontade mostrar algumas vezes Sua grandeza na terra que é mais ruim, como tenho dito, e dispõe-na
para todo o bem, de maneira que pareça, em certo modo, que já não é livre para voltar a viver com
ofensas a Deus, como costumava. Tem o pensamento tão habituado em entender o que é verdadeira
verdade, que tudo o mais lhe parece jogo de meninos. Ri-se consigo mesma algumas vezes, quando
vê pessoas sérias, de oração e religião, fazer muito caso duns pontos de honra que esta alma tem já
debaixo dos pés. Dizem que é discrição e autoridade do seu estado para maior proveito. Sabe ela, no
entanto, muito bem que mais aproveitaria num só dia em que pospusesse aquela autoridade por
amor de Deus, que, com ela, em dez anos.
10. Assim vive esta alma vida trabalhosa e sempre com cruz, mas vaiem grande aumento. Quando
se dá a conhecer aos que, com ela tratam, vêem que está lá muito no cume; e dentro em pouco
estará muito mais melhorada, porque Deus a vai favorecendo sempre mais. É alma sua, é Ele que a
tem já a Seu cargo e assim a ilumina, dir-se-ia que com a Sua assistência a está sempre guardando
para que não O ofenda, e favorecendo e despertando para que O sirva. Chegando a minha alma a
ponto de que Deus lhe fizesse esta tão grande mercê, cessaram os meus males e o Senhor deu-me
fortaleza para sair deles. Já tanto se me dava estar metida nas ocasiões e com pessoas que me
costumavam distrair, como não. Antes, até me ajudava o que me costumava causar dano. Tudo me
era depois meio para conhecer melhor a Deus e amá-Lo e ver o que Lhe devia e ter pesar do que eu
havido sido.
11. Bem entendia eu que aquilo não vinha de mim nem o tinha ganho com minhas diligências, pois
não tinha ainda havido tempo para isso. Sua Majestade havia-me dado fortaleza para isso, só por
Sua bondade.
Até agora, desde que o Senhor me começou a fazer esta mercê destes arroubamentos, sempre tem
vindo crescendo esta fortaleza e Ele, por Sua bondade, tem-metido de Sua mão para eu não voltar
atrás. Nem mesmo me parece - e assim é - que faço alguma coisa de minha parte, senão que entendo
claramente que o Senhor é O que opera.
E, por isto, me parece que almas a quem o Senhor faz estas mercês, indo com humildade e temor,
sempre compreendendo que o Senhor mesmo é Quem o faz, e nós quase nada, se podem meter entre
qualquer gente. Por mais divertida e viciosa que seja, nada fará ao caso, nem a moverá em nada;
antes, como tenho dito, a ajudará e ser-lhe-á motivo para tirar muito maior proveito. São já almas
fortes que o Senhor escolhe para fazer bem a outras, ainda que esta fortaleza não lhes venha delas.
Pouco a pouco, em chegando até aqui uma. alma, o Senhor vai-lhe comunicando segredos muito
grandes.
12. Aqui é que são as verdadeiras revelações, êxtases e as grandes mercês e visões; e tudo contribui
para humilhar e fortalecer a alma e faz com que tenha em menos conta as coisas desta vida e
conheça mais claramente as grandezas do prêmio que o Senhor tem preparado para os que O
servem.
Praza a Sua Majestade que a grandíssima liberalidade que tem tido com esta miserável pecadora
sirva, de algum modo, para que se esforcem e animem os que isto lerem, a deixar tudo, de todo em
todo, por Deus. Pois, se tão cabalmente paga Sua Majestade que ainda nesta vida se vê claramente o
prêmio e o lucro que têm os que O servem, que será na outra?
CAPÍTULO 22. Trata de quão seguro caminho é para os contemplativos não levantarem o espírito
a coisas altas se o Senhor o não levanta, e como a Humanidade de Cristo deve ser caminho para
chegar à mais alta contemplação. Fala dum engano em que andou algum tempo. É muito
proveitoso este capítulo.
1. Uma coisa quero dizer, segundo julgo, importante; se parecer bem a V. Mercê, servirá de aviso,
pois poderá ser que lhe seja útil. Nalguns livros que tratam de oração, diz-se: que embora a alma
não possa por si chegar a este estado, porque tudo quanto o Senhor opera nela é obra sobrenatural,
ela poderá contudo ajudar-se, levantando o espírito de tudo o criado e elevando-o com humildade,
depois de ter andado muitos anos pela via purgativa e aproveitado na iluminativa. Não sei bem
porque dizem iluminativa; julgo ser a dos que vão aproveitando.
E avisam muito nestes livros que apartem de si toda a imaginação corpórea e se acheguem a
contemplar na Divindade; porque, segundo dizem, embora seja a Humanidade de Cristo, embaraça
ou impede, nos que vão já tão adiante, a mais perfeita contemplação.
Trazem, a este propósito, o que o Senhor disse aos Apóstolos quando da vinda do Espírito Santo,
digo, quando subiu aos Céus. Parece-me a mim que, se eles tivessem então a fé que tiveram depois
da vinda do Espírito Santo e cressem que o Senhor era Deus e Homem, não lhes seria impedimento
- para a mais alta contemplação - o pensar na Sagrada Humanidade; pois isto não foi dito à Mãe de
Deus, ainda que O amasse mais que todos.
É que a estes lhes parece - como esta obra é toda espírito - que qualquer coisa corpórea a pode
estorvar ou impedir. E assim, o que se há de procurar, é considerar que Deus está em todas as partes
e ver-se engolfado n' Ele.
Isto parece-me bem, algumas vezes; mas apartar-se, de todo, de Cristo e fazer entrar na mesma
conta a este divino Corpo com as nossas misérias e com tudo o criado, não o posso sofrer! Praza a
Sua Majestade que eu me saiba dar a compreender.
2. Eu não o contradigo, porque são letrados e espirituais e sabem o que dizem e, por muitos
caminhos e vias, leva Deus as almas. Como tem levado a minha é o que eu quero agora dizer, e no
perigo em que me vi por me querer conformar com o que lia, que no mais não me intrometo. Creio
bem que, quem chegar a ter união e não passar adiante - digo, a arroubamentos e visões e outras
mercês que Deus faz às almas - terá o dito como o melhor, como eu fazia. Mas se eu me tivesse
atido a isso, creio que nunca teria chegado ao ponto em que estou presentemente. Pois, a meu
parecer, isto é engano; bem pode ser que seja eu a enganada; mas direi o que me aconteceu.
3. Como eu não tinha mestre, lia por estes livros, por onde, pensava eu, iria pouco a pouco
entendendo alguma coisa. Depois entendi que, se o Senhor não me ensinasse, eu poderia depreender
pouco dos livros, porque não era nada o que entendia até que Sua Majestade mo dava a entender,
por experiência, nem sabia o que fazia. E começando, pois, a ter um pouco de oração sobrenatural -
digo de quietude - procurava desviar toda coisa corpórea, conquanto não ousasse ir levantando a
alma, porque - como fui sempre tão ruim - via que era atrevimento. Parecia-me, no entanto, sentir a
presença de Deus, e assim é, e procurava ficar-me recolhida com Ele. É oração saborosa, se Deus
ali ajuda, e o deleite é muito. E como vi aquele lucro e aquele gosto, já não havia quem me fizesse
voltar à Humanidade, pois que, de fato, me parecia em verdade, que me era impedimento.
Oh! Senhor da minha alma e meu Bem, Jesus Crucificado! Não me recordo vez alguma desta
opinião que tive, que não me dê pena e me pareça que Vos fiz uma grande traição, ainda que por
ignorância.
4. Tinha eu sido muito devota de Cristo toda a minha vida. Porque isto foi já para o fim (digo no
fim, antes que o Senhor me fizesse estas mercês de arroubamentos e visões), e era-o em tanto
extremo que durou muito pouco o permanecer nesta opinião e assim sempre eu voltava ao meu
costume de folgar com este Senhor, em especial quando comungava. Quisera eu sempre trazer
diante dos olhos Seu retrato e imagem, já que não podia trazê-Lo tão esculpido em minha alma
como quisera. Será possível, Senhor meu, que coubesse em meu pensamento - sequer, uma hora -
que Vós me havíeis de impedir um maior bem? De onde me vieram a mim todos os bens senão de
Vós?
Não quero pensar que nisto tivesse tido culpa porque me magoa muito. Decerto que era ignorância e
assim Vós quisestes, por Vossa bondade, remediá-lo, dando-me quem me tirasse deste erro e que
depois eu Vos visse tantas vezes - como adiante direi - para que mais claramente entendesse quão
grande era o erro e o dissesse a muitas pessoas, como tenho feito e agora o escrevo aqui.
5. Tenho para mim que a causa de muitas almas não aproveitarem mais e de não chegarem a uma
muito grande liberdade de espírito, quando chegam a ter oração de união, é por isto mesmo. Julgo
haver duas razões em que posso fundar a minha opinião; e bem pode ser não diga nada, mas o que
disser, tenho-o visto por experiência, pois se encontrava muito mal a minha alma até o Senhor lhe
dar luz; porque todos os seus gozos eram como que a sorvos e, saindo deles, não se achava com a
Sua companhia, como depois a teve para os trabalhos e tentações.
Uma, é que há um tanto de pouca humildade, tão solapada e escondida, que não se sente. E, quem
será o soberbo ou miserável, como eu, que embora houvesse trabalhado toda a sua vida com quantas
penitências e orações e perseguições se possam imaginar, não se dê por muito rico e muito bem
pago, quando o Senhor lhe consentir estar ao pé da Cruz com S. João? Não sei em que juízo cabia
não se contentar com isto, a não ser no meu, que de todas as maneiras se perdia no que havia de
ganhar.
6. Se todas as vezes - por condição da natureza ou enfermidades - não se pode pensar na Paixão por
ser penoso, quem nos impede de estar com Ele depois de ressuscitado, pois tão perto O temos no
Sacramento, onde já está glorificado? E não O vemos tão fatigado e feito em pedaços, escorrendo
sangue, cansado pelos caminhos, perseguido daqueles a quem fazia tanto bem, não acreditado pelos
Apóstolos. Sim, porque, certamente, nem há quem sofra o estar a pensar sempre em tantos trabalhos
como os que passou. Ei-Lo pois aqui sem dor, cheio de glória, esforçando a uns, animando a outros,
antes que subisse aos Céus, companheiro nosso no Santíssimo Sacramento, que parece não estava
na Sua mão apartar-se de nós um só momento! E que tenha estado na minha o apartar-me eu de
Vós, Senhor meu, para melhor Vos servir!... Que, enfim, quando Vos ofendia não Vos conhecia...
Mas que, conhecendo-Vos, pensasse ganhar mais por este caminho! Oh! que mau caminho levava,
Senhor! Bem me parece que ia sem caminho, se Vós não me voltásseis a pôr nele; pois vendo-Vos
junto de mim, logo vi todos os bens. Não metem vindo trabalho que, olhando-Vos a Vós, tal
estivestes diante dos juízes, não se torne fácil de sofrer. Com tão bom amigo presente, com tão
esforçado capitão, que foi o primeiro no padecer, tudo se pode sofrer. É ajuda e dá força; nunca
falta; é Amigo verdadeiro. E vejo eu claramente e vi depois que, para contentar a Deus e para Ele
nos fazer grandes mercês, quer que seja por mãos desta Humanidade Sacratíssima, na qual Sua
Majestade disse que Se deleita. Muitas, muitas vezes o tenho visto por experiência e tem-mo dito o
Senhor. Tenho visto claramente que por esta porta temos de entrar, se queremos que a soberana
Majestade nos mostre grandes segredos.
7. Assim, V. Mercê, senhor, não queira outro caminho, embora esteja no cume da contemplação;
por aqui vai seguro. É por este Senhor nosso que nos vêm todos os bens. Ele o ensinará; olhando a
Sua vida, é o melhor modelo. Que mais queremos com um tão bom Amigo ao nosso lado, que não
nos deixará nos trabalhos e tribulações, como fazem os do mundo? Bem-aventurado quem de
verdade O amar e sempre O trouxer ao pé de si. Vejamos o glorioso São Paulo que, dir-se-ia, ter
sempre na boca Jesus, como quem O tinha bem no coração. Eu tenho reparado com cuidado, depois
que isto compreendi, em alguns santos grandes contemplativos, e não iam por outro caminho. São
Francisco dá mostras disto nas Chagas; Santo António de Pádua no Menino; São Bernardo
deleitava-se na Humanidade; Santa Catarina de Sena e outros muitos que V. Mercê saberá melhor
do que eu.
8. Isto de apartar-se do que é corporal bom deve ser certamente, pois gente tão espiritual o diz; mas,
a meu parecer, há de ser estando a alma muito aproveitada, porque até isto, claro está, se há de
buscar ao Criador por meio das criaturas? Tudo é conforme à mercê que o Senhor faz a cada alma:
nisso não me intrometo. O que eu queria dar a entender é que não há de entrar nesta conta a
Sacratíssima Humanidade de Cristo. E entenda-se bem este ponto, em que eu quereria saber-me
explicar.
9. Quando Deus quer suspender todas as potências, como temos visto nos modos de oração que
ficam ditos," claro está que, embora não o queiramos, se nos tira esta presença. Que se vá então em
boa hora! Ditosa tal perda que é para se gozar mais do que nos parece se ter perdido; porque então
se emprega a alma toda em amar a Quem o entendimento tem trabalhado por conhecer. Ama o que
não compreendeu e goza do que não poderia tão bem gozar se não se fosse perdendo a si mesma
para, como digo, mais ganhar.
Mas que nós, de propósito e com cuidado, nos acostumemos a não procurar, com todas as nossas
forças, trazer sempre diante de nós - e prouvera ao Senhor que fosse sempre - esta Sacratíssima
Humanidade, isto digo que não acho bem: é andar a alma no ar, como dizem; porque me parece não
tem arrimo, por mais que imagine andar cheia de Deus. É grande coisa, enquanto vivemos e somos
humanos, trazer a Deus humanado diante de nós. Não O querer trazer assim presente, é o outro
inconveniente que há. Do primeiro, já comecei a falar; há um pouco de falta de humildade, em
querer levantar a alma antes que o Senhor a levante e em não se contentar com meditarem coisa tão
preciosa e querer ser Maria antes de ter trabalhado como Marta. Quando o Senhor quer que o seja,
até mesmo logo desde o primeiro dia, não há que temer; façamos por ser comedidos, como creio já
ter dito outra vez. Este argueirito de pouca humildade, embora pareça que não é nada, causa muito
dano a quem quer aproveitar na contemplação.
10. Voltando ao segundo ponto, não somos anjos, temos corpo. Querermos fazer de anjos estando
na terra - e tanto na terra como eu estava - é desatino. Pois que, normalmente, o pensamento precisa
de arrimo, se bem que algumas vezes a alma saia de si, e em muitas outras ande tão cheia de Deus
que não tenha necessidade de coisa criada para se recolher. Isto, porém, não é tão habitual: e no
meio de negócios e perseguições e trabalhos, quando não se pode ter tanta quietação, e em tempo de
aridez, mui bom amigo é Cristo, porque O vemos Homem e com fraquezas e trabalhos, e serve-nos
de companhia. Havendo costume, é muito fácil supô-Lo ao pé de nós, ainda que haverá ocasiões em
que nem uma nem outra coisa se poderá fazer.
Para isto, é bom o que tenho dito: não nos apresentarmos a procurar consolações de espírito.
Abraçar-se com a cruz, venha o que vier, é grande coisa. Desamparado ficou este Senhor de toda a
consolação; sozinho O deixaram nos trabalhos. Não O deixemos nós que, para mais subirmos, Ele
nos dará melhor a mão, do que a nossa própria diligência. Ausentar-se-á quando vir que assim
convém e o Senhor queira arrancar a alma a si mesma, como já disse.
11. Muito contenta a Deus ver uma alma que, com humildade, mete por terceiro a Seu Filho e O
ama tanto que, mesmo querendo Sua Majestade elevá-la a muito grande contemplação - como tenho
dito - se reconhece indigna, dizendo com São Pedro: Apartai-Vos de mim, Senhor, que sou um
homem pecador.
Isto tenho-o eu experimentado; desta arte tem Deus levado a minha alma. Outros irão - como tenho
dito por outro atalho. O que eu tenho entendido é que todo este edifício da oração vai fundado em
humildade e, quanto mais se abaixa uma alma na oração, mais a levanta Deus. Não me recordo de
haver-me Ele feito mercê muito assinalada, das que adiante direi, que não fosse estando eu desfeita
por me ver tão ruim. E ainda procurava Sua Majestade dar-me a entender coisas para me ajudar a
conhecer, que eu nem saberia imaginar.
Tenho para mim que tudo quanto a alma faça de sua parte para se ajudar nesta oração de união,
embora lhe pareça que logo, logo lhe aproveita, como coisa mal fundada, virá muito depressa a cair.
E tenho medo que assim nunca chegará à verdadeira pobreza de espírito, que consiste não em
buscar consolo e gosto na oração - que os da terra já estão deixados -, mas sim em ter consolação
nos trabalhos, por amor d'Aquele que sempre viveu neles, e ficar aquietada no meio desses
trabalhos e securas. Pois, ainda que algo se sinta, não é para inquietar e dar pena, como têm algumas
pessoas que, se não estão sempre trabalhando com o entendimento e sentindo devoção, julgam que
tudo vai perdido; como se, pelo seu trabalho, merecessem tão grande bem!
Não digo que não procurem isto e não estejam com cuidado diante de Deus, mas que não se matem
se não puderem ter nem sequer um bom pensamento, como de outras vezes já tenho dito. Somos
servos sem proveito; o que é que julgamos poder?
12. Mais quer o Senhor que conheçamos isto e andemos feitos uns asnozitos a puxar à nora da água,
que fica dita, porque, embora tapados os olhos e não entendendo o que fazem, tirarão mais água do
que o hortelão com toda a sua diligência. Com liberdade se há de andar neste caminho, entregues às
mãos de Deus. Se Sua Majestade quiser subir-nos a ser dos da Sua câmara e segredo, vamos de boa
vontade; se não quiser, sirvamos em ofícios baixos e não nos sentemos no primeiro lugar, como
tenho dito algumas vezes. Deus tem mais cuidado do que nós e sabe para o que cada um é. De que
serve governar-se a si quem tem já dada toda a sua vontade a Deus?
A meu parecer, isto muito menos se pode sofrer aqui do que no primeiro grau de oração e prejudica
muito mais, pois são bens sobrenaturais. Se alguém tiver má voz, por muito que se esforce por
cantar, não se lhe tornará boa; se Deus quiser dar-lha, não necessita dar vozes primeiro.
Supliquemos-Lhe, pois, que sempre nos faça mercês, rendida a alma, mas confiando na grandeza de
Deus. E visto que lhe dão licença para estar aos pés de Cristo, procure não se tirar dali; esteja como
quiser; imite a Madalena que, quando estiver forte, Deus a levará ao deserto.
13. Assim, V. Mercê, até que encontre quem tenha mais experiência do que eu e o saiba melhor,
fique-se nisto. Se são pessoas que começam a gostar de Deus, não as acredite, porque a estas lhes
parece aproveitarem e gozarem mais ajudando-se? Oh! quando Deus quer, como vem a descoberto,
sem estas ajudazitas! Por mais que façamos, arrebata o espírito, tal como um gigante pegaria numa
palha, e não há resistência que valha! Como, pois, acreditar que, quando Deus quer, fique à espera
que voe o sapo por si mesmo! E ainda mais dificultoso e pesado me parece levantar-se o nosso
espírito, se Deus o não levanta, porque está carregado de terra e de mil impedimentos. Aproveitalhe
pouco o querer voar; embora, por seu natu ral, tenha mais capacidade para isso do que o sapo,
está porém tão metido em lama que a perdeu por sua culpa.
14. Pois quero concluir com isto: sempre que pensarmos em Cristo, lembremo-nos do amor com
que nos fez tantas mercês e quão grande no-lo mostrou Deus em nos dar tal penhor do amor que Ele
nos tem, pois amor gera amor. E ainda que seja muito no princípio e nós muito ruins, procuremos ir
sempre vendo isto e despertando-nos para amar; porque, uma vez que o Senhor nos faz mercê de
que este amor se nos imprima no coração, ser-nos-á tudo fácil e aproveitaremos muito em breve e
mui sem trabalho.
Dê-nos Sua Majestade - pois sabe o muito que nos convém - pelo muito que Ele rios teve e pelo Seu
glorioso Filho, que, tanto à Sua custa, no-lo mostrou. Amém.
15. Uma coisa quereria eu perguntar a V. Mercê: como é que o Senhor, em começando a fazer
mercês tão sublimes a uma alma, como é pô-la em perfeita contemplação, não a deixa logo perfeita
de todo como, em boa razão, havia de ficar? Sim, de certo, em boa razão, porque quem tão grande
mercê recebe, não mais havia de querer consolos da terra. Pois, no arroubamento, que parece traz
consigo efeitos muito mais subidos e quanto mais, mais desapegada a alma fica, e estando ela já
mais habituada a receber mercês, porque motivo não a deixa então logo o Senhor com perfeição nas
virtudes, como depois fará com o andar do tempo, se num momento o mesmo Senhor, quando
chega, a pode deixar santificada?
Isto quero eu saber, pois não o sei. Mas bem compreendo que é diferente a fortaleza que Deus
infunde a princípio, quando a mercê não dura mais que um abrir e fechar de olhos e quase só se
sente pelos efeitos que deixa, ou quando ela vem mais à larga. Muitas vezes, parece-me que talvez
seja por a alma não se dispor então de pronto e totalmente, até que o Senhor, pouco a pouco, a vai
criando e faz com que ela se determine e lhe dá forças de varão para que de todo dê com tudo no
chão. E tal como fez com a Madalena, num breve instante, fá-lo com outras pessoas, na medida em
que estas deixam operar Sua Majestade. Não acabamos de crer que, ainda nesta vida, dá Deus cem
por um.
16. Também me vinha ao pensamento esta comparação: ainda que seja o mesmo, o que se dá aos
que vão mais adiantados e aos que estão no princípio, no entanto, é como um manjar de que comem
muitas pessoas: as que comem pouquito, ficam só com o bom sabor por pouco tempo; às que
comem mais, ajuda a sustentá-las; às que comem muito, dá vida e força. E tantas vezes se pode
comer e tão abundantemente deste manjar de vida, que já se não coma de outra coisa, que saiba
bem, afora ele. É que vêem o proveito que lhes faz e têm já tão afeito o paladar a esta suavidade,
que mais quereriam não viver, a terem de comer outras coisas, que não servem senão para tirar o
bom sabor que o bom manjar lhes deixou.
Assim, também uma santa companhia não produz, com a sua conversação, tanto fruto em um dia
como em muitos; e tantos podem estes ser, que fiquemos como ela, se Deus nos favorece. Enfim,
tudo depende do que Sua Majestade quer dar e a quem o quer dar. Mas vai muito no determinar-se
quem já começa a receber esta mercê, a desapegar-se de todo, tendo-a no que é de razão.
17. Também me parece que Sua Majestade anda a experimentar, ora a um, ora a outro, a ver quem
Lhe tem amor. E descobre-lhes Quem é, com um deleite tão soberano, capaz de avivar a fé, se esta
estiver amortecida, daquilo que um dia nos dará, dizendo: «Vede, que isto é uma gota do
grandíssimo mar de bens». Não deixa nada por fazer àqueles a quem ama. Tal como vê que O
recebem, assim dá e Se dá a Si mesmo. Quer a quem Lhe quer. E como sabe querer bem! e que bom
Amigo!
Oh! Senhor da minha alma; quem tivesse palavras para dar a entender o que dais aos que se fiam de
Vós, e o que perdem os que chegam a este estado e se ficam apegados a si mesmos! Não queirais
Vós isto, Senhor; pois, mais do que isto fazeis Vós, vindo a uma pousada tão ruim como a minha.
Bendito sejais para sempre.
18. Torno a suplicar a V. Mercê que, se tratar estas coisas de oração, que escrevi, com pessoas
espirituais, que elas o sejam de verdade. Porque, se não sabem mais do que um caminho ou se nele
se ficaram a meio, não poderão atinar. E há algumas almas a quem Deus leva desde logo por
caminho muito subido e parecer-lhes-á que assim os outros também ali poderão tirar proveito,
aquietando o entendimento sem se aproveitarem do auxílio de coisas corpóreas, e quedar-se-ão
secas como paus. E algumas, tendo já gozado um pouco de quietude, logo pensam que, assim como
têm uma coisa, podem fazer a outra, e em lugar de aproveitar, desaproveitarão, como tenho dito.
Assim, para tudo é preciso experiência e discrição. O Senhor no-las dê por Sua bondade.
CAPÍTULO 23. Volta a tratar do discurso da sua vida e diz como começou a tratar de maior
perfeição e por que meios. É proveitoso para as pessoas que dirigem almas de oração, para que
saibam como se hão de haver nos princípios e o proveito que lhes faz saberem-nas levar.
1. Quero agora voltar aonde deixei a narração da minha vida - pois creio me detive mais do que
devia - para que se entenda melhor o que está por dizer. Daqui por diante, é outro livro novo, digo,
outra vida nova. Até aqui era a minha, a que tenho vivido, desde que comecei a declarar estas coisas
de oração; vivia Deus em mim, ao que me parecia, porque reconheço que me era impossível, em tão
pouco tempo, sair de tão maus costumes e obras. Seja o Senhor louvado, pois me livrou de mim
mesma.
2. Começando a fugir das ocasiões e a dar-me mais à oração, começou o Senhor a fazer-me as
mercês, como quem desejava, segundo parecia que eu as quisesse receber. Começou Sua Majestade
a dar-me, muito de ordinário, oração de quietude e muitas vezes a de união que durava muito
tempo.
Como nesses tempos tinha acontecido haver grandes ilusões em mulheres, e enganos a que as tinha
levado o demônio, comecei a temer, pois era tão grande o deleite e a suavidade que sentia, e muitas
vezes sem o poder evitar, ainda que, por outra parte, visse em mim uma grande segurança de que
aquilo era Deus, em especial quando estava em oração, e que saía dela muito melhorada e com mais
fortaleza. Mas, em me distraindo um pouco, tornava a temer e a pensar se o demônio quereria,
fazendo entender que aquilo era bom: suspender-me o entendimento para me tirar a oração mental e
não pudesse pensar na Paixão nem me aproveitar do entendimento. Isto me parecia a mim maior
perda, pois não o compreendia.
3. Mas, como Sua Majestade já me queria dar luz para que não O ofendesse e conhecesse o muito
que Lhe devia, cresceu este medo de tal sorte, que me fez buscar com diligência pessoas espirituais
com quem tratar. Já tinha notícia de algumas, porque tinham vindo aqui os da Companhia de Jesus,
b a quem eu, sem conhecer a nenhum, era muito afeiçoada, só por saber o modo de vida e oração
que levavam. Mas não me achava digna de falar-lhes, nem forte para obedecer-lhes, o que me fazia
mais temer, porque tratar com eles e ser a que era, parecia-me coisa difícil.
4. Nisto andei algum tempo, até que, não podendo já com a muita bateria e temores que sentia em
mim, me resolvi a tratar com uma pessoa espiritual para lhe perguntar que oração era a que eu tinha,
e pedir que me esclarecesse, se ia errada, e fazer tudo o que pudesse para não ofender a Deus. É que
a falta de fortaleza, que eu via em mim - como tenho dito -, me fazia andar tão tímida.
Que engano tão grande, valha-me Deus! Por querer ser boa me apartava do Bem! Nisto deve-se
empenhar muito o demônio no princípio da virtude, porque eu não podia acabar de me resolver.
Sabe ele que todo o remédio duma alma está em tratar com amigos de Deus, e assim não havia
maneira de eu a isto me determinar. Esperava emendar-me primeiro, como quando deixei a oração,
e porventura nunca o faria, porque já estava tão metida em coisitas de mau costume que não
acabava de entender que eram maus, que precisava da ajuda de outros e darem-me a mão para me
levantar. Bendito seja o Senhor que a Sua foi, enfim, a primeira.
5. Como vi ir tão adiante meu temor, porque crescia a oração, pareceu-me que nisto haveria algum
grande bem ou grandíssimo mal. Bem entendia eu ser já coisa sobrenatural o que eu tinha, porque
algumas vezes não lhe podia resistir; e tê-lo quando eu queria, era escusado. Pensei, para comigo,
que não tinha outro remédio senão procurar ter consciência limpa e apartar-me de toda a ocasião,
embora fosse de pecados veniais, porque, sendo espírito de Deus, claro estava o lucro; se era o
demônio, procurando eu contentar ao Senhor e não O ofender, pouco dano me podia fazer, antes ele
ficaria com perda. Determinada a isto e suplicando sempre a Deus que me ajudasse, procurando
fazer assim alguns dias, vi que a minha alma não tinha força para, sozinha, caminhar com perfeição,
em razão de algumas afeições que tinha a coisas que bastavam para estragar tudo, embora não
fossem tão más.
6. Falaram-me de um clérigo letrado que havia neste lugar, que começava o Senhor a dar a conhecer
às pessoas pela sua bondade e boa vida. Procurei falar-lhe por meio dum cavaleiro santo que há
neste lugar. É casado, mas de vida tão exemplar e virtuosa e de tanta oração e caridade, que em todo
ele resplandecia sua bondade e perfeição. E com muita razão, porque grande bem tem vindo a
muitas almas por meio dele, pois ainda que não o ajude seu estado, como tem tantos talentos, não
pode deixar de fazer bem com eles. É de muito entendimento e muito aprazível para com todos. Sua
conversação não é pesada, mas tão suave e amena, juntamente com ser reta e santa, que dá grande
contento aos que tratam com ele. Tudo ordena para grande bem das almas com quem conversa e
parece que não tem outra preocupação, senão fazer por todos o que ele vê ser possível e contentar a
todos.
7. Pois este bendito e santo homem foi, com a sua indústria, ao que me parece, o princípio para que
minha alma se salvasse. Espanta-me a sua humildade; segundo creio, há pouco menos de quarenta
anos que tem oração - não sei se são menos dois ou três - e leva toda a vida de perfeição que,
segundo parece, lhe permite o seu estado. Tem uma mulher tão grande serva de Deus e de tanta
caridade, que por ela não se perde. Enfim, como mulher que Deus escolheu para dar a quem Ele
sabia havia de ser tão grande servo Seu. Tinha parentes seus casados com os meus. E também tinha
muita comunicação com outro grande servo de Deus, que estava casado com uma prima minha.
8. Por esta via, procurei que me viesse falar este Clérigo, que digo, tão servo de Deus, que era muito
seu amigo. Com este pensava eu confessar-me e ter por mestre. Pois, trazendo-o para que me
falasse, e eu com grandíssima confusão por me ver diante de homem tão santo, dei-lhe parte da
minha alma e oração. Confessar-me não quis, dizendo estar muito ocupado e assim era. Começou
com santa determinação a levar-me a ser forte - que razão havia de o estar segundo a oração que viu
que eu tinha - para que de nenhuma maneira ofendesse a Deus.
Eu, como vi sua determinação tão de pronto em coisitas que eu, como digo, não tinha fortaleza para
me sair logo com tanta perfeição, afligi-me e, porque vi que tomava as coisas da minha alma como
coisa que numa vez se havia de acabar, eu via que era mister muito mais cuidado.
9. Enfim, entendi que não era pelos meios que ele me dava por onde eu me havia de remediar,
porque eram para almas mais perfeitas; e eu, embora nas mercês de Deus estivesse adiantada, estava
muito nos princípios nas virtudes e mortificação. E creio que, se não tratasse senão com ele,
certamente nunca medraria a minha alma. A aflição que me dava por ver que eu não fazia - nem me
parece podia - o que ele me dizia, bastava para perder a esperança e deixar tudo.
Algumas vezes me maravilho, que sendo ele pessoa que tem graça particular para levar almas a
Deus, como o Senhor não foi servido de que entendesse a minha nem se quisesse encarregar dela.
Vejo que tudo foi para maior bem meu, para que eu conhecesse e tratasse com gente tão santa como
a da Companhia de Jesus.
10. Desta vez, ficou combinado com este cavaleiro santo, que ele me viesse a ver algumas vezes.
Aqui se viu a sua grande humildade: querer tratar com pessoa tão ruim como eu. Começou a visitarme
e a animar e a dizer que não pensasse que, num dia, me havia de apartar de tudo; pouco a pouco
o faria Deus. Em coisas bem levianas - dizia-me - havia ele estado alguns anos e não as tinha
podido vencer. Oh! humildade, que grandes bens fazes onde estás e aos que se chegam a quem a
tem! Contava-me este santo (e a mim me parece que com razão lhe posso dar este nome) fraquezas,
que a sua humildade lhe fazia parecer que o eram, para meu remédio. Vendo-as conforme ao seu
estado, nem eram faltas nem imperfeições e; conforme ao roeu, era grandíssima imperfeição tê-las.
E não digo isto sem finalidade, porque parece que me alongo em minúcias e importa tanto para uma
alma começar a aproveitar e fazê-la voar (quando ainda não tem penas, como dizem), que não o
acreditará senão quem tiver passado por isto. E, porque espero em Deus que V. Mercê há de
aproveitar muito, o digo aqui, pois toda a minha salvação esteve em ele saber-me curar e ter
humildade e caridade para estar comigo e paciência para ver que em tudo eu não me emendava. Ia
com discrição, pouco a pouco, ensinando-me a maneira de vencer o demônio. Eu comecei a ter-lhe
tão grande afeto, que não havia para mim maior descanso do que os dias em que o via, embora
fossem poucos. Quando tardava, logo me afligia muito parecendo-me que, por ser tão ruim, não me
vinha ver.
11. Como ele foi percebendo as minhas tão grandes imperfeições, e até seriam pecados (embora
depois que tratei com ele estivesse mais emendada), e como lhe disse eu as mercês que Deus me
fazia para que me esclarecesse, disse-me que não ia uma coisa com outra, que aqueles regalos eram
já de pessoas que estavam muito adiantadas e mortificadas. Assim não podia deixar de temer muito,
porque lhe parecia mau espírito em algumas coisas (ainda que não se determinasse), mas que
pensasse bem tudo ô que entendia da minha oração e lho dissesse. E o trabalho era que eu não sabia
dizer nem pouco nem muito o que era a minha oração. É que esta mercê, de saber compreender o
que é e sabê-lo dizer, só há pouco ma deu Deus.
12. Como me disse isto, com o medo que eu trazia, foi grande a minha aflição e lágrimas; porque
certamente desejava contentar a Deus e não me podia persuadir que aquelas mercês fossem do
demônio, mas temia que, pelos meus grandes pecados, me cegasse Deus para não o compreender.
Lendo livros para ver se saberia dizer a oração que tinha, achei num que se chama Subida do
Monte, no que toca à união da alma com Deus, todos os sinais que eu tinha naquele não pensar nada
quando tinha aquela oração. Marquei com uns traços as passagens que eram e dei-lhe o livro para
que ele e o outro clérigo, de quem tenho falado, santo e servo de Deus, o vissem e me dissessem o
que havia de fazer. Se assim lhes parecesse, deixaria de todo a oração, pois, para que me havia eu
de meter nesses perigos se, ao cabo de vinte anos - ou quase que a tinha, não havia saído com outro
lucro, senão com enganos do demônio. Melhor seria, pois, não a ter; ainda que também isto se me
tornasse difícil, porque eu já tinha experiência de como ficava a minha alma sem oração. Assim via
tudo trabalhoso, como quem está metido num rio que, para qualquer lado que vá, teme maior perigo
e se está quase afogando. É este um trabalho muito grande, e, como estes, tenho passado muitos,
como direi adiante; pois ainda que pareça que não importa, talvez seja proveitoso entender como se
há de provar o espírito.
13. E é grande, por certo, o trabalho que se passa e é necessário tino, em especial com mulheres,
porque é muita a nossa fraqueza e poderia chegar a muito o mal, dizendo-lhes mui claramente que é
demônio; mas sim, examiná-lo muito bem e apartá-las dos perigos que pode haver e avisá-las em
segredo para que ponham muito cuidado e o tenham eles, porque assim convém.
Nisto falo como quem lhe custou grande trabalho não o terem tido algumas pessoas com quem tratei
da minha oração. Perguntando uns aos outros - e isto por bem - me fizeram muito mal, porque se
têm divulgado coisas que estariam bem secretas - pois não são para todos -, e parecia que as
publicava eu. Creio que, sem culpa deles, o tem permitido o Senhor para que eu padecesse. Não
digo que diziam o que tratava com eles em confissão; mas, como eram pessoas, as quais, por meus
temores, eu dava conta para que me esclarecessem, parecia-me a mim que o haviam de calar. Nunca
ousei, contudo, calar coisa alguma a pessoas semelhantes.
Digo, pois, que se avise com muita discrição, animando-as e dando tempo ao tempo, que o Senhor
as ajudará, como tem feito comigo; que, se assim não fora, grandíssimo dano me fizera, segundo
sou temerosa e medrosa. Com o grande mal de coração que tinha, espanto-me como me não fez
muito mal.
14. Dando-lhe, pois, o livro e feita a relação da minha vida e pecados, por junto, o melhor que pude
(e não em confissão por ser secular, mas dei bem a conhecer quão ruim era), os dois servos de Deus
viram, com grande caridade e amor, o que me convinha.
Chegada a resposta, que eu com grande temor esperava e tendo pedido a muitas pessoas que me
encomendassem a Deus e eu mesma com muita oração naqueles dias, com grande aflição veio ter
comigo aquele cavaleiro santo e disse-me que, no parecer de ambos, era obra do demônio. O que
me convinha era tratar com um Padre da Companhia de Jesus, pois, se eu o chamasse, dizendo que
tinha necessidade, viria e que, em confissão geral lhe desse conta de toda a minha vida e da minha
condição, e tudo com muita clareza. Por virtude do sacramento da confissão, lhe daria Deus mais
luz; eram muito experimentados em coisas do espírito, que não saísse do que me dissesse, porque
estava em muito perigo, se não houvesse quem me governasse.
15. A mim deu-me tanto temor e pena, que não sabia que fazer; tudo era chorar. E, estando eu num
oratório muito aflita, e não sabendo o que havia de ser de mim, li num livro - que parece o Senhor
mo pôs nas mãos - em que São Paulo dizia: que Deus é muito fiel, e nunca consente que os que O
amam, sejam enganados pelo demônio. Isto me consolou muito.
Comecei a tratar da minha confissão geral e a pôr por escrito todos os males e bens; a relação da
minha vida e o mais claramente que eu entendi e soube, sem deixar nada por dizer.
Recordo-me de que, depois que escrevi, vendo tantos males e quase nenhum bem, me deu uma
aflição e tristeza muito grande. Também me dava pena que em casa me vissem tratar com gente tão
santa como os da Companhia de Jesus, porque temia a minha ruindade e parecia-me que ficava
assim obrigada a não mais o ser e deixar-me de meus passatempos e, se isto não fizesse, que era
pior; e assim, pedi à sacristã e à porteira que não o dissessem a ninguém. Aproveitou-me pouco,
pois acertou estar à porta, quando me chamaram, quem o dissesse por todo o convento. Que
embaraços não põe o demônio e que temores a quem se quer achegar a Deus!
16. Tratando com aquele servo de Deus - que o era muito e bem avisado - de toda a minha alma,
ele, como quem bem entendia esta linguagem, me declarou o que era e me animou muito. Disse ser
espírito de Deus, mui conhecidamente, mas que era preciso voltar de novo à oração, porque não ia
bem fundada, nem tinha começado a entender a mortificação (e assim era, pois até nem o nome me
parece compreendia) e que de nenhum modo deixasse a oração, antes me esforçasse muito, pois
Deus me fazia tão particulares mercês; quem sabia se, por meu meio, não quereria o Senhor fazer
bem a muitas pessoas e outras coisas. Parece que profetizou o que depois o Senhor tem feito
comigo; e que teria muita culpa se não correspondesse às mercês que Deus me fazia.
Em tudo me parecia que falava nele o Espírito Santo, para curar a minha alma, segundo se
imprimiam nela as suas palavras.
17. Fez-me grande confusão. Levou-me por meios que parecia que de todo me tornava outra. Que
grande coisa é entender uma alma! Disse-me que tivesse todos os dias oração sobre um passo da
Paixão, me aproveitasse dele e não pensasse senão na Humanidade e que resistisse àqueles
recolhimentos e gostos quanto pudesse, de modo que não lhes desse lugar, até que ele me dissesse
outra coisa.
18. Deixou-me consolada e esforçada, e o Senhor me ajudou e a ele para que entendesse a minha
índole e como me havia de governar. Fiquei determinada a não sair do que me mandasse em coisa
nenhuma; e assim fiz até hoje. Louvado seja o Senhor que metem dado graça para obedecer a meus
confessores, embora imperfeitamente. E quase sempre têm sido destes benditos homens da
Companhia de Jesus, embora os tenha seguido imperfeitamente, como digo.
Conhecida melhoria começou a ter a minha alma, como agora direi.
CAPÍTULO 24. Prossegue o mesmo assunto e diz como foi progredindo a sua alma, depois que
começou a obedecer e o pouco que lhe aproveitava resistir às mercês de Deus e como Sua
Majestade lhas ia fazendo maiores.
1. Ficou minha alma tão branda desta confissão, que parecia não havia coisa a que não me
dispusesse; e assim comecei a mudar em muitas coisas, ainda que o confessor não apertasse
comigo, antes parecia fazer pouco caso de tudo. Com isto movia-me mais, porque me levava por via
de amar a Deus e como quem me deixava libertada e não me constrangia, se à isto me não pusesse
por amor.
Estive assim quase dois meses, pondo todo o meu esforço em resistir aos regalos e mercês de Deus.
Quanto ao exterior, via-se a mudança, porque já o Senhor começava a dar-me ânimo para passar por
algumas coisas que pareciam exageros como diziam pessoas que me conheciam e até as da mesma
casa. E do que eu antes fazia, tinham razão, que era em extremo; mas, naquilo a que era obrigada
pelo hábito e profissão que tinha, ficava muito aquém.
2. Lucrei, deste resistir a gostos e regalos de Deus, o ensinar-me Sua Majestade; porque antes eu
julgava que, para Ele me dar regalos na oração, era preciso muito retiro e quase não ousava bulir. Vi
depois o pouco que isso fazia ao caso; porque, quanto mais procurava distrair-me, mais me cobria o
Senhor daquela suavidade e glória que parecia me rodeava toda e que por nenhuma parte poderia
fugir e assim era. Tinha eu tanto cuidado, que me causava pesar. O Senhor tinha-o maior para me
fazer mercês e em assinalar a Sua ação muito mais do que costumava, nestes dois meses, para que
eu melhor entendesse que mais não estava em minha mão. Comecei a sentir de novo amor à
Sacratíssima Humanidade. Começou-se a assentar a oração como edifício que já tinha alicerce e eu
a afeiçoar-me a mais penitência, de que andava descuidada por serem tão grandes minhas
enfermidades. Disse-me aquele varão santo que me confessou, que algumas coisas não me
poderiam fazer mal. Porventura me dava Deus tanto mal porque, como eu não fazia penitência,
queria-ma dar Sua Majestade. Mandava-me fazer algumas mortificações não muito saborosas para
mim. Tudo fazia, porque me parecia que mo mandava o Senhor, e dava-lhe graça para que mo
mandasse de maneira a que eu lhe obedecesse. Minha alma ia já sentindo qualquer ofensa que
fizesse a Deus, por pequena que fosse, de maneira que, se tinha alguma coisa supérflua, não podia
descansar até que a eliminasse. Fazia muita oração para que Deus me tivesse de Sua mão; pois
tratava com Seus servos, não permitisse que voltasse atrás, o que me parecia fora grande delito, e
eles perderem crédito por mim.
3. Neste tempo veio a este lugar o Padre Francisco, que era duque de Gandia e havia já alguns anos
que, deixando tudo, entrara na Companhia de Jesus. Procurou o meu confessor, e o cavaleiro que
tenho dito - e também me vinha ver - que eu lhe falasse e desse conta da oração que tinha, pois
sabia que ele ia muito adiante em ser muito favorecido e regalado por Deus; como a quem tinha
deixado muito por Ele, já nesta vida lho pagava. Assim, depois de me ter ouvido, disse-me que era
espírito de Deus e lhe parecia já não era bem resistir-Lhe mais. Até então havia sido bem feito, mas
que começasse sempre a oração por um passo da Paixão e, se depois o Senhor me levasse o espírito,
Lhe não resistisse, mas o deixasse levar a Sua Majestade, não o procurando eu. Como quem ia bem
adiante, deu o remédio e o conselho, pois fazia nisto muito a experiência. Disse que já era erro o
resistir mais. Eu fiquei muito consolada e o cavaleiro também; alegrou-se muito com que dissesse
que era espírito de Deus e sempre me ajudava e dava conselhos no que podia, que era muito.
4. Neste tempo mudaram o meu confessor deste para outro lugar, o que eu senti mui muito, porque
pensei havia de voltar a ser ruim e não me parecia possível achar outro como ele. Ficou a minha
alma como num deserto, muito desconsolada e temerosa. Não sabia que fazer de mim. Uma parenta
minha tratou de me levar para sua casa e logo cuidei de procurar outro confessor nos da Companhia.
Foi o Senhor servido que eu começasse a tomar amizade com uma senhora viúva, de muita
qualidade e oração, que tratava muito com eles. Fez-me confessar a seu confessor e estive em sua
casa muitos dias; vivia ali perto. Eu consolava-me por tratar muito com eles porque, só de entender
a santidade de seu trato, era grande o proveito que a minha alma sentia.
5. Este Padre começou a pôr-me em maior perfeição. Dizia-me que, para de todo contentar a Deus,
não havia de deixar nada por fazer; também com muita prudência e brandura, porque não estava
ainda a minha alma nada forte, mas sim muito tenra, em especial em deixar algumas amizades que
tinha. Embora não ofendesse a Deus com elas, era muita a afeição e parecia-me a mim que era
ingratidão deixá-las e assim dizia-lhe que, pois não ofendia a Deus, porque havia eu de ser
desagradecida. Disse-me que encomendasse o caso a Deus por alguns dias e rezasse o hino Veni
Creator para que me inspirasse naquilo que era o melhor. Tendo estado um dia muito em oração e
suplicado ao Senhor que me ajudasse a contentá-Lo em tudo, comecei o hino; e estando-o a dizer,
veio-me um arroubamento tão súbito que quase me tirou de mim, coisa de que eu não pude duvidar,
por que foi muito claro. Foi a primeira vez que o Senhor me fez esta mercê de arroubamentos.
Compreendi estas palavras: já não quero que tenhas conversações com homens, senão com anjos. A
mim me causou isto muito espanto, porque o movimento da alma foi grande e muito em espírito me
foram ditas estas palavras e assim atemorizei-me, embora, por outra parte, me desse grande consolo,
o qual me ficou depois de sossegar. A meu parecer, isso foi causado pela novidade.
6. Isto tem-se cumprido bem, pois nunca mais tenho podido assentarem amizade, nem ter
consolação, nem amor particular, senão a pessoas que percebo que o têm a Deus e O procuram
servir. Se não entendo isto, ou que é pessoa que trata de oração, é para mim cruz penosa tratar com
alguém. Nem isso está na minha mão, nem faz ao caso serem parentes ou amigos. Isto é assim sem
dúvida, segundo o meu parecer.
7. Desde aquele dia fiquei tão animosa para deixar tudo por Deus, como se Ele, naquele momento -
não me parece ter sido mais - quisesse deixar outra a Sua serva. Assim, não foi necessário que mo
tornassem a mandar; porque o confessor, como me via tão apegada a isto, não tinha ousado dizer
determinadamente que o fizesse. Devia estar aguardando que o Senhor operasse, como o fez. Nem
pensei podê-lo conseguir, porque já eu mesma o tinha tentado, mas era tanta a pena que me dava
que, como coisa em que me parecia não haver inconveniente, o deixava. Aqui já me deu o Senhor
liberdade e força para o pôr por obra. Assim o disse ao confessor e deixei tudo, conforme me
mandou. Fez não pouco proveito à pessoa com quem eu tratava, verem mim esta determinação.
8. Seja Deus bendito para sempre que, num momento, me deu a liberdade que eu, com todas as
diligências quantas tinha feito em muitos anos, não tinha podido alcançar por mim; ainda que
fazendo muitas vezes tão grande esforço, que me prejudicava à saúde. Como foi feito por Quem é
poderoso e Senhor verdadeiro de tudo, nenhuma pena me causou.
CAPÍTULO 25. Trata da maneira como se entendem estas falas que Deus faz à alma, sem se
ouvirem, e de alguns enganos que pode haver nisso e em que se conhecerá quando é engano. É
muito proveitoso para quem se encontrar neste grau de oração, porque é muito bem explicado e de
grande doutrina.
1. Parece-me que será bom declarar como é este falar de Deus à alma e o que ela sente, para que V.
Mercê o entenda? Porque, desde esta vez que disse, em que o Senhor me fez esta mercê, até agora,
tem sido muito freqüente, como se verá no que está por dizer.
São umas palavras muito bem articuladas, mas que não se ouvem com os ouvidos corporais, e se
entendem muito mais claramente que se se ouvissem. Deixar de ó entender, por mais que se resista,
é impossível. Cá na terra, quando não queremos ouvir, podemos tapar os ouvidos ou prestar atenção
a outra coisa, de modo a que, embora se ouça, não se perceba. Nestas práticas, porém, que Deus faz
à alma, não há nenhum remédio, porque, embora me pese, me fazem escutar e estar o entendimento
tão atento para compreender aquilo que Deus quer que entendamos, que não há querer ou deixar de
querer. Aquele que tudo pode, quer que entendamos que se há de fazer o que Ele quer, e mostra-Se
verdadeiro Senhor nosso. Isto tenho eu experimentado muito, porque andei quase dois anos
resistindo, pelo grande medo que trazia, e ainda agora tento fazê-lo algumas vezes, mas de pouco
me aproveita:
2. Quisera eu declarar os enganos que pode aqui haver, (ainda que, para quem tenha muita
experiência, julgo que serão poucos ou nenhum; mas esta experiência há de ser muita) e a diferença
que há, de quando o espírito é bom ou mau, ou como também pode ser apreensão do mesmo
entendimento - o que poderia acontecer - ou falar o mesmo espírito a si mesmo. Isto não sei se pode
ser, mas ainda hoje me pareceu que sim.
Quando é obra de Deus, tenho bem provado que, em muitas coisas que. se me diziam dois ou três
anos antes, todas se têm cumprido, e até agora nenhuma tem saído mentira; e outras coisas onde se
vê claramente ser espírito de Deus, como depois se dirá.
3. Parece-me a mim que, estando uma pessoa a encomendar uma coisa a Deus, com grande afeto e
preocupação, poderá afigurar-se-lhe que percebe alguma coisa, se isso se fará ou não, e isto é muito
possível. Embora quem tenha entendido desta outra maneira, verá claramente o que é, porque é
muita a diferença. Se é coisa fabricada pelo entendimento, por muito subtil que seja, ele entende
que é ele quem ordena algo e quem fala. O que não é outra coisa senão alguém estar a compor o que
há de dizer ou a escutar o que outro lhe diz, e verá o entendimento, que então não escuta, pois que
actua; e as palavras que ele assim fabrica são como coisa surda, fantasiada, e não têm a claridade
destas outras. Aqui está na nossa mão tanto o distrair-nos como calar quando falamos; neste não há
meio.
E outro sinal, maior que todos, é que estas falas do entendimento não operam. Esta outra que diz o
Senhor, são palavras e obras. Mesmo que as palavras não infundam devoção, mas repreensão, logo
à primeira dispõem uma alma e a habilitam, enternecem, dão luz, regalam e aquietam. E se a alma
estava com aridez ou alvoroço ou desassossego de alma como com a mão lho tira; ainda melhor:
dir-se-ia que o Senhor quer que se entenda que é poderoso e que Suas palavras são obras.
4. Parece-me que esta diferença é, nem mais nem menos como a que há quando falamos ou
ouvimos. Porque o que eu falo, como já disse, eu o vou ordenando com o entendimento; mas se me
falam, não faço mais que ouvir sem nenhum trabalho. No primeiro caso é como uma coisa que nós
não podemos bem deter minar se é ou não, é como alguém que está meio adormecido; no outro é
voz tão clara, que não se perde uma sílaba do que se ouve dizer. E acontece ser em momentos em
que o entendimento e a alma estão tão alvorotados e distraídos, que não acertariam a ajustar uma
boa razão e, no que lhe dizem encontram cozinhadas grandes sentenças que ela, mesmo estando
muito recolhida, não poderia alcançar e, à primeira palavra, como digo, de todo a mudam.
Especialmente no arroubamento, em que as potências estão suspensas, como se entenderão coisas
que antes não tinham ainda vindo à memória? Como virão então, se quase não opera, e a
imaginação está como embevecida?
5. Advirta-se que quando se vêem visões ou quando se ouvem estas palavras, nunca é - a meu
parecer - enquanto a alma está unida no mesmo arroubamento; porque então, como já deixei
declarado, creio que na segunda água, de todo se perdem todas as potências e, segundo me parece,
ali nem se pode ver, nem entender, nem ouvir. Está toda ela debaixo de outro poder, e neste tempo,
que é muito breve, não me parece que o Senhor lhe deixe liberdade para nada. Passado este breve
tempo, em que a alma fica ainda em arroubamento, é que se dá isto que digo; porque ficam as
potências de modo que, embora não estejam perdidas, quase nada operam; estão como absortas e
incapazes de concertar razões. E há tantas para se perceber a diferença entre umas e outras que, se
alguma vez se engana, não serão muitas.
6. E digo que, se é alma exercitada e está de sobreaviso, o verá muito claramente; porque, deixadas
à parte outras coisas por onde se vê o que tenho dito, o que o entendimento fabrica não produz
nenhum efeito, nem a alma o admite. É que a estas coisas (por muito que nos pese), não se dá
crédito, antes se vê que é tudo devaneio do entendimento; é quase como não se fazer caso duma
pessoa que se sabe ter frenesim.
Mas a outra fala é como se ouvíssemos uma pessoa muito santa ou letrada e de grande autoridade,
que sabemos que não nos há de mentir. E ainda é baixa comparação, porque estas palavras trazem
algumas vezes consigo uma tal majestade que, sem nos lembrarmos de quem as diz, se são de
repreensão fazem tremer; e se são de amor, fazem desfazer-se a alma em amar. E são coisas que,
como tenho dito, estavam bem longe da memória e, de repente, dizem-se sentenças tão grandes que,
para as poder ordenar, seria preciso muito tempo. De modo nenhum, julgo eu, se pode então ignorar
não ser coisa fabricada por nós.
Assim, nisto não há que me deter, pois só por maravilha me parece que pode haver engano em
pessoa experiente, se ela mesma, com advertência, não se quer enganar.
7. Tem-me acontecido muitas vezes, se tenho alguma dúvida, não acreditar o que me dizem e
pensar que será ilusão da imaginação (isto, depois de passar o arroubamento, que então é impossível
duvidar); mas depois de muito tempo, vemos isso cumprir-se, porque o Senhor faz com que fique na
memória e que não se possa olvidar. O que é formado pelo entendimento é como um primeiro
movimento do pensamento que passa e se esquece. Este outro é como obra que, embora passe o
tempo e se esqueça um pouco, não é tão de todo que se perca a memória do que, enfim, se disse,
salvo se já foi há muito tempo, ou se são palavras de favor ou doutrinação. As de profecia, porém,
não esquecem, a meu parecer, ao menos a mim, ainda que tenha pouca memória.
8. E torno a dizer que, se uma alma não for tão desalmada que queira fingir (o que seria muito mal
feito), dizendo que entende ou ouve, não sendo assim; deixar de ver claramente que é ela quem
compõe as palavras e as diz dentro de si, parece-me que isso não leva caminho, se é que entendeu o
espírito de Deus, porque, se assim não for, por toda a vida poderá permanecer nesse engano e
parecer-lhe que ouve, embora eu não sei como isso possa ser. Ou esta alma o quer entender ou não.
Se se está moendo com o que ouve e de nenhum modo quereria entender coisa alguma, por causa de
mil temores e outras muitas razões que há para desejar estar quieta em sua oração sem estas coisas,
porque dá tanto lugar ao entendimento para compor e ordenar razões? Pois é preciso haver tempo
para isto. Aqui, porém, sem perder nenhum, ficamos ensinadas e entendem-se coisas que parece
seria preciso um mês para as ordenar, e o mesmo entendimento e alma ficam espantados dalgumas
coisas que se entendem.
9. Isto é assim, e quem tiver experiência verá que, ao pé da letra, é tudo tal como digo. Louvo a
Deus porque assim o soube dizer. E acabo dizendo que - segundo me parece - sendo tais coisas,
fantasia do entendimento, quando quiséssemos as poderíamos entender, e até, de cada vez que
temos oração, nos poderia parecer que ouvimos. Mas com estas outras não é assim; pois estarei
muitos dias em que, embora queira entender alguma coisa, é impossível; e quando outras vezes não
quero, como já disse, tenho de a entender.
Parece-me que, quem quisesse enganar os outros dizendo que percebeu ser de Deus aquilo que
forjou por si mesmo, pouco lhe custa dizer que o ouviu com os ouvidos corporais; e assim é certo
que, de verdade, jamais pensei que havia outra maneira de ouvir nem de entender; até que o vi por
mim e assim, como disse, me custou grande trabalho.
10. Quando é obra do demônio, não só não deixa bons efeitos, mas deixa-os maus. Isto tem-me
acontecido, mas não mais de duas ou três vezes, e logo fui avisada pelo Senhor ser coisa do
demônio. Deixada à parte a grande secura que fica, é uma inquietação na alma à maneira de outras
muitas vezes em que o Senhor tem permitido que eu tenha grandes tentações e trabalhos de alma de
diferentes maneiras, e até que me atormente muitas vezes, como adiante direi. É uma inquietação
que não se sabe entender donde vem, senão que parece que a alma resiste e se alvorota e aflige sem
saber de quê, porque, o que o demônio lhe diz, não é mau, senão bom. Penso que um espírito
pressente o outro. O gozo e o deleite que o demônio dá é, a meu parecer, de maneira bem diferente.
Poderá enganar com estes gostos a quem não tiver ou tenha tido outros de Deus.
11. Digo gostos de verdade, uma recreação suave, forte, profunda, deleitosa, pacífica; e não umas
devoçõezitas da alma, de lágrimas e outros sentimentos pequenos, florzitas que murcham com o
primeiro sopro de perseguição e se perdem. A estas não as chamo devoções, ainda que sejam bons
princípios e sentimentos santos, mas não para se poder determinar estes efeitos de bom e mau
espírito. E assim, é bom andar sempre com grande cautela, porque, pessoas que não estão mais
adiantadas do que isto na oração, facilmente poderiam ser enganadas se tivessem visões ou
revelações.
Eu nunca tive coisa alguma destas últimas enquanto Deus, só por Sua bondade, não me deu oração
de união, a não ser a primeira vez que disse que, há muitos anos, vi a Cristo, e prouvera a Sua
Majestade que eu então entendesse que era verdadeira visão, como depois entendi, o que não me
fora pequeno bem. Nessas outras nenhuma suavidade fica na alma, mas ela como que espantada e
com grande desgosto.
12. Tenho por muito certo que o demônio não enganará - nem Deus lho permitirá - a alma que em
coisa alguma se fia de si e está fortalecida na fé, e de si entende que, por um ponto de fé, morreria
mil mortes. Com este amor à fé que Deus logo infunde, uma fé viva, forte, ela procura andar sempre
conforme ao que ensina a Igreja, perguntando a uns e a outros, como quem já assentou fortemente
nestas verdades, que nem quantas revelações pudesse imaginar - até mesmo que visse os céus
abertos - a demoveriam de um só ponto do que ensina a Igreja.
Se alguma vez se visse vacilar no seu pensamento contra isto ou se detivesse a dizer: «Pois se Deus
me disse isto, também pode ser verdade, como o que dizia aos santos», não digo que chegue a
acreditar, mas que o demônio a começa a tentar ao primeiro movimento. E deter-se nele, já se vê
que seria malíssimo. Mas nem mesmo os primeiros movimentos creio que virão muitas vezes neste
caso, se a alma está nisto tão forte como o Senhor torna aquelas a quem concede mercês. Parece-lhe
que desafiaria os demônios sobre a menor das verdades que a Igreja crê.
13. Digo que, se não vir em si esta grande fortaleza e que a devoção ou visão a ajude, não a tenha
por segura.
Porque, embora não se sinta logo o dano, pouco a pouco poder-se-ia tornar grande. Ao que eu vejo
e sei por experiência, de tal maneira fica a certeza de que é Deus quando vai conforme à Sagrada
Escritura, e por um tudo-nada que disto torcesse, eu teria sem comparação muito mais firmeza em
crer que é do demônio do que agora tenho de que são de Deus, por muito grande que a tenha.
Porque então nem é preciso andar à busca de sinais, nem que espírito é, pois é tão claro este sinal
para provar que é demônio, que sé então todo o mundo me assegurasse que é Deus, eu não lhe daria
crédito.
O caso é que, quando é demônio, parece que se escondem todos os bens e fogem da alma, segundo
fica desabrida e alvorotada e sem nenhum efeito bom. E embora pareça incutir desejos na alma, não
são fortes; a humildade que deixa é falsa, alvorotada e sem suavidade. Parece-me que, quem tiver
experiência de bom espírito, o compreenderá.
14. Contudo, pode o demônio usar de muitos embustes, e assim não há nisto coisa tão certa como
temer e andar sempre com cuidado é ter mestre que seja letrado, e não lhe calar nada. Com isto,
nenhum dano pode vir; ainda que a mim muitos me têm vindo por estes temores demasiados que
têm algumas pessoas. Especialmente aconteceu-me uma vez que se reuniram muitos, a quem eu
dava grande crédito, e havia razão para que se lhes desse. E conquanto eu já só tratasse com um,
quando ele me mandava que falasse a outros, uns com os outros tratavam muito de meu remédio,
pois me tinham muita amizade e temiam que fosse enganada. Eu também trazia em mim
grandíssimo temor quando não estava em oração, porque, estando nela e fazendo-me o Senhor
alguma mercê, logo ficava com segurança. Creio que eram uns cinco ou seis, todos muito servos de
Deus, e disse-me meu confessor que todos concordavam em que era demônio; que não comungasse
tão amiúde e que procurasse distrair-me e evitasse a solidão. Era eu medrosa em extremo, como
tenho dito. Ajudava a isso o mal de coração, pois até sozinha num quarto não ousava estar de dia
muitas vezes. Como vi que tantos o afirmavam e como eu não o pudesse crer, deu-me grandíssimo
escrúpulo, parecendo-me pouca humildade. Pois, se todos eram, sem comparação, de melhor vida
do que eu e letrados, como não os havia de crer? Esforçava-me o mais que podia para os acreditar e
pensava na minha ruim vida e que, conforme a isto, deviam dizer a verdade.
15. Fui à Igreja com esta aflição e entrei num oratório. Tinha deixado muitos dias de comungar,
deixado a solidão que era toda a minha consolação, sem ter pessoa alguma com quem tratar, porque
todos, eram contra mim. Uns, parecia-me, troçavam de mim quando disso tratava, como se eu me
iludisse; outros avisavam o confessor que se guardasse de mim; outros ainda, diziam que era
claramente do demônio. Só o confessor, embora se conformasse com eles - para provar-me,
segundo depois soube -, me consolava sempre e me dizia que, embora fosse demônio, não
ofendendo eu a Deus, não me podia fazer nada, que isso se me tiraria; que o pedisse muito a Deus.
E ele e todas as pessoas que confessava e outras muitas o pediam muito e eu, em toda a minha
oração e quantos entendia eram servos de Deus, para que Sua Majestade me levasse por outro
caminho. E isto durou-me não sei se dois anos em que foi contínuo pedi-lo ao Senhor.
16. Para mim, nenhuma consolação bastava, quando pensava ser possível o demônio falar-me tantas
vezes. Porque, apesar de não tomar horas de soledade para a oração, em meio de conversas o
Senhor me fazia entrarem recolhimento e, sem eu o poder evitar, me dizia o que queria; e eu, ainda
que me pesasse, era obrigada a ouvi-Lo.
17. Estando, pois, uma vez sozinha, sem ter pessoa em quem descansar, não podia rezar, nem ler;
estava como uma pessoa espantada de tanta tribulação e temor de que o demônio me podia enganar,
toda alvorotada e aflita sem saber que fazer de mim. Nesta aflição me vi algumas, e até muitas
vezes, embora não me pareça que nenhuma em tanto extremo como esta. Estive assim quatro ou
cinco horas, em que não houve para mim consolação alguma nem do Céu nem da terra, senão que
me deixou o Senhor padecer temendo mil perigos. Oh! Senhor meu, como sois Vós o amigo
verdadeiro! E quão poderoso, quando quereis, podeis e nunca deixais de querer, se Vos querem!
Louvem-Vos todas as coisas, Senhor do mundo! Oh! quem desse vozes por ele, para dizer quão fiel
sois a Vossos amigos! Todas as coisas faltam; Vós, Senhor de todas elas, nunca faltais. Pouco é o
que deixais padecer a quem Vos ama. Oh! Senhor meu, que delicada, doce e saborosamente os
sabeis tratar! Oh! quem nunca se tivesse detido a amar ninguém, senão a Vós! Parece, Senhor, que
provais com rigor a quem Vos ama para que, no extremo do trabalho, se entenda o maior extremo
do Vosso amor. Oh! Deus meu, quem tivesse entendimento e letras e novas palavras para encarecer
Vossas obras como as concebe minha alma! Falte-me tudo, Senhor meu, mas se Vós não me
desamparais, eu não Vos faltarei a Vós. Levantem-se contra mim todos os letrados, persigam-me
todas as coisas criadas, atormentem-me os demônios; não me falteis Vós, Senhor, que eu já tenho
experiência do lucro com que deixais a quem só em Vós confia.
18. Estando eu, pois, nesta grande aflição (ainda não tendo então começado a ter nenhuma visão),
só estas palavras bastaram para ma tirar e aquietar-me de todo: Não tenhas medo, filha, sou Eu e
não te desampararei; não temas. Parece-me que, conforme eu estava, seriam precisas muitas horas
para me persuadir a que sossegasse e que ninguém disso seria capaz.
E eis-me aqui, só com estas palavras, sossegada, com fortaleza, com ânimo, com segurança, com
uma quietude e luz que, num momento, vi a minha alma feita outra, e parece-me que sustentaria,
contra todo o mundo, que aquela fala era de Deus. Oh! que bom Deus! Oh! que bom Senhor e que
poderoso! Não só dá conselho, mas remédio. Suas palavras são obras. Oh! valha-me Deus, como
fortalece a fé e se aumenta o amor!
19. Assim é que, de certeza, muitas vezes me lembrava de quando o Senhor mandou aos ventos que
estivessem quedos no mar, quando se levantou a tempestade. E assim eu dizia: Quem é Este a quem
assim obedecem todas as minhas potências e que num momento dá luz em tão grande escuridão e
torna brando um coração que parecia pedra, dá água de lágrimas suaves onde parecia que por muito
tempo havia de haver secura? Quem infunde estes desejos? Quem dá este ânimo? Que pensei eu, e o
que temo? Que é isto? Eu desejo servir a este Senhor; não pretendo outra coisa senão agradar-Lhe.
Não quero contentamento, nem descanso, nem outro bem, senão fazer Sua vontade. Disto, bem
certa estava, como me parece, e podia afirmar. Pois, se este Senhor é poderoso, como vejo e sei que
é, e se os demônios são seus escravos (e disto não há que duvidar pois é de fé), sendo eu serva deste
Senhor e Rei, que mal me podem eles fazer a mim? Porque não hei-de ter fortaleza para bater-me
com todo o inferno?
Tomava uma cruz na mão e parecia-me verdadeiramente dar-me Deus ânimo, pois me vi outra em
breve tempo, e não temeria lutar com eles a braços, parecia-me que facilmente, com aquela cruz, os
venceria a todos. E assim disse: "agora vinde todos que, sendo eu serva do Senhor, quero ver o que
me podeis fazer".
20. Sem dúvida me parecia que me tinham medo, porque fiquei sossegada e tão sem temor de todos
eles que, até hoje, se me tiraram todos os medos que costumava ter. Pois, ainda que algumas vezes
os veja, como depois direi, não mais lhes tenho tido medo, antes me parece que eles mo têm a mim.
Ficou-me um tal domínio sobre eles, dádiva concedida pelo Senhor de todos, que deles não se me
dá mais que de moscas. Parecem-me tão cobardes que, em vendo que os têm em pouco, perdem
toda a força. Não sabem estes inimigos reais acometer, senão a quem vêem que se lhes rende ou
quando o permite Deus para maior bem de Seus servos que tentem e atormentem.
Prouvera a Sua Majestade temêssemos a quem devemos temer e entendêssemos que nos pode vir
maior dano dum pecado venial do que de todo o inferno junto, pois isso é mesmo assim.
21. Que espantados nos trazem estes demônios, porque nós nos queremos espantar com os nossos
apegos às honras e fazendas e deleites! Então, juntos eles conosco, que somos contrários a nós
mesmos amando e querendo o que devíamos aborrecer, muito dano nos farão; porque, com as
nossas próprias armas, fazemos que pelejem contra nós, pondo em suas mãos aquelas com que nos
devemos defender. Esta é a grande lástima; mas se tudo aborrecemos por Deus e nos abraçamos
com a cruz e tratamos de O servir de verdade, o demônio foge destas verdades como de pestilência.
É amigo de mentiras e a mesma mentira. Não fará pacto com quem anda na verdade.
Quando vê obscurecido o entendimento, ajuda lindamente a que se turbem os olhos; porque se vê
alguém já cego em pôr seu descanso em coisas vãs, e tão vãs que as deste mundo parecem jogos de
crianças, já vê que esse é criança, pois procede como tal e atreve-se a lutar com ele uma e muitas
vezes.
22. Praza ao Senhor que eu não seja destes, mas que me favoreça Sua Majestade para que tenha por
descanso o que é descanso, e por honra o que é honra, e por deleite o que é deleite, e não tudo ao
revés e, uma figa para todos os demônios! e eles ter-me-ão medo a mim. Não entendo estes nossos
medos: é demônio! é demônio! quando podemos dizer: Deus! Deus! e fazê-lo tremer. Sim, pois bem
sabemos que não se pode mover se o Senhor não lho permite. Que é isto?! É, sem dúvida, ter eu
mais medo aos que lhe têm tão grande medo do que a ele mesmo, porque o demônio não me pode
fazer nada e estes, em especial se são confessores, inquietam muito e tenho passado alguns anos de
tão grande trabalho, que agora me espanto de como o pude sofrer. Bendito seja o Senhor que tão
deveras me tem ajudado!
CAPÍTULO 26. Prossegue na mesma matéria. Vai declarando e dizendo coisas que lhe aconteciam
e que lhe faziam perder o temor e afirmar que era bom espírito o que lhe falava.
1. Tenho por uma das grandes mercês que o Senhor me tem feito, este ânimo que me deu contra os
demônios. Porque andar uma alma acobardada e temerosa por alguma coisa que não seja ofender a
Deus, é grandíssimo inconveniente; pois temos Rei Todo-Poderoso e tão grande Senhor, que tudo
pode e a todos sujeita. Não há que temer andando-se - como tenho dito - em verdade diante de Sua
Majestade e com consciência limpa. Para isto, como já disse, quereria eu todos os temores: para não
ofenderem um só ponto a Quem, no mesmo momento, nos pode desfazer; pois, contente Sua
Majestade, não há quem seja contra nós que não leve as mãos à cabeça.
Poder-se-á dizer que assim é; mas, quem será esta alma tão reta que em tudo Lhe agrade?... É por
isso que teme. Não a minha, de certo, que é muito miserável, sem proveito e cheia de mil misérias.
Mas não procede Deus como os homens; Ele compreende nossas fraquezas. Aliás, por grandes
conjecturas, sente a alma se O ama de verdade, porque nas que chegam a este grau, o amor não anda
dissimulado como nos princípios, senão com tão grandes ímpetos e desejo de ver a Deus, como
depois direi ou já ficou dito. Tudo a cansa, tudo a fatiga, tudo a atormenta. Se não é tudo com Deus
ou por Deus, não há para ela descanso que não a canse, porque se vê ausente do seu verdadeiro
descanso e assim é coisa muito clara e, como digo, não passa dissimulada.
2. Aconteceu-me outras vezes ver-me com tão grandes tribulações - a respeito de certo negócio que
depois direi e murmurações da parte de quase todo o lugar onde estou e da minha Ordem, e aflita
com muitas ocasiões que havia para me inquietar, e dizer-me o Senhor: De que temes? não sabes
que sou todo-poderoso? Eu cumprirei o que te prometi. E assim bem se cumpriu depois; eu fiquei
logo com uma fortaleza que de novo me parecia que me poria a empreender outras coisas para O
servir, ainda que me custassem mais trabalhos e novos padecimentos.
E isto tantas vezes, que eu não as poderei contar. Em muitas dava-me repreensões, e dá-mas ainda
quando cometo imperfeições, que bastam para desfazer uma alma. Ao menos, trazem consigo o
emendar-se porque, como tenho dito, Sua Majestade dá o conselho e o remédio. Outras vezes trazme
à memória meus pecados passados, em especial quando o Senhor me quer fazer alguma
assinalada mercê. Então parece que a alma se vê já no verdadeiro juízo, porque lhe representam a
verdade com tão claro conhecimento, que não sabe onde se há de meter. Outras, é o avisar-me de
alguns perigos para mim e para outras pessoas, coisas ainda por vir, muitas, três ou quatro anos
antes e todas se têm cumprido; algumas podia eu nomear.
E assim há tantas coisas para entender que são de Deus que, a meu parecer, não se pode ignorar.
3. O mais seguro - e nisto não pode haver dano senão muito proveito, como muitas vezes metem
dito o Senhor - é não deixar de comunicar toda a minha alma e as mercês que o Senhor me faz, com
o confessor, e que seja letrado e eu lhe obedeça. Isto disse-o muitas vezes. E eu assim o faço e sem
isto não teria sossego, nem é bem que nós, mulheres, o tenhamos, pois não temos letras.
Tinha eu um confessor que me mortificava muito e algumas vezes me afligia e dava grande
trabalho, porque me inquietava muito. Foi com ele, no entanto que eu mais aproveitei, segundo me
parece. E embora lhe tivesse muita amizade, tinha algumas tentações de o deixar e parecia-me que,
aqueles rigores que comigo usava, me estorvavam a oração. Cada vez que a isto me determinava,
ouvia logo que não o fizesse e uma repreensão que me desfazia mais do que tudo quanto o
confessor fazia. Algumas vezes afligia-me: questão por um lado, repreensão por outro, e de tudo
havia mister, segundo tinha a vontade pouco dobrada.
Disse-me uma vez que não era obedecer, se não estava determinada a padecer; pusesse os olhos no
que Ele havia padecido, e tudo se me faria fácil.
4. Aconselhou-me uma vez um confessor que nos princípios me tinha confessado, que, visto já estar
provado ser bom espírito, que me calasse e não desse já parte a mais ninguém, porque estas coisas o
melhor era calar. A mim não me pareceu mal, porque eu sentia tanto cada vez que as dizia ao
confessor e era tanta a minha afronta, que algumas vezes o sentia muito mais do que confessar
pecados graves; especialmente se eram grandes as mercês, parecendo-me que não me haviam de
crer e zombariam de mim. Sentia tanto isto que me parecia ser desacato às maravilhas de Deus e
que, por isto, desejava eu calar. Entendi então que havia sido muito mal aconselhada por aquele
confessor, que de maneira nenhuma calasse coisa alguma a quem me confessava, porque nisto havia
grande segurança e, fazendo o contrário, poderia enganar-me alguma vez.
5. Sempre que o Senhor me mandava alguma coisa na oração, se o confessor dizia outra, me tornava
o Senhor a dizer que lhe obedecesse; depois Sua Majestade o movia para que mo voltasse a mandar.
Quando se tiraram do público muitos livros em língua vulgar, para que se não lessem, eu senti-o
muito, porque me recreava lendo alguns e já não o podia fazer por só os permitirem em latim.
Disse-me o Senhor: Não tenhas pena, que Eu te darei livro vivo. Eu não podia entender a razão por
que se me havia dito isto, porque ainda não tinha visões. Dali a bem poucos dias o compreendi
muito bem porque, tenho tido tanto em que pensar e com que me recolher no que via presente, e o
Senhor tem tido comigo tanto amor em me ensinar de muitas maneiras, que muito pouca, ou quase
nenhuma necessidade tenho tido de livros. Sua Majestade tem sido o verdadeiro livro onde tenho
visto as verdades. Bendito seja tal livro, que deixa impresso o que se há de ler e fazer, de maneira
que se não possa olvidar! Quem vê o Senhor coberto de chagas e aflito com perseguições, que não
as abrace e ame e deseje? Quem vê alguma coisa da glória que Ele dá aos que O servem, que não
reconheça que é nada tudo quanto se possa fazer e padecer, pois tal prêmio esperamos? Quem vê os
tormentos que padecem os condenados no inferno que, em sua comparação, não pareçam deleites os
tormentos de cá da terra, e não reconheça o muito que deve ao Senhor por o ter libertado tantas
vezes daquele lugar?
6. E porque, com o favor de Deus, se dirá mais de algumas coisas, quero ir adiante com o processo
da minha vida. Praza ao Senhor que eu tenha sabido declarar-me nisto que tenho dito. Creio bem
que, quem tiver experiência, o entenderá e verá que atinei em dizer alguma coisa; quem não a tiver,
não me espanto que lhe pareça desatino em tudo. Basta dizê-lo eu para ficar desculpado, e nem eu
culparei a quem o disser.
O Senhor me deixe atinar a cumprir a Sua vontade. Amém.
CAPÍTULO 27. Trata de outro modo com que o Senhor ensina a alma e, sem lhe falar, lhe dá a
entender a Sua vontade de uma maneira admirável. Declara também uma visão não imaginária e
grande mercê que lhe fez o Senhor. É muito digno de atenção este Capítulo.
1. Pois, voltando ao discurso da minha vida, estava eu acabrunhada de penas e aflições e faziam-se
muitas orações - como tenho dito para que o Senhor me levasse por outro caminho que fosse mais
seguro, pois este, me diziam, era tão suspeito. Verdade é que, embora eu o suplicasse a Deus, por
muito que quisesse desejar outro caminho, como via tão melhorada a minha alma, não estava na
minha mão desejá-lo, a não ser alguma vez quando estava muito fatigada das coisas que me diziam
e dos medos que me metiam, contudo sempre o pedia. Eu via-me outra em tudo; não podia, mas
punha-me nas mãos de Deus. Ele sabia o que convinha, que em tudo cumprisse em mim o que era
de Sua vontade.
Via que, por este caminho, era levada para o Céu e que antes ia para o inferno; que houvesse de
desejar isto e crer que era demônio, não podia forçar-me a isso, embora fizesse quanto podia para o
acreditar e desejar; mas não estava isso na minha mão.
Oferecia o que fazia, se era alguma boa obra, por essa intenção. Apegava-me a santos de quem era
devota, para que me livrassem do demônio. Fazia novenas encomendando-me a Santo Hilarião, a
São Miguel Arcanjo, a quem, por este motivo, tomei novamente devoção e a outros muitos santos
importunava, para que o Senhor mostrasse a verdade, digo, para que o conseguissem de Sua
Majestade.
2. Depois de dois anos, em que andava com toda esta oração minha e de outras pessoas para que o
Senhor me levasse por outro caminho ou declarasse a verdade, porque eram muito contínuas as
falas que, como tenho dito, me dava o Senhor, aconteceu-me isto: Estando um dia do glorioso São
Pedro em oração, vi ao pé de mim ou senti, para melhor dizer, pois nem com os olhos do corpo nem
com os da alma nada vi; mas parecia-me que Cristo estava ali mesmo junto de mim e via ser Ele
que me falava, segundo me parece. Como estava ignorantíssima que pudesse haver semelhante
visão, deu-me um grande temor a princípio e não fazia senão chorar, embora, dizendo-me uma só
palavra de segurança, ficasse sossegada com regalo e sem nenhum temor, como costumava.
Parecia-me andar sempre a meu lado Jesus Cristo; e, como não era visão imaginária, não via sob
que forma, mas sentia muito claramente estar Ele sempre a meu lado direito e que era testemunha
de tudo quanto eu fazia; e de nenhuma vez em que me recolhesse um pouco, ou não estivesse muito
distraída, podia ignorar que estava ao pé de mim.
3. Fui logo a meu confessor, muito aflita, a dizer-lho. Perguntou-me sob que forma O via. Eu disselhe
que O não via. Disse-me como é que eu sabia que era Cristo? Eu disse-lhe que não sabia como,
mas não podia deixar de entender que Ele estava ao pé de mim e O via e sentia nitidamente, e que o
recolhimento da alma era muito maior que em oração de quietude e muito contínuo, e os efeitos
muito diversos dos que costumava ter; e que era coisa muito clara.
Não fazia senão usar de comparações para me dar a entender; e certo é que, para este modo de
visão, não há uma, a meu parecer, que lhe quadre bem. Assim como é das mais subidas (segundo
me disse depois um santo homem e de grande espírito, chamado Frei Pedro de Alcântara, de quem
depois farei menção; e mo têm dito outros grandes letrados, e que de todas é onde menos se pode
intrometer o demônio), assim também não há termos para a sabermos dizer aqui, as que pouco
sabemos; só os letrados melhor o darão a entender. Porque se digo que, nem com os olhos do corpo
nem da alma, vejo Jesus Cristo, porque não é visão imaginária, como entendo e me afirmo que está
ao pé de mim com mais clareza do que se O visse? Porque, parecer que é como uma pessoa que está
às escuras, que não vê outra que está junto dela, ou se é cega, não é bem isso. Alguma semelhança
tem, mas não muita, porque essa tal sente com os sentidos: ou a ouve falar ou mexer ou a toca. Aqui
não há nada disto, nem se vê escuridão, e só se representa à alma por uma notícia mais clara do que
o sol. Não digo que se vê o sol, nem a claridade, mas uma luz que, sem ver luz, alumia o
entendimento para que a alma goze de tão grande bem. Traz consigo grandes bens.
4. Não é como uma presença de Deus que se sente muitas vezes, em especial os que têm oração de
quietude e união. Dir-se-ia que, em querendo começar a ter oração, encontramos com quem falar, e
parece que entendemos que nos ouve, pelos efeitos e sentimentos espirituais que sentimos do
grande amor e fé e de outras resoluções, com ternura. Esta grande mercê é de Deus, e tenha-a em
muito a alma a quem foi dada, porque é muito subida oração, mas não é visão. Entende-se que está
ali Deus pelos efeitos que, como digo, produz na alma, pois por aquele modo quer Sua Majestade
dar-Se a sentir. Nesta, vê-se claramente que está presente Jesus Cristo, Filho da Virgem. Nessa
outra oração representam-se umas influências da Divindade; aqui, juntamente com elas, vê-se que
nos acompanha e nos quer fazer mercês também a Humanidade Sacratíssima.
5. Perguntou-me o confessor: quem disse que era Jesus Cristo? Ele mo diz muitas vezes, respondi
eu; mas antes que mo dissesse, se imprimiu no meu entendimento que era Ele; até mo tinha dito
antes; mas a Ele não O via. Se uma pessoa que eu nunca tivesse visto, senão ouvido novas dela, me
viesse falar, estando eu cega ou em grande escuridão, e me dissesse quem era, acreditá-la-ia, mas
não poderia afirmar com tanta certeza que era ela como se a tivesse visto. Aqui, sim, que sem se
ver, se imprime com uma notícia tão clara que não parece se possa duvidar, pois quer o Senhor que
fique tão esculpido no entendimento, que disso não se possa duvidar mais do que daquilo que se vê,
e até menos. Porque nisto ainda algumas vezes nos fica a suspeita se foi ilusão ou não; aqui, embora
de súbito venha esta suspeita, fica por outra parte uma grande certeza que desvanece a dúvida.
6. Assim é também numa outra maneira em que Deus ensina a alma e lhe fala sem falar, do modo
que fica dito. É uma linguagem tão do Céu, que aqui na terra não se pode dar a entender, por mais
que o queiramos dizer, se o Senhor, por experiência, não no-lo ensina. Põe o Senhor, no mais
interior da alma, o que quer que ela entenda e ali o representa sem imagem nem forma de palavras,
a não ser à maneira desta visão que fica dita. E note-se bem esta maneira de fazer Deus com que
entenda a alma o que Ele quer, e grandes verdades e mistérios; porque muitas vezes o que entendo,
quando o Senhor me declara alguma visão que Sua Majestade quer representar-me, é assim. Pareceme
que é onde o demônio menos se pode intrometer, pelas ditas razões. Se elas não são boas, eu me
devo enganar.
7. É uma coisa tão espiritual este modo de visão e de linguagem, que nenhum bulício há nas
potências nem nos sentidos, a meu parecer, por onde o demônio possa tirar alguma coisa. Isto dá-se
alguma vez e com brevidade; noutras, bem me parece a mim que não estão suspensas as potências
nem perdidos os sentidos, antes muito em si, pois isto nem sempre sucede na contemplação, senão
muito poucas vezes. Mas estas, quando o são, digo que não pomos nada da nossa parte nem
fazemos nada: tudo parece obra do Senhor.
É como se o manjar já estivesse no estômago sem o termos comido, nem sabermos como aí chegou,
mas percebendo-se bem que lá está, ainda que então não se entenda que manjar é, nem quem ali o
pôs. Aqui sim: mas como foi posto não sei, que nem se viu nem se entende, nem jamais a alma se
havia movido a desejá-lo, nem tinha vindo ao meu conhecimento como isto podia ser.
8. Na fala que temos dito antes, faz Deus que o entendimento advirta, ainda que lhe pese, em
compreender o que se diz. Parece que a alma tem ali outros ouvidos com que ouve e que a fazem
escutar e que não se distraia; como uma pessoa que, se ouvisse bem e não lhe consentissem tapar os
ouvidos e lhe falassem ali ao pé em voz alta, embora não quisesse, ouviria. E, enfim, alguma coisa
faz, pois está atenta para entender o que lhe dizem. Aqui nenhuma coisa faz, pois até este pouco que
fazia na fala passada, que era só escutar, lhe é tirado. Tudo encontra cozinhado e comido; não lhe
resta mais que fazer, senão gozar, como alguém que, sem aprender nem nada ter trabalhado para
saber ler, nem tão-pouco tivesse estudado, achasse em si toda a ciência já sabida, sem saber como
nem onde, pois até nunca se dera ao trabalho de aprender o abc.
9. Esta última comparação parece-me dizer alguma coisa deste dom celestial, porque a alma vê-se
num momento sábia, e tão declarado o mistério da Santíssima Trindade e outras coisas mui subidas,
que não há teólogos com quem se não atrevesse a disputar a verdade destas grandezas. Fica-se tão
espantada, que basta uma mercê destas para mudar toda uma alma e fazê-la não amar nada a não ser
a Quem vê que, sem nenhum trabalho, a tornou capaz de tão grandes bens e lhe comunica segredos
tais e trata com ela com tanta amizade e amor, que se não podem descrever. Porque Deus faz
algumas mercês que trazem consigo suspeita, por serem de tanta admiração e feitas a quem tão
pouco as tem merecido, que se não houver fé mui viva, não se poderão acreditar. E assim penso
dizer algumas das que o Senhor me tem feito a mim, se não me mandarem outra coisa, a não ser
certas visões que podem aproveitar para alguma coisa, ou para que a alma, a quem o Senhor as der,
não se espante parecendo-lhe impossível, como me acontecia a mim, ou para lhe declarar o modo e
caminho por onde o Senhor me tem levado, que é o que me mandam escrever.
10. Pois voltando a este modo de entender, o que me parece é que o Senhor quer que, de todas as
maneiras, esta alma tenha alguma notícia do que se passa no Céu, e parece-me que assim como lá se
entendem sem se falarem (o que eu de verdade nunca soube ser assim, até que o Senhor por Sua
bondade quis que eu o visse e Ele mo mostrou num arroubamento, assim é aqui, que se entendem
Deus e a alma, só por o querer Sua Majestade. Isto sem outro artifício para se dar a perceber o amor
que se têm estes dois amigos. Tal como cá, na terra, quando duas pessoas se querem muito e têm
bom entendimento, até sem sinais, parece que se entendem só com o olhar, assim deve ser aqui que,
sem nós vermos como, se olham fixamente estes dois amantes, como diz o Esposo à Esposa nos
Cantares. Segundo creio, ouvi dizer que era aqui.
11. Oh! benignidade admirável de Deus, que assim Vos deixais ver por uns olhos que tão mal foram
empregados como os da minha alma! Fiquem eles já, Senhor, com Vos verem, acostumados a não
olhar para coisas baixas, nem os contente nenhuma afora Vós. Oh! ingratidão dos mortais! Até onde
há de chegar? Eu sei por experiência que é verdade isto que digo, e que tudo quanto se disser, é o
menos daquilo que Vós fazeis com uma alma que trazeis a tais termos. ó almas que haveis
começado a ter oração e que tendes verdadeira fé, que bens podeis buscar ainda nesta vida -
deixemos o que se ganha para a que não tem fim - que sejam como o menor destes?!
12. Olhai, que é assim .de certeza, que Deus se dá a Si aos que tudo deixam por Ele. Não faz
acepção de pessoas, a todas ama, ninguém tem escusa, por ruim que seja, pois assim fez comigo
trazendo-me a tal estado. Olhai que o que digo é cifra daquilo que se pode dizer. Só vai dito o que é
necessário para se dar a entender este modo de visão e a mercê que faz Deus à alma, mas não posso
dizer o que se sente quando o Senhor lhe dá a entender segredos e grandezas Suas, o gozo tão acima
de quantos se podem cá entender, que com razão faz aborrecer os bens desta vida, que todos juntos
são lixo. Causa asco trazê-los aqui para qualquer comparação, ainda que fosse para os gozar sem
fim; e estes, que dá o Senhor, são apenas uma gota de água do rio grande caudaloso que nos está
preparado.
13. É vergonha e eu certamente a tenho de mim e, se pudesse haver afronta no Céu, com razão
estaria eu lá mais envergonhada que ninguém! Por que havemos de querer tantos bens e deleites e
glória para sempre sem fim e todos à custa do bom Jesus? Não choraremos ao menos com as filhas
de Jerusalém, já que O não ajudamos a levar a cruz como o Cireneu? Com prazeres e passatempos
havemos de gozar o que Ele nos ganhou à custa de tanto sangue? É impossível! E com honras vãs
pensamos remediar um desprezo como o que Ele sofreu, para que nós reinássemos para sempre?
Não tem cabimento. Errado, errado vai o caminho. Nunca chegaremos lá.
Dê vozes, V. Mercê, dizendo estas verdades, pois Deus a mim me tirou esta liberdade. A mim
mesma eu as quereria dar sempre e tão tarde me ouvi e entendi a Deus, como se verá pelo que tenho
escrito. É para mim de grande confusão falar nisto e assim quero calar. Só direi o que algumas
vezes considero. Praza ao Senhor pôr-me em termos de poder gozar deste bem.
14. Que glória acidental será e que contento o dos bem-aventurados que já disto goza, quando virem
que, embora tarde, não deixaram de fazer por Deus coisa alguma das que lhes foi possível e, por
todas as maneiras que puderam, não deixaram coisa por Lhe dar conforme às suas forças e estado, e
o que mais tinha, mais deu! Que rico se achará o que todas as riquezas deixou por Cristo! Que
honrado o que por Ele não quis honra, antes gostou de se ver muito abatido! Que sábio o que se
alegrou de que o tivessem por louco, pois assim chamaram à mesma Sabedoria! Que poucos há
destes agora, por nossos pecados! Parece que já se acabaram os que as gentes tinham por loucos,
vendo-os fazer obras heróicas de verdadeiros amadores de Cristo. Oh! mundo, mundo, como vais
ganhando honra em razão de haver poucos que te conheçam!
15. E pensamos que se serve já mais a Deus em que nos tenham por sábios e discretos! Isso deve
ser, segundo se usa de discrição. Logo nos parece que é de pouca edificação não andar, cada um em
seu estado, com muita compostura e autoridade. Até o frade, o clérigo e a freira nos parecerá que,
trazerem coisa velha e remendada, é novidade e dar escândalo aos fracos; e até o estarem muito
recolhidos e ter oração, conforme está o mundo e tão olvidadas as coisas de perfeição de grandes
ímpetos que tinham os santos, que penso faz mais dano às desventuras que se vêem nestes tempos e
que não daria escândalo a ninguém os religiosos darem a entender por obras, como o dizem por
palavras, o pouco em que se há de ter o mundo; pois, destes escândalos, o Senhor tira grandes
proveitos. E se uns se escandalizam, outros entram em si e têm remorsos. Houvesse sequer um
esboço do que passou Cristo e Seus Apóstolos, pois agora, mais do que nunca, é preciso.
16. E, que bom aquele que Deus nos levou agora no bendito Frei Pedro de Alcântara! Não está já o
mundo para sofrer tanta perfeição. Dizem que estão as saúdes mais fracas e que não estamos nos
tempos passados. Este santo homem era deste tempo; estava tão robusto o seu espírito como em
outros tempos e, por isso, tinha o mundo debaixo dos pés. Pois, embora não andem desnudos nem
façam tão áspera penitência como ele, muitas coisas há, como outras vezes tenho dito, para se pisar
o mundo e o Senhor as ensina quando vê ânimo. E que grande lho deu Sua Majestade a este santo
que digo, para fazer quarenta e sete anos tão áspera penitência, como todos sabem! Quero dizer algo
dela, porque sei que tudo é verdade.
17. Foi ele que mo disse a mim e a outra pessoa de quem pouco se encobria. A causa de mo dizer
era a amizade que me tinha, porque quis o Senhor que a tivesse para acudir por mim e me animarem
tempos de tanta necessidade, como tenho dito e direi. Parece-me que me disse que em quarenta anos
só tinha dormido hora e meia entre noite e dia, e o maior trabalho de penitência que teve nos
princípios foi o de vencer o sono, e para isto estava sempre de joelhos ou de pé. Só dormia sentado
e a cabeça encostada a um madeirozito que tinha pregado à parede. Deitado, embora quisesse, não
podia, porque sua cela, como se sabe, não tinha de compri mento mais que quatro pés e meio.
Em todos estes anos jamais pôs o capuz, por grandes sóis e chuvas que houvesse, nem nada nos pés,
nem vestido, a não ser um hábito de estamenha, sem nenhuma outra coisa sobre a carne, e este tão
apertado que mal se podia sofrer e uma capa do mesmo pano por cima. Dizia-me que, nos grandes
frios, a tirava e deixava a porta e o postigo da cela abertos para que, pondo depois a capa e cerrando
a porta, contentava o corpo, para que sossegasse com mais abrigo. Comer de três em três dias era o
mais normal, e perguntou-me porque me espantava, pois era muito possível a quem se acostumava a
isso. Um seu companheiro disse-me que lhe acontecia estar oito dias sem comer. Devia ser estando
em oração, porque tinha grandes arroubamentos e ímpetos de amor de Deus, de que uma vez fui
testemunha?
18. Sua pobreza era extrema, e foi tal a sua mortificação na mocidade, que me disse que lhe havia
acontecido estar três anos numa casa da sua Ordem e não conhecera frade, a não ser pela fala;
porque não levantava nunca os olhos, e assim nem aos lugares aonde de necessidade tinha de ir
sabia, a não ser indo atrás dos frades. Isto também lhe acontecia pelos caminhos. A mulheres jamais
fitava; e isto durante muitos anos. Dizia-me que já tanto se lhe dava ver como não ver. Já era muito
velho quando o vim a conhecer, e tão extrema a sua fraqueza, que não parecia senão feito de raízes
de árvores.
Com toda esta santidade era muito afável, embora de poucas palavras, a menos que fosse
interrogado. Nestas era muito ameno, porque tinha um mui lindo entendimento. Outras muitas
coisas quisera eu dizer, mas tenho medo de que V. Mercê me diga para que me meto nisto, e com
este medo tenho escrito. Assim termino dizendo que foi o seu fim como a sua vida: pregando e
admoestando os seus frades. Quando viu que já se acabava disse o Salmo: Laetatus sum in his quae
dicta sunt mihi; e, posto de joelhos, morreu.
19. Depois tem sido o Senhor servido que eu tenha mais ajuda dele que em vida, aconselhando-me
em muitas coisas. Tenho-o visto muitas vezes com grandíssima glória. Disse-me, a primeira vez em
que me apareceu: bem-aventurada penitência que tanto prêmio lhe havia merecido, e outras muitas
coisas. Um ano antes de morrer, apareceu-me estando ausente, e eu soube que havia de morrer e o
avisei, estando a algumas léguas daqui. Quando expirou, apareceu-me e disse-me que ia descansar.
Eu não o acreditei e disse-o a algumas pessoas; e, passados oito dias, veio a notícia de que tinha
morrido, ou que tinha começado a viver para sempre, para melhor dizer.
20. Ei-la aqui acabada esta aspereza de vida com tão grande glória. Parece-me que muito mais me
consola agora, do que quando cá estava. Disse-me uma vez o Senhor que não se Lhe pediria coisa
alguma em seu nome que não a ouvisse. Muitas que lhe tenho encomendado para que as peça ao
Senhor, as tenho visto cumpridas. Seja bendito para sempre. Amém.
21. Mas, quantas palavras tenho dito para levar V. Mercê a não estimar em nada coisa alguma desta
vida, como se não o soubesse, ou não estivesse já determinado a deixar tudo e o não tivesse posto
por obra. Vejo tanta perdição no mundo que, embora não aproveite mais o dizê-lo que eu cansar-me
de o escrever, me serve de descanso, ainda que é contra mim tudo o que digo. O Senhor me perdoe
o que neste caso O tenho ofendido, e V. Mercê, que o canso sem propósito. Parece que quero que
faça penitência do que eu nisto pequei.
CAPÍTULO 28. Trata das grandes mercês que lhe fez o Senhor e como Ele lhe apareceu a primeira
vez. Declara o que é visão imaginária. Diz os grandes efeitos e sinais que deixa quando é de Deus.
É muito proveitoso este capitulo e digno de se ter em conta.
1. Voltando ao nosso propósito, passei alguns, poucos dias, com esta visão muito contínua e faziame
tanto proveito, que não saía de oração; e tudo quanto fazia, procurava fosse de sorte a não
descontentar Aquele que via tão claramente que tinha por testemunha. E, ainda que algumas vezes
temia com o muito que me diziam, durava pouco o temor, porque o Senhor me assistia.
Estando um dia em oração, quis o Senhor mostrar-me só as mãos com tão grandíssima formosura,
que não o poderia eu encarecer. Causou-me isto grande temor, porque qualquer novidade faz com
que eu o tenha grande nos princípios de qualquer mercê sobrenatural que o Senhor me faça. Poucos
dias depois, vi também aquele divino rosto que de todo, me parece, me deixou absorta. Não podia
eu entender porque era que o Senhor se mostrava assim pouco a pouco, visto que depois me havia
de fazer mercê de que O visse de todo, até compreender que o Senhor me ia levando conforme a
minha fraqueza natural. Seja bendito para sempre, porque tanta glória junta, uma criatura tão baixa
e ruim não a poderia suportar e, como quem isto sabia, ia o piedoso Senhor dispondo.
2. Parecerá a V. Mercê que não era preciso muito esforço para ver umas mãos e rosto tão formoso.
São-no tanto os corpos glorificados, que a glória que trazem consigo, e o ver coisa tão
sobrenaturalmente formosa, desatina e, assim, me causava tanto temor, que toda me perturbava e
alvorotava, embora depois ficasse com certeza e segurança e com tais efeitos que depressa perdia o
temor.
3. Um dia de São Paulo, estando na Missa, se me representou toda esta Humanidade sacratíssima,
como se pinta ressuscitado, com tanta formosura e majestade, como particularmente escrevi a V.
Mercê, quando instantemente mo mandou, o que se me fez assaz custoso, porque nada se pode dizer
que não seja antes desfazer; mas o melhor que soube já o disse, e assim não há para que voltá-lo a
dizer aqui. Só digo que, quando outra coisa não houvesse para deleitar a vista no Céu, senão a
grande formosura dos corpos glorificados, bastaria para causar grandíssima glória, em especial ver a
Humanidade de Jesus Cristo, Senhor Nosso, ainda que aqui se mostre Sua Majestade conforme ao
que pode sofrer a nossa miséria; que será no Céu onde de todo se goza de tal bem?
4. Esta visão, embora seja imaginária, nunca a vi com os olhos corporais, nem a nenhuma, senão
com os olhos da alma.
Dizem os que o sabem melhor do que eu, ser mais perfeita a visão passada do que esta, e esta muito
mais do que as que se vêem com os olhos corporais. Estas, dizem, são as mais baixas e onde o
demônio mais ilusões pode fazer, embora eu então não pudesse entender tal, e desejava, já que se
me fazia esta mercê, que fosse vendo-a com os olhos corporais, para que me não dissesse o
confessor que era ilusão. E também me acontecia, depois de passada a visão - isto era logo em
seguida -, pensar eu também que seria ilusão minha e afligia-me de tê-lo dito ao confessor, julgando
que o teria enganado. Aqui era outro pranto, e ia a ele dizer-lho. Perguntava-me se a mim assim me
parecia, ou se eu o tinha querido enganar. Eu lhe dizia a verdade, porque, a meu parecer, não
mentia, nem tal havia pretendido, nem por coisa alguma do mundo diria uma coisa por outra. Isto
bem o sabia ele e assim procurava sossegar-me, e eu sentia tanto em ir a ele com estas coisas, que
não sei como o demônio me incutia o medo de que o poderia fingir para me atormentar a mim
mesma.
Mas o Senhor deu-Se tanta pressa em fazer-me esta mercê e declarar esta verdade que bem depressa
se me tirou a dúvida se era ilusão, e depois vi muito claramente a minha tolice: porque se estivesse
muitos anos imaginando como figurar coisa tão formosa, não poderia nem saberia, porque excede a
tudo quanto cá na terra se pode imaginar, até só a brancura e resplendor.
5. Não é resplendor que deslumbre, mas uma brancura suave e resplendor infuso, que dá
grandíssimo deleite à vista e não a cansa, como não cansa a claridade com que se contempla esta
formosura tão divina. É uma luz tão diferente desta de cá, que a claridade do sol que vemos, parece
coisa tão deslustrada, em comparação daquela luz que se representa à vista, que não se quereriam
depois abrir os olhos. É como ver uma água muito clara que corre sobre cristal e reverbera nela o
sol, e uma muito turva e com grande nevoeiro que corre por cima de terra. Não que se represente
sol, nem que a luz seja como a do sol; parece, enfim, luz natural, e esta outra coisa artificial. É luz
que não tem noite mas, como sempre é luz, nada a turva. Enfim, é de sorte que, por grande
entendimento que uma pessoa tivesse, em todos os dias da sua vida não a poderia imaginar como é.
E põe-na Deus diante tão de súbito, que até não daria lugar a abrir os olhos, se fosse preciso abrilos;
mas não faz mais ao caso estarem abertos ou fechados, quando o Senhor quer porque, embora
não queiramos, se vê. Não há diversão que baste, nem há poder de se resistir, nem assaz diligência
nem cuidado para isso. Isto tenho-o eu bem experimentado, como direi.
6. O que eu agora quereria dizer é o modo como o Senhor .se mostra nestas visões. Não digo que
declararei de que maneira pode ser impressa esta luz tão forte no sentido interior, e no entendimento
imagem tão clara, que parece que verdadeiramente está ali, porque isto é de letrados. Não quis o
Senhor dar-me a entender o como, e sou tão ignorante e de tão rude entendimento que, embora
muito mo tenham querido declarar, ainda não acabei de entender o como. E isto é certo: embora a V
Mercê lhe pareça que tenho vivo entendimento, não o tenho; porque, em muitas coisas,
experimentei que ele não compreende mais do que lhe dão a comer, como dizem. Algumas vezes se
espantava, quem me confessava, de minhas ignorâncias; e jamais me dei ao trabalho de entender,
nem mesmo o desejava, como Deus faz isto ou como pode ser. Nem o perguntava, ainda que - como
tenho dito -, de há muitos anos para cá tratava com bons letrados. Se uma coisa era pecado ou não,
isto sim; no mais, não era para mim preciso, senão pensar que Deus fez tudo e via não haver de que
me espantar, mas sim motivo de O louvar. Antes me fazem devoção as coisas dificultosas e tanto
mais, quanto mais o são.
7. Direi, pois, o que tenho visto por experiência. Como o Senhor o faz, V Mercê, o dirá melhor e
declarará tudo o que for obscuro e eu não souber dizer.
Bem me parecia nalgumas coisas que era imagem o que eu via, mas em outras muitas não, senão
que era o próprio Cristo, conforme a claridade com que era servido mostrar-Se a mim. Umas vezes
era tão confusamente, que me parecia imagem, mas não como os desenhos cá da terra, por muito
perfeitos que sejam, e muitos tenho visto e bons; é disparate pensar que de algum modo tenha
semelhança uma coisa com a outra; e, nem mais nem menos, a que tem uma pessoa viva com o seu
retrato. Este, por bem tirado que esteja, não pode ser tão ao natural que, enfim, se vê que é coisa
morta. Mas deixemos isto, que vem aqui muito bem e é muito ao pé da letra.
8. Não digo que seja comparação, que nunca são tão cabais, senão verdade: a diferença que há é,
nem mais nem menos, a do vivo ao pintado. Se é imagem, é imagem viva: não homem morto, senão
Cristo vivo. E dá a entender que é homem e Deus, não como estava no sepulcro, senão como saiu
dele depois de ressuscitado. Vem, às vezes, com tão grande majestade, que não há quem possa
duvidar: vê-se que é mesmo o Senhor, em especial em acabando de comungar, que bem sabemos
que está ali, porque no-lo diz a fé. Representa-se tão Senhor daquela pousada que a alma toda se
desfaz, vê-se consumir em Cristo. Ó Jesus meu, quem pudesse dar a entender a majestade com que
Vos mostrais! E quão senhor de todo o mundo e dos céus e de outros mil mundos, e mundos e céus
sem conta que Vós criásseis.
E a alma entende, segundo a majestade com que Vos representais, que isso não é nada para Vós
serdes Senhor de tudo.
9. Aqui se vê claramente, Jesus meu, o pouco poder de todos os demônios em comparação do
Vosso, e como, quem Vos tiver contente, pode calcar aos pés o inferno todo. Aqui se vê a razão que
tiveram os demônios de temer quando baixastes ao Limbo e como desejariam outros mil infernos
mais baixos para fugir de tão grande majestade. Vejo que quereis dar a entender à alma quão grande
é o poder que tem esta sacratíssima Humanidade junta com a Divindade. Aqui se representa bem o
que será ver, no dia do juízo, a majestade deste Rei e vê-Lo com rigor para os maus. Aqui é a
verdadeira humildade que deixa esta visão na alma ao ver sua miséria, pois não a pode ignorar.
Aqui a confusão e verdadeiro arrependimento dos pecados, pois, ainda que veja que lhe mostra
amor, não sabe aonde se meter, e assim se desfaz toda.
Digo que tem tão grandíssima força esta visão, quando o Senhor quer mostrar à alma grande parte
da Sua grandeza e majestade, que tenho por impossível podê-la sofrer qualquer pessoa, se o Senhor,
de modo muito sobrenatural, não a quisesse ajudar, pondo-a em arroubamento e êxtase, onde perde
de vista, com o gozo, a visão daquela divina presença.
Será verdade que se esquece depois? Fica porém tão impressa aquela majestade e formosura, que
não há maneira de se poder esquecer, a não ser quando o Senhor quer que a alma padeça uma
grande aridez e soledade, que direi adiante, que então até de Deus parece que se esquece. A alma
fica outra, sempre embebida; parece-lhe que começa de novo um amor vivo de Deus em muito alto
grau, a meu ver; porque, embora a visão passada, em que disse que Deus se representa sem imagem,
seja mais perfeita, contudo, para durar na memória, conforme a nossa fraqueza, e para trazer bem
ocupado o pensamento, é grande coisa o ficar representada e posta na imaginação tão Divina
presença. E quase sempre vêm juntas estas duas maneiras de visão. E até mesmo é assim que vêm.
Porque, com os olhos da alma, vê-se a excelência e formosura e glória da santíssima Humanidade e,
por esta outra maneira que fica dita, se nos dá a entender como é Deus é poderoso e que tudo pode e
tudo manda e tudo governa e a tudo enche o Seu amor.
10. É muito para estimar esta visão, e sem perigo, a meu parecer, porque, pelos efeitos, se conhece
que não tem força aqui o demônio. Parece-me, que três ou quatro vezes, me quis este dar a ver,
desta maneira, ao mesmo Senhor em representação falsa. Toma a forma humana, mas não pode
contrafazê-la com a glória que tem quando é de Deus. Faz representações para desfazer a verdadeira
visão que a alma teve; mas esta resiste por si e se alvorota e fica desabrida e inquieta, porque perde
a devoção e o gosto que antes tinha e fica sem oração alguma.
Nos princípios foi isto, como tenho dito, três ou quatro vezes. É coisa tão imensamente diferente
que, ainda quem só tivesse tido oração de quietude, creio o entenderá pelos efeitos que ficam ditos
nas falas. É coisa muito conhecida é, se uma alma não se quiser deixar enganar, não me parece que
o demônio a enganará, se ela anda com humildade e simplicidade. Quem tiver tido verdadeira visão
de Deus, desde quase logo o sente; porque, embora comece com regalo e gosto, a alma o lança de
si. E, a meu parecer, até deve ser diferente o gosto, e não tem aparência de amor puro e casto; muito
em breve dá a entender quem é. Assim, segundo me parece, onde há experiência, não poderá o
demônio fazer dano.
11. Pois, ser imaginação isto, é impossível de toda a impossibilidade. Nenhum caminho leva,
porque só a formosura e brancura de uma mão está acima de toda a nossa imaginação; pois, sem nos
lembrarmos disso nem havê-lo jamais pensado, ver presentes, num instante, coisas que em muito
tempo não se poderiam conceber com a imaginação, porque são muito mais sublimes, como tenho
dito, do que podemos aqui compreender... isto é impossível. E mesmo que pudéssemos algo nisto,
ainda se vê mais claro, por esta outra razão, que agora direi. Porque, se fosse representado pelo
entendimento, não faria as grandes operações que isto faz, nem mesmo nenhuma (porque seria
como alguém que quisesse dormir e ficasse desperta por não lhe ter vindo o sono; como tem
necessidade de dormir ou fraqueza na cabeça, deseja-o e faz diligência para adormecer e, às vezes,
parece que alguma coisa consegue; mas, se não é sono de verdade, não o sustentará nem lhe dará
força à cabeça, antes às vezes fica com ela mais esvaída), assim seria em parte aqui: ficar a alma
esvaída, mas não sustentada e forte, antes cansada e desgostada. Quando é verdadeira, não se pode
encarecer a riqueza que deixa; até ao corpo dá saúde e este fica confortado.
12. Esta razão, com outras, dava eu quando me diziam que era demônio o que se me afigurava, e era
muitas vezes. Fazia comparações conforme podia e o Senhor me dava a entender. Mas tudo
aproveitava pouco, porque, como havia pessoas muito santas neste lugar (e eu, em sua comparação,
uma perdição) e não as levava Deus por este caminho, logo as enchia o temor. Meus pecados
parece, eram disto a causa. Passavam dum para outro as minhas coisas, de maneira que se vinham a
saber sem dizê-las eu, senão ao meu confessor ou a quem ele me mandava.
13. Eu lhes disse uma vez que, se os que me diziam isto, me dissessem que uma pessoa a quem eu
tivesse acabado de falar e conhecesse muito bem, não era de fato ela, mas que eu me enganava e
que eles o sabiam, sem dúvida eu lhes daria mais crédito do que àquilo que tinha visto. Mas, se essa
pessoa me.deixasse nas mãos algumas jóias que me ficassem por penhor de muito amor, e eu antes
não tivesse nenhuma e me visse então rica sendo pobre, eu não poderia crer no que eles me diziam,
embora o quisesse. Estas jóias eu lhas poderia mostrar, porque todos os que me conheciam, viam
claramente estar outra a minha alma e assim o dizia o meu confessor. É que era muito grande a
diferença em todas as coisas, e não dissimulada, senão que, com muita claridade, todos o podiam
ver: Porque - dizia eu -, sendo antes tão ruim como era, não podia crer que, se o demônio fazia isto
para me enganar e levar ao inferno, usasse de meio tão contrário como era tirar-me os vícios e pôr
em mim virtudes e fortaleza; porque via claramente com estas coisas ficar, numa só vez, outra?
14. Meu confessor, como digo, que era um Padre bem santo da Companhia de Jesus, respondia isto
mesmo, segundo eu soube. Era muito discreto e de grande humildade, e esta humildade tão grande
acarretou-me bastos trabalhos; porque, conquanto fosse de muita oração e letrado, como o Senhor
não o levava por este caminho, não se fiava de si. Passou-os muito grandes comigo e de muitas
maneiras. Soube que lhe diziam que se acautelasse de mim, não o enganasse o demônio em
acreditar alguma coisa do que eu lhe dizia. Traziam-lhe exemplos de outras pessoas. Tudo isto me
afligia. Temia que viesse a não haver quem me quisesse confessar, pois todos haviam de fugir de
mim. Não fazia senão chorar.
15. Foi providência de Deus querer ele continuar a ouvir-me; mas era tão grande servo de Deus, que
a tudo se exporia por Ele. Dizia-me que não ofendesse eu a Deus, nem me apartasse do que ele me
dizia e não tivesse medo de que me faltasse. Sempre me animava e sossegava. Mandava-me sempre
que não lhe ocultasse coisa nenhuma; eu assim fazia. Dizia-me ele que, fazendo eu isto, ainda que
fosse demônio, não me faria dano, antes o Senhor tiraria bem do mal que ele queria fazer à minha
alma. Procurava aperfeiçoá-la em tudo que ele podia. Eu, como trazia tanto medo, obedecia-lhe em
tudo, embora imperfeitamente. E muito passou por minha causa nos três anos e mais que me
confessou, com estes trabalhos; porque nas grandes perseguições que tive e em muitas coisas que o
Senhor permitia que me julgassem mal, e muitas estando sem culpa, iam a ele e o culpavam de
tudo, estando ele sem culpa alguma.
16. Fora impossível, se não tivesse tanta santidade - e o Senhor o não animasse - poder sofrer tanto
porque tinha de responder aos que lhes parecia que eu ia perdida e não o acreditavam; e, por outra
parte, tinha de me sossegar e curar o medo que eu trazia, mas eu ficava com ele ainda maior. Por
outra parte, tinha de me tranqüilizar a cada visão, porque, sendo coisa nova, permitia Deus que me
ficassem depois grandes temores. Tudo procedia de eu ser tão pecadora e de o ter sido. Ele me
consolava com muita piedade e, se ele acreditasse em si mesmo, não padecera eu tanto, pois Deus
lhe dava a entender a verdade em tudo, porque o mesmo Sacramento o iluminava, segundo creio.
17. Os servos de Deus que não se asseguravam, tratavam muito comigo. Eu, como falava
descuidadamente, dizia algumas coisas que eles tomavam em diferente sentido. Queria eu muito a
um deles, porque lhe devia muito a minha alma e era muito santo e desejava de grande modo o meu
aproveitamento e que o Senhor me iluminasse. Eu sentia sumamente por ver que não me entendia.
Assim, o que eu dizia, como digo, sem olhar a isso, parecia-lhes pouca humildade. Em vendo-me
alguma falta - e veriam muitas - logo era tudo condenado. Perguntavam-me algumas coisas; eu
respondia com lhaneza e descuido. Logo lhes parecia que os queria ensinar e me tinha a mim
mesma por sábia. Tudo ia ter ao meu confessor, porque certamente desejavam meu proveito; e ele a
ralhar-me.
18. Durou isto bastante tempo; afligida por muitas partes, mas com as mercês que o Senhor me
fazia, tudo suportava.
Digo isto para que se entenda o grande trabalho que é não achar quem tenha experiência neste
caminho espiritual. Pois, se não me favorecera tanto o Senhor, não sei que fora de mim. Bastantes
coisas havia para me tirar o juízo, e algumas vezes via-me em termos que não sabia que fazer de
mim, senão levantar os olhos ao Senhor; porque, contradições de bons a uma mulherzita ruim e
fraca e temerosa como eu, dito assim não parece nadada e não obstante eu ter passado na vida
grandíssimos trabalhos, este é dos maiores.
Praza ao Senhor que eu tenha servido a Sua Majestade algum tanto nisto. Pois, de que O serviam os
que me condenavam e argüiam, bem certa estou e que era tudo para grande bem meu.
CAPÍTULO 29. Prossegue o assunto começado e diz algumas grandes mercês que lhe fez o Senhor
e as coisas que Sua Majestade lhe dizia para a assegurar e para que respondesse aos que a
contradiziam.
1. Muito saí do propósito, pois que tratava de dizer as causas que há para se ver que não é
imaginação; porque, como poderíamos, com esforço, representar a Humanidade de Cristo e ir
ordenando com a imaginação a Sua grande formosura? E não seria necessário pouco tempo, se
nalguma coisa se houvesse de parecer com ela. Bem pode alguém representá-la na imaginação e
fixá-la durante algum tempo, e os traços que tem, e a sua brancura, e, pouco a pouco, ir
aperfeiçoando mais e imprimindo na memória aquela imagem. Isto, quem lho impede, pois com o
entendimento o pode fabricar?
No que tratamos, nada podemos fazer para isto, senão que a temos de ver quando o Senhor a quer
representar e como quer e o que quer. Não há tirar nem pôr, nem modo para isso, por mais que
façamos, nem para vê-Lo quando queremos, nem para O deixar de ver. Em querendo fixar alguma
coisa particular, logo se perde a visão de Cristo.
2. Dois anos e meio me durou isto, muito frequentemente me fazia Deus esta mercê. Haverá mais de
três anos que Ele deixou de ma fazer tão de contínuo e substituiu-a por outra mais subida, como
talvez direi depois. Via que me estava falando e eu contemplando aquela grande formosura e a
suavidade, com que dizia aquelas palavras por aquela formosíssima e divina boca, e outras vezes
com rigor desejar eu perceber a cor de Seus olhos e do tamanho que eram, para o saber dizer, jamais
mereci vê-lo, nem me serve de nada procurá-lo, antes se me esvai de todo a visão. É verdade que
algumas vezes vejo que olha para mim com piedade, mas tem tanta força este olhar, que a alma
filão o pode sofrer e fica em tão subido arroubamento que, para melhor O gozar todo, perde esta
formosa vista. Assim, aqui, não há querer e não querer. Vê-se claramente que o Senhor quer que
não haja senão humildade e confusão, e tomar o que nos derem e louvar a Quem o dá.
3. Isto acontece em todas as visões, sem exceção, pois nenhuma coisa se pode, nem para ver menos
nem mais faz ou desfaz a nossa diligência. Quer o Senhor que vejamos com muita clareza que isto
não é obra nossa, senão de Sua Majestade. É que, assim, muito menos podemos ter soberba; antes
nos faz permanecer humildes e temerosos, vendo que, do mesmo modo como o Senhor nos tira o
poder para ver o que queremos, assim nos pode também tirar estas mercês e a graça, e ficarmos
perdidos de todo. Quer que sempre andemos com medo, enquanto vivemos neste desterro.
4. Quase sempre se me representava o Senhor assim ressuscitado e na Hóstia do mesmo modo, a
não ser algumas vezes em que, para me esforçar, se estava em tribulação, me mostrava as Chagas;
algumas vezes na Cruz e no Horto; com a coroa de espinhos, poucas vezes; levando a cruz também
algumas, para - como digo - necessidades minhas e também de outras pessoas, mas sempre a carne
glorificada.
Fartas afrontas e trabalhos passeiem dizê-lo e fartos temores e fartas perseguições. Tão certo lhes
parecia que eu tinha demônio, que algumas pessoas me queriam exorcizar. Disto, a mim pouco se
me dava; mais sentia quando via que temiam os confessores de confessar-me ou quando sabia que
de mim lhes diziam alguma coisa. Contudo, jamais podia ter pesar de ter visto estas visões
celestiais, e nem por todos os bens e deleites do mundo eu as trocaria sequer por uma só vez que
delas gozei. Sempre tive isto por grande mercê do Senhor e me parece um grandíssimo tesouro, e o
mesmo Senhor mo assegurava muitas vezes. Eu mesma me via crescer em O amar muitíssimo; iame
queixar a Ele de todos estes trabalhos; e sempre saía consolada da oração e com novas forças. A
eles não ousava eu contradizer, porque via que era tudo pior, pois lhes parecia pouca humildade.
Com o meu confessor tratava; ele consolava-me sempre muito quando me via aflita.
5. Como as visões foram crescendo, um deles, que antes me ajudava (com quem me confessava
algumas vezes quando o ministro não podia), começou a dizer que era claro ser obra do demônio.
Mandaram-me, visto não me ser possível resistir, que me benzesse quando visse alguma visão, e
fizesse figas, porque podia ter por certo que era demônio, e com isto ele não viria e que não tivesse
medo, pois Deus me guardaria e me tiraria estas visões. Para mim era isto causa de grande pesar,
porque, como não podia crer senão que era Deus, era coisa terrível para mim. E tão-pouco podia
desejar - como tenho dito - que me fossem tiradas; mas, enfim, fazia quanto me mandavam.
Suplicava muito ao Senhor que me livrasse de ser enganada. Isto sempre o fazia e com muitas
lágrimas e o pedia a S. Pedro e a S. Paulo porque o Senhor me disse - como foi no seu dia que Ele
me apareceu pela primeira vez - que eles me guardariam para que não fosse enganada. E assim os
via muitas vezes ao meu lado esquerdo muito claramente, embora não por visão imaginária. Eram
estes gloriosos santos muito meus senhores.
6. Dava-me grandíssima pena ter de fazer figas, quando via esta visão do Senhor. É que, quando eu
O via presente, embora me fizessem em pedaços, não poderia crer que era o demônio, e assim isto
foi um gênero de penitência bem grande para mim e, para não me andar tanto a benzer, tomava uma
cruz na mão. Isto fazia-o quase sempre; as figas não tão de contínuo, porque sentia-o muito.
Lembrava-me das injúrias que Lhe tinham feito os judeus e suplicava-Lhe me perdoasse, porque o
fazia para obedecer a quem Ele tinha em Seu lugar e que não me culpasse, pois eram os ministros
que ele tinha posto na Sua Igreja. Dizia-me o Senhor que não me perturbasse com isso, que fazia
bem em obedecer, mas Ele faria com que se entendesse a verdade.
Quando me tiraram a oração, pareceu-me que ficara magoado; disse-me que lhes dissesse que
aquilo já era tirania. Dava-me razões para que entendesse que não era demônio; algumas direi
depois.
7. Uma vez, tendo eu a cruz na mão, que a trazia num rosário, pegou nela o Senhor com a Sua e
quando ma tornou a dar tinha quatro pedras grandes, muito mais preciosas que diamantes e isto sem
comparação. É que nem quase mesmo a pode haver com o que se vê de sobrenatural, pois o
diamante parece coisa contrafeita e imperfeita à vista das pedras preciosas que lá se vêem. Tinha as
cinco chagas de muito linda feitura. Disse-me o Senhor que assim a veria de aí em diante, e assim
foi que não via a madeira de que era feita, senão estas pedras; mas isto a ninguém acontecia senão a
mim.
Desde que me mandaram fazer estas tais provas e resistir, foi muito maior o crescimento das
mercês. E em me querendo distrair, nunca saia de oração; até dormindo me parecia que estava nela.
Então cresciam o amor e as queixas que eu fazia ao Senhor, pois não podia sofrer, nem estava na
minha mão, deixar de pensar n 'Ele, por mais que eu quisesse e por mais que me esforçasse.
Contudo, obedecia quando podia, mas nisto pouco ou nada podia e o Senhor nunca me dispensou de
obedecer. Mas, ainda que me dizia para o fazer, assegurava-me, por outro lado, e ensinava-me o que
lhes havia de dizer, e assim ainda o faz agora. Dava-me razões tão fortes que a mim me incutiam
inteira segurança.
8. Dentro de pouco tempo começou Sua Majestade, como mo tinha prometido, a mostrar mais
claramente que era Ele, crescendo em mim um amor tão grande de Deus que não sabia quem mo
infundia, porque era muito sobrenatural, nem eu o procurava. Via-me morrer com desejo de ver a
Deus e não sabia aonde havia de buscar esta vida, a não ser com a morte. Davam-me uns ímpetos
tão grandes deste amor que, embora não fossem tão insofríveis como os que já de outra vez tenho
dito, nem de tanto valor, eu não sabia que fazer de mim. Nada me satisfazia, nem eu cabia em mim,
senão que verdadeiramente me parecia que se me arrancava a alma. Oh! artifício soberano do
Senhor, de que indústria tão delicada usáveis para com a Vossa escrava miserável! Escondíeis-Vos
de mim e apertáveis-me com Vosso amor com uma morte tão saborosa que nunca a alma quereria
sair dela.
9. Quem não tiver passado por estes ímpetos tão grandes, impossível é podê-lo entender; não é
desassossego do peito, nem umas devoções que costumam dar muitas vezes, que parece afogam o
espírito, que não cabe em si. Esta oração é mais baixa e devem-se reprimir estes ímpetos
procurando, com suavidade, recolhê-los dentro de si e acalmar a alma. Pois isto é como meninos
que têm um choro acelerado, e parece que se vão abafar, e com dar-lhes de beber, cessa aquele
demasiado sentimento. Assim aqui: a razão procure atalhar, retesando a rédea, porque poderia ser
que para isto concorresse o mesmo natural. Volte a consideração com o temor de que nem tudo
aquilo é perfeito, mas que nisto pode ter muita parte a sensibilidade e acalme esta criança com um
regalo de amor que a faça mover a amar com suavidade e não aos empurrões, como dizem. Recolha
este amor dentro de si e não seja como panela que ferve demasiado, porque pondo lenha sem
discrição, se derrama toda. Modere a causa que lhe serviu para atear esse fogo e procure abafar a
chama com lágrimas suaves e não penosas, como são as destes sentimentos, que fazem muito dano.
Eu as tive algumas vezes nos princípios e deixavam-me com a cabeça perdida e o espírito cansado,
de sorte que no outro dia, e até por mais tempo, não estava em condições de voltar à oração. Assim,
pois, é mister grande discrição nos princípios para que tudo vá com suavidade e se disponha o
espírito a obrar interiormente; procure-se evitar muito o exterior.
10. Estes outros ímpetos são diferentíssimos. Não pomos nós a lenha, antes parece que, aceso já o
fogo, de súbito nos lançam nele para que nos queimemos. Não procura a alma que lhe doa esta
chaga da ausência do Senhor, mas cravam-lhe, por vezes, uma seta no mais vivo das entranhas e do
coração, que ela não sabe o que tem, nem o que quer. Bem entende que quer a Deus, e que a seta
parece vir ervada para se aborrecer a si mesma por amor deste Senhor e que perderia, de boa
vontade, a vida por Ele.
Não se pode encarecer nem dizer o modo como Deus chaga a alma, e a grandíssima pena que dá, de
modo que a faz não saber de si; mas esta é pena tão saborosa, que não há deleite na vida que mais
contento dê. Sempre a alma quereria, como tenho dito, estar morrendo deste mal.
11. Esta junção de pena e glória trazia-me desatinada, pois não podia entender como aquilo podia
ser. Oh! o que é ver uma alma ferida! Pois digo que se entende de maneira que bem se pode dizer
ferida por tão excelente causa e vê claramente que não fez nada por onde lhe viesse este amor, mas
parece-lhe que, do muito grande que o Senhor lhe tem, caiu nela de repente aquela centelha que a
faz arder toda. Oh! quantas vezes me recordo, quando assim estou, daquele verso de David:
“Quemadmodum desiderat cervus ad fontes aquarum”. Dir-se-ia que o vejo cumprir-se literalmente
em mim!
12. Quando isto não dá com tanta força, parece que se aplaca um pouco, pelo menos a alma busca
remédio - pois não sabe que fazer - com algumas penitências. Estas, porém, não se sentem, nem
mesmo causa mais dor o derramar sangue do que se o corpo estivesse morto. Busca modos e
maneiras para fazer alguma coisa em que padeça por amor de Deus, mas é tão grande a primeira
dor, que eu não conheço tormento corporal que lha tirasse. Como não está nisto o remédio, são
demasiado baixas estas medicinas para tão subido mal; todavia aquieta-se um pouco e algo disto
passa, pedindo a Deus lhe dê remédio para seu mal; e nenhum vê senão a morte, pois só com esta,
pensa poder gozar de todo do seu Bem. Outras vezes é tão forte este ímpeto que nem isto, nem
mesmo nada, se consegue fazer. Tolhe todo o corpo e nem pés, nem braços pode menear; se está em
pé, cai sentada como coisa inanimada. Não pode nem mesmo respirar, só dá uns gemidos, não
grandes, porque mais não pode; são-no, porém, no sentimento.
13. Quis o Senhor que viesse então algumas vezes esta visão. Via um anjo ao pé de mim, para o
lado esquerdo, em forma corporal, o que não costumo ver senão por maravilha. Ainda que muitas
vezes se me representam anjos, é sem os ver, senão como na visão passada, que disse antes. Nesta
visão quis o Senhor que o visse assim: não era grande mas pequeno, formoso em extremo, o rosto
tão incendido, que parecia dos anjos mais sublimes que parecem todos se abrasam. Devem ser os
que chamam Querubins, que os nomes não mos dizem, mas bem vejo que no Céu há tanta diferença
duns anjos a outros e destes outros a outros, que não o saberia dizer. Via-lhe nas mãos um dardo de
ouro comprido e, no fim da ponta de ferro, me parecia que tinha um pouco de fogo. Parecia-me
meter-me este pelo coração algumas vezes e que me chegava às entranhas. Ao tirá-lo, dir-se-ia que
as levava consigo, e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor, que
me fazia dar aqueles queixumes e tão excessiva a suavidade que me causava esta grandíssima dor,
que não se pode desejar que se tire, nem a alma se contenta com menos de que com Deus. Não é dor
corporal mas espiritual, embora o corpo não deixa de ter a sua parte, e até muita. É um requebro tão
suave que têm entre si a alma e Deus, que suplico à Sua bondade o dê a gostar a quem pensar que
minto.
14. Os dias que isto durava, andava como alheada; não queria ver nem falar, senão abraçar-me com
a minha pena, que era para mim maior glória que quantas há em tudo o criado.
Isto me acontecia algumas vezes, quando quis o Senhor que me viessem estes arroubamentos tão
grandes que, até mesmo estando entre muitas pessoas, não lhes podia resistir, e assim, com muita
pena minha, se começaram a divulgar. Desde que os tenho, não sinto tanto esta pena, senão o que
disse em outra parte - não me recordo em que capítulo -, o qual é muito diferente em muitas coisas e
de maior preço; pois, em começando esta pena de que agora falo, parece que o Senhor arrebata a
alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para ter pena nem padecer, porque vem logo o gozar.
Seja bendito para sempre, que tantas mercês faz a quem tão mal corresponde a tão grandes
benefícios.
CAPÍTULO 30. Retoma a narração da sua vida e diz como o Senhor remediou muito os seus
trabalhos trazendo ao lugar onde ela estava o santo varão Frei Pedro de Alcântara, da ordem do
glorioso S. Francisco. Trata também de grandes tentações e trabalhos interiores que tinha algumas
vezes.
1. Vendo eu, pois, o pouco ou nada que conseguia fazer para não ter estes ímpetos tão grandes,
também já eu temia de os ter; porque pena e contento, não podia eu entender como podiam andar
juntos. Pena corporal e contento espiritual, já eu sabia que era bem possível; mas tão excessiva pena
espiritual e com tão grandíssimo gosto, isto me desatinava.
Nem mesmo cessava em procurar resistir-lhe, mas podia tão pouco, que algumas vezes me cansava.
Amparava-me com a cruz e queria-me defender d'Aquele que com ela nos amparou a todos. Via que
ninguém me entendia, que isto era muito claro para mim; mas não o ousava dizer senão a meu
confessor, porque seria dizer, bem de verdade, que não tinha humildade.
2. Foi o Senhor servido de remediar grande parte do meu trabalho - e por então todo ele - com trazer
a este lugar o bendito Frei Pedro de Alcântara, de quem já fiz menção e disse um pouco da sua
penitência. Entre outras coisas, certificaram-me que durante vinte anos tinha trazido continuamente
um cilício de folhas de lata. É autor de uns pequenos livros de oração que agora se usam muito, em
língua vulgar, porque, como quem a tinha bem exercitado, escreveu muito proveitosamente para os
que a têm. Guardou a primeira Regra do Bem-aventurado S. Francisco com todo o rigor, e mais um
pouco que lá fica dito.
3. Soube pois a viúva; serva de Deus e minha amiga de quem tenho falado, que estava aqui tão
grande varão. Sabia minha necessidade, pois era testemunha das minhas aflições e me consolava
muito; era tanta a sua fé que não podia deixar de crer que era espírito de Deus o que todos os mais
diziam ser do demônio. Como é pessoa de muito bom entendimento e de muito segredo e a quem o
Senhor fazia muitas mercês na oração, quis Sua Majestade dar-lhe luz no que os letrados
ignoravam. Davam-me licença meus confessores para que me descansasse nela, comunicando-lhe
algumas coisas que então tinha, pois por muitas razões era digna disso. Cabia-lhe, algumas vezes,
parte das mercês que o Senhor me fazia, com avisos muito proveitosos para sua alma.
Pois, assim que o soube, para que mais facilmente pudesse tratar com ele, sem dizer-me nada,
alcançou licença do meu Provincial para que estivesse oito dias em sua casa. Aí e em algumas
Igrejas falei com ele muitas vezes, nesta primeira vez que aqui esteve; e depois em diversos tempos
comuniquei muito com ele. Dei-lhe conta, em suma, da minha vida e maneira de proceder na oração
com a maior clareza que eu soube. Isto tenho eu tido sempre: tratar com toda a claridade e verdade
com aqueles a quem comunico a minha alma. Até os primeiros movimentos quisera eu lhes fossem
manifestos, e nas coisas mais duvidosas e de suspeita eu os argüia com razões contra mim. Assim,
sem doblez e subterfúgio, tratei com ele da minha alma.
4. Quase logo no princípio vi que me entendia, por experiência, e isto era tudo o que eu precisava. É
que então eu não me sabia entender, como agora, para o saber dizer, que depois recebi de Deus o
saber compreender e dizer as mercês que Sua Majestade me faz. Era, pois, mister que tivesse
passado por isso quem de todo me entendesse e declarasse o que era. Ele deu-me grandíssima luz;
porque, pelo menos nas visões que não eram imaginárias, eu não podia entender o que podia ser
aquilo, e, nas que via com os olhos da alma, tão-pouco entendia como podia ser; pois, como tenho
dito, só era das que se vêem com os olhos corporais, que me parecia a mim que havia de fazer caso,
e estas não as tinha eu.
5. Este santo homem deu-me luz em tudo e tudo me explicou. Disse-me que não tivesse pena, mas
sim louvasse a Deus e estivesse tão certa de que era espírito Seu que, a não ser a fé, coisa mais
verdadeira não podia haver, nem que tanto se pudesse crer. Consolava-se muito comigo e dava-me
todo o seu favor e mercê, e sempre depois teve muito cuidado de mim e dava-me parte de suas
coisas e negócios. E como me via com desejos do que ele já pusera por obra - pois estes dávamos o
Senhor muito decididos -, e me via com tanto ânimo, gostava de tratar comigo. É que, para aqueles
a quem o Senhor chega a este estado, não há prazer nem consolo que iguale ao de topar com
pessoas a quem lhes parece ter o Senhor concedido princípios disto mesmo. Então não devia eu ter
muito mais, ao que me parece, e praza ao Senhor que o tenha agora!
6. Teve grandíssima pena de mim. Disse-me que um dos maiores trabalhos deste mundo era o que
eu tinha padecido, que é a contradição dos bons; ainda me restava muito a padecer, porque sempre
teria necessidade de ajuda e não havia nesta cidade quem me entendesse. Ele falaria, no entanto, ao
que me confessava e a um dos que mais penas me dava, que era este cavalheiro casado de quem já
falei. Este, como quem me tinha maior amizade, me fazia toda a guerra; é alma temerosa e santa, e,
como pouco antes me tinha visto tão ruim, não acabava de se tranqüilizar.
E assim o fez este santo varão, que lhes falou a ambos e lhes deu causas e razões para que se
tranqüilizassem e não me inquietassem mais. O confessor de pouco precisava, mas o cavalheiro
tanto, que ainda de todo não bastou; contribuiu porém, para que não me amedrontasse tanto.
7. Ficamos combinados em eu lhe escrever de aí em diante o que me sucedesse de novo, e de
mutuamente nos encomendarmos muito a Deus. Era tanta a sua humildade que tinha em conta as
orações desta miserável. Era muita a minha confusão. Deixou-me com grandíssimo consolo e
contentamento e fez com que eu tivesse oração com segurança e não duvidasse de que era de Deus.
Daquilo do que eu tivesse alguma dúvida e tudo para maior segurança, desse parte ao confessor e
com isto vivesse tranqüila.
Mas nem assim eu podia ter essa segurança de todo em todo, porque me levava o Senhor por
caminho de temer, crendo que era demônio quando me diziam que o era. Ninguém podia, no
entanto, fazer com que eu tivesse temor ou segurança de maneira a que lhes pudesse dar mais
crédito do que aquele que o Senhor punha na minha alma. Assim é que, embora me consolasse e
sossegasse, não lhe dei tanto crédito, para ficar de todo sem temor, em especial quando o Senhor me
deixava nos trabalhos de alma que agora direi. Contudo fiquei - como digo -, muito consolada.
Não me fartava de dar graças a Deus e ao glorioso Pai S. José, pois me pareceu que o trouxera,
porque era Comissário Geral da Custódia de S. José, a quem eu muito me encomendava e a Nossa
Senhora.
8. Acontecia-me algumas vezes - e ainda agora me acontece, embora não tantas - estar com
grandíssimos trabalhos de alma e ao mesmo tempo com tormentos e dores no corpo, de males tão
fortes que não me podia valer.
Outras vezes tinha males corporais muito graves e, como não tinha os da alma, passava-os com
muita alegria. Mas, quando era tudo junto, era tão grande trabalho que me via na maior aflição.
Todas as mercês que o Senhor me fizera se me olvidavam; só me ficava memória como de coisa
que se sonhou, para dar pena. É que se entorpece o entendimento de modo que me fazia andar com
mil dúvidas e suspeitas, parecendo-me que não o tinha entendido bem e que talvez fosse ilusão
minha. Bastava que andasse eu enganada, sem que enganasse os bons. Parecia-me ser eu tão má,
que, quantos males e heresias se tinham levantado, eram por meus pecados.
9. Esta é uma humildade falsa que o demônio inventava para desassossegar-me e, tentar se podia,
trazer a alma ao desespero. Tenho já tanta experiência que é coisa de demônio, que ele, como já vê
que o entendo, não me atormenta nisto tantas vezes como costumava. Isto vê-se claramente na
inquietação e desassossego com que começa, no alvoroço que dá na alma todo o tempo que dura, na
escuridão e aflição que nela deixa, na secura e má disposição para a oração e para qualquer bem.
Dir-se-ia que afoga a alma e ata o corpo para que de nada aproveite. Porém, a humildade
verdadeira, embora a alma se conheça por ruim e nos dê pena ver o que somos e pensemos grandes
encarecimentos da nossa maldade, tão grandes como os que ficam ditos e se sintam de verdade, não
vem com alvoroço, nem desassossega a alma, nem a escurece, nem traz secura. Antes, pelo
contrário - pois é tudo ao revés -, a regala com quietude, com suavidade, com luz. Pena que, por
outra parte, conforta por ver quão grande mercê lhe faz Deus em lhe dar aquela pena e quão bem
empregada é. Dói-lhe o que ofendeu a Deus e, por outra parte, a Sua misericórdia a dilata. Tem luz
para se confundir a si mesma e louva a Sua Majestade porque tanto lhe sofreu.
Nesta outra humildade, que insinua o demônio, não há luz para nenhum bem; tudo lhe parece põe
Deus a fogo e a sangue. Representa-lhe a justiça e, embora tenha fé de que há misericórdia, porque
o demônio não pode tanto que a faça perder, é de maneira a não me consolar, antes, quando olha a
tão grande misericórdia, a ajuda a maior tormento, porque parece que estava obrigada a mais.
10. É uma invenção do demônio das mais penosas e subtis e dissimuladas que tenho conhecido dele,
e assim quisera avisar V Mercê para que, se por aqui o tentar, tenha alguma luz e o conheça, se ele
lhe deixar entendimento para o perceber. Não pense que bastam letras e saber, pois embora a mim
tudo me falte, depois que saio disto, bem vejo que é desatino. O que tenho entendido é que o Senhor
assim o quer é permite e dá licença ao demônio, como lha deu para que tentasse a Job, embora a
mim - como a ruim - não seja com aquele rigor.
11. Tem-me acontecido e me recordo ter sido um dia antes da véspera do Corpus Christi, festa de
que sou devota, embora não tanto como devia. Desta vez durou-me só até ao dia, que de outras
vezes durou-me oito e quinze dias e até três semanas e não sei se mais, em especial as Semanas
Santas em que costumo ter as minhas delícias de oração. Acontece-me que o demônio me prende de
repente o entendimento, com coisas tão ridículas às vezes, que em outras ocasiões me riria delas, e o
faz estar transtornando tudo o que ele quer. A alma ali se fica aferrolhada, sem ser senhora de si,
sem poder pensar outra coisa mais que nos disparates que ele lhe representa, que quase não têm
tomo, nem atam nem desatam; só atam para oprimir a alma de maneira que não cabe em si. É assim
que metem acontecido: parecer-me que andam os demônios como que jogando à bola com a alma e
sem ela conseguir livrar-se de seu poder.
Não se pode dizer o que neste caso se padece; ela anda a buscar amparo e permite Deus que não o
encontre; só fica sempre a razão do livre alvedrio, mas não clara. Digo eu que deve ser quase como
ter vendados os olhos, como uma pessoa que muitas vezes tem ido por um caminho que, embora
seja de noite e às escuras, pelo tino anterior, já sabe onde pode tropeçar, porque o tem visto de dia e
guarda-se daquele perigo. Assim é aqui para não ofender a Deus, parece que se vai pelo costume.
Deixemos de parte o mantê-la o Senhor, que é o que faz ao caso.
12. A fé está então tão acalmada e adormecida como todas as demais virtudes, embora não perdida,
pois que bem acredita o que a Igreja crê e tem por verdade, mas pronunciado com a boca, e parecelhe,
por outro lado, que a apertam e entorpecem; tem a impressão que é quase como uma coisa que
ouviu ao longe que ela conhece a Deus.
O amor tem-no tão tíbio que, se ouve falar d'Ele, escuta como uma coisa que crê ser assim, porque a
Igreja o tem por verdade; mas não tem memória daquilo que tem experimentado em si.
Ir rezar ou estar em solidão não é senão para lhe causar mais angústia, porque o tormento que sente
em si é incomportável. A meu parecer, é um pouco cópia do inferno. Isto é assim, segundo o Senhor
mo deu a entender numa visão, porque a alma se queima em si, sem saber quem nem por onde lhe
põem fogo, nem como fugir dele, nem com que o apagar.
Pois, querer buscar remédio na leitura, é como se não soubesse ler. Uma vez aconteceu-me ir ler
uma vida dum santo a ver se me embebia e consolava com o que ele padeceu, e ler quatro ou cinco
vezes outras tantas linhas e, apesar de ser em língua vulgar, menos entendia delas no fim do que no
princípio, e assim o deixei. Isto me aconteceu muitas vezes; mas desta, me recordo mais em
particular.
13. Ter, pois, conversação com alguém, é pior; porque o demônio incute um espírito tão desabrido
de ira, que me parece a todos quereria comer, sem poder fazer mais nada. Alguma coisa parece, no
entanto, que faço em me ir à mão, ou fá-lo o Senhor em ter de Sua mão a quem assim está, para que
não diga nem faça contra seus próximos coisa que os prejudique e em que ofenda a Deus.
Pois ir ao confessor, o certo é que muitas vezes me acontecia isto que direi. Embora sendo tão
santos como são os que neste tempo tratei e trato, me diziam palavras e me ralhavam com uma
aspereza tal, que depois, quando eu lhas repetia, eles mesmos se espantavam e me diziam que mais
não estava em sua mão. Porque, ainda que propusessem a si mesmos não o fazer de outras vezes,
quando tivesse semelhantes trabalhos de corpo e de alma, porque ficavam depois com compaixão e
até escrúpulo, e se determinavam a consolar-me com piedade, não podiam. Não diziam eles
palavras más - digo em que ofendessem a Deus -, mas as mais desabridas que se sofriam num
confessor. Deviam pretender mortificar-me, e embora outras vezes gostava e estivesse para o sofrer,
então tudo me era tormento.
Pois dá-me também para recear que os engano, e ia então a eles e avisava-os muito deveras que se
acautelassem de mim, que poderia ser que os enganasse. Bem via eu que, com advertência, não o
faria, nem lhes diria mentira, mas tudo me era causa de temor. Um deles me disse uma vez, pois
entendeu a tentação, que não me afligisse, porque embora eu quisesse enganá-lo, senso tinha ele
pára não se deixar enganar. Deu-me isto muita consolação.
14. Algumas vezes - e quase habitualmente, pelo menos o mais freqüente -, em acabando de
comungar, descansava; e até algumas vezes, em chegando ao Sacramento, logo no mesmo momento
ficava tão bem de alma e corpo, que eu me espantava. Não parece senão que, num instante, se
desfazem todas as trevas da alma, e desponta o sol, conhecendo então as tontarias em que tinha
estado metida.
Outras vezes, com uma só palavra que me dizia o Senhor, como: Não estejas aflita; não tenhas
medo - como já deixei dito de outra vez ou com ver alguma visão -; ficava de todo sã, como se
nunca tivesse tido nada. Regalava-me com Deus, queixava-me a Ele, como consentia que tantos
tormentos padecesse. Mas tudo isso era bem pago, pois que quase sempre vinham depois em grande
abundância as mercês.
Não me parece senão que a alma sai como o ouro do crisol, mais afinada e clarificada para ver em si
o Senhor. E assim se fazem depois pequenos estes trabalhos, apesar de parecerem incomportáveis, e
se desejam tornar a padecer, se o Senhor disso mais Se há de servir. E, ainda que haja mais
tribulações e perseguições, conquanto se passem sem ofender o Senhor e de as padecer por Ele,
tudo é para maior lucro, embora eu não os leve como se hão de levar, senão muito imperfeitamente.
15. Outras vezes me vinham e vêm tribulações de outro gênero, que de todo em todo me parece que
se me tira a possibilidade de pensar coisa boa, nem desejá-la fazer, e só me fica a alma e o corpo de
todo inútil e pesado; mas não tenho com isto essas outras tentações e desassossegos, a não ser um
desgosto, sem entender de quê, e nada me contenta a alma. Procurava então fazer boas obras
exteriores para me ocupar um tanto à força, e reconheço bem o pouco que é uma alma quando se
esconde a graça. Não me causava isto muita pena, porque, o ver assim minha baixeza, me dava
alguma satisfação.
16. Outras vezes, acho-me de modo que tão-pouco posso pensar coisa ordenada a respeito de Deus,
nem de bem que vá com algum assento, nem ter oração, ainda que esteja em soledade; mas sinto
que O conheço. O entendimento e a imaginação entendo eu que é o que aqui me prejudica, pois a
vontade me parece que está boa e disposta para todo o bem. Este entendimento, porém, está tão
perdido que não parece senão um louco furioso que ninguém consegue atar, nem sou senhora de o
fazer estar quedo, sequer o tempo dum Credo. Algumas vezes me rio e conheço minha miséria, fico
a olhar para ela e deixo-a a ver o que faz; e -glória a Deus nunca - por maravilha - vai a coisa má,
mas sim indiferente: se há alguma coisa a fazer aqui, ali ou acolá. Conheço, então, melhor a
grandíssima mercê que me faz o Senhor quando está atado este louco em perfeita contemplação.
Vejo o que seria se me vissem neste desvario as pessoas que me têm por boa. Tenho grande lástima
de ver a alma em tão má companhia. Desejo vê-la com liberdade, e assim digo ao Senhor: quando,
Deus meu, chegarei finalmente a ver a minha alma toda unida em Vosso louvor, de modo a que Vos
gozem todas as potências? Não permitais já, Senhor, que seja assim despedaçada, que não parece
senão que cada pedaço anda disperso por seu lado.
Isto, padeço eu muitas vezes. Algumas bem entendo que faz muito ao caso a pouca saúde corporal.
Recordo-me muito do dano que nos fez o primeiro pecado e que daqui nos vem, penso eu, o sermos
incapazes de gozar de tanto bem em um ser, e devem ser os meus que, se eu não tivesse cometido
tantos, estaria com mais inteireza no bem.
17. Passei também outro grande trabalho pois, como me parecia entender todos os livros que lia,
que tratam de oração, e que o Senhor já me tinha dado aquilo, achei que não tinha necessidade deles
e assim não os lia, mas sim, vidas de santos, porque como eu me vejo tão falha no que eles serviam
a Deus, isto parece que me aproveita e anima. Parecia-me pouca humildade pensar que já tinha
chegado a ter aquela oração; e como não podia conseguir de mim mesma pensar outra coisa, davame
isto muita pena, até que letrados e o bendito Frei Pedro de Alcântara me disseram que não
fizesse caso. Bem vejo eu que, no servir a Deus, ainda não comecei - embora no fazer-me Sua
Majestade mercês seja como aos muito bons - e que sou a mesma imperfeição, a não ser nos desejos
e em amor, pois nisto bem vejo me favoreceu o Senhor, para que O possa servir em alguma coisa.
Bem me parece a mim que O amo, mas as obras me desconsolam e as muitas imperfeições que veio
em mim.
18. Outras vezes dá-me uma tontice de alma -digo eu que é-, pois, nem bem nem mal me parece que
faço, senão andar na pegada das pessoas, como dizem; sem pena nem glória, nem lhe dá vida, nem
morte, nem prazer, nem pesar. Nem parece que se sinta nada. Parece-me a mim que anda a alma
como um jumentinho que pasta, que se sustenta porque lhe dão de comer e come quase sem o sentir.
É que, neste estado, a alma não deve estar sem comer algumas grandes mercês de Deus, pois em
vida tão miserável não lhe pesa viver e leva isto com igualdade de ânimo, mas não se sentem
movimentos nem efeitos para que a alma o entenda.
19. Parece-me agora a mim que é como um navegar com o vento muito sereno, que se anda muito
sem entender como. Nestas outras maneiras são tão grandes os efeitos, que a alma vê quase logo sua
melhoria, porque fervem os desejos e nunca acaba a alma de se satisfazer. Isto têm os grandes
ímpetos de amor, que tenho dito, a quem Deus os dá. É como umas fontezitas que eu tenho visto
manar, que nunca cessam de fazer mover a areia para cima.
Bem natural me parece este exemplo ou comparação das almas que aqui chegam; sempre está
bulindo o amor e pensando que fará. Não cabe em si, como na terra parece que não cabe aquela
água, senão que a lança de si. Assim está a alma muito habitualmente, que não sossega nem cabe
em si com o amor que tem; já ele a tem embebida em si. Quereria que outras bebessem, pois a ela
não lhe faz falta, para que a ajudassem a louvar a Deus. Oh! quantas vezes me recordo da água viva
de que falou o Senhor à Samaritana! E assim sou muito afeiçoada àquele Evangelho, e certo é que,
sem entender como agora este bem, já o era desde muito criança e suplicava muitas vezes ao Senhor
que me desse daquela água e, onde eu estava sempre, tinha um quadro, de quando o Senhor chegou
ao poço, com este letreiro: “Domine, da mihi aquam”.
20. Parece também como um fogo que é grande e, para que não se apague, é preciso que tenha que
queimar. São assim as almas que digo. Ainda que fosse muito à sua custa, quereriam trazer lenha
para que não cessasse este fogo. Eu sou tal que, até com palhas que pudesse lançar nele, me
contentaria. E assim me acontece algumas e muitas vezes: umas, eu me rio e outras me aflijo muito.
O movimento interior incita-me a que sirva em algo - já que não sou para mais - em pôr ramitos e
flores em imagens, em varrer, em compor um oratório, em umas coisitas tão baixas que me fazia
confusão. Se fazia ou faço alguma penitência, era tudo pouco e de maneira que, a não aceitar o
Senhor a vontade, via que era sem nenhum préstimo, e eu mesma me ria de mim. Pois não têm
pouco trabalho as almas a quem Deus dá, por Sua bondade, este fogo de Seu amor em abundância,
se lhes faltarem forças corporais para fazer alguma coisa por Ele. É uma pena bem grande; porque,
como lhe faltam forças para deitar alguma lenha neste fogo e ela morre para que não se apague,
parece-me que dentro de si ela se consome e se faz cinza e desfaz em lágrimas e se queima; e é
grande tormento, embora saboroso.
21. Louve muito e muito ao Senhor a alma que chegou aqui e a quem Ele dá forças corporais para
fazer penitência, ou lhe deu letras e talentos e liberdade para pregar e confessar e levar almas a
Deus, que não sabe nem entende o bem que tem, se não chegou a experimentar o que é não poder
nada no serviço do Senhor e receber sempre muito. Seja bendito por tudo e dêem-Lhe glória os
anjos. Amém.
22. Não sei se faço bem em escrever tantas minudências. Como V. Mercê me tornou a mandar que
não se me desse nada de me alongar, nem deixasse nada por dizer, vou tratando com clareza e
verdade tudo que me recordo. E não pode deixar de ficar muito por dizer, porque teria de gastar
muito mais tempo, e tenho tão pouco como tenho dito, e porventura para não tirar nenhum proveito.
CAPÍTULO 31. Trata de algumas tentações exteriores e representações que lhe fazia o demônio e
tormentos que lhe dava. Diz também algumas coisas muito boas para aviso de pessoas que vão a
caminho da perfeição.
1. Já que tenho dito de algumas tentações e perturbações interiores e secretas que o demônio me
causava, quero tratar agora de outras que me fazia, quase públicas, em que não se podia ignorar que
era ele.
2. Estava eu uma vez num oratório e apareceu-me para o lado esquerdo, em figura abominável; em
especial reparei na boca, porque me falou e a tinha horrenda. Parece-me que lhe saía do corpo uma
grande chama, que era toda clara, sem sombra. Disse-me de modo terrível que eu bem me tinha
libertado de suas mãos, mas que ele me faria voltar a elas. Tive grande temor e benzi-me como
pude; desapareceu e voltou logo. Por duas vezes me aconteceu isto. Eu não sabia que fazer de mim;
tinha ali água benta e lancei-a para aquele lado e nunca mais voltou.
3. Outra vez esteve cinco horas atormentando-me com tão terríveis dores e desassossego interior e
exterior, que julgo que mais já não se podia sofrer. As que estavam comigo estavam espantadas e
não sabiam que fazer, nem eu de que me valer. Tenho por costume, quando as dores e o mal
corporal são muito intoleráveis, fazer atos interiores conforme posso, suplicando ao Senhor que, se
disso for servido, Sua Majestade me dê paciência e permaneça eu assim até ao fim do mundo.
Desta vez, como vi tanto rigor no padecer, remediava-me com estes atos e determinações para o
poder sofrer. Quis o Senhor que eu entendesse como era o demônio, porque vi ao pé de mim um
negrito muito abominável, raivando como desesperado porque perdia onde pretendia ganhar. Eu,
quando o vi, ri-me e não tive medo. Estavam ali algumas irmãs comigo que não me podiam valer
nem sabiam que remédio dar a tanto tormento. É que eram grandes as pancadas que o demônio me
fazia dar com o corpo e cabeça e braços, sem eu poder opor resistência e o pior era o desassossego
interior, que, de nenhum modo, podia ter sossego. Não ousava pedir água benta para não causar
medo às irmãs e para que não entendessem o que era.
4. De muitas outras vezes tenho experiência que não há coisa de que eles fujam mais para não
voltar. Da cruz também fogem, mas voltam. Deve ser grande a virtude da água benta e para mim é
particular e muito conhecida a consolação que sente a minha alma quando a tomo. É certo que o
mais habitual é sentir uma consolação, que eu não a saberia dar a entender; é como um deleite
interior que me conforta toda a alma. Isto não é capricho, nem coisa que me tenha acontecido uma
só vez, senão muitíssimas e visto com muita advertência. Digamos que é como se alguém estivesse
com muito calor e sede e bebesse um jarro de água fria, que parece todo ele sentiu refrigério.
Considero eu que grande coisa é tudo o que está ordenado, pela Igreja e consolo-me muito de ver
que tenham tanta força aquelas palavras que assim a comunicam à água, para que seja tão grande a
diferença que faz da que não é benta.
5. Pois, como não cessasse o tormento, disse: se não se rissem, pediria água benta. Trouxeram-ma e
lançaram-na sobre mim e não surtiu efeito. Lancei-a para onde estava o demônio e, no mesmo
instante, ele se foi, e se me tirou todo o mal, como se com a mão mo tirassem. Apenas fiquei
cansada como se me tivessem dado muitas pancadas. Fez-me grande proveito ver que, não sendo
ainda dele uma alma e um corpo, lhes faz tanto mal quando o Senhor lhe dá licença, que será, pois,
quando ele os possuir como coisa sua? Deu-me de novo vontade de me livrar de tão ruim
companhia.
6. Outra vez, ainda há pouco, aconteceu-me o mesmo, mas não durou tanto, e eu estava só. Pedi
água benta às que entraram depois de já eles se terem ido e sentiram um cheiro muito mau como de
pedra de enxofre. Eram duas freiras e é bem de crer que, por caso nenhum, diriam mentira. Eu não o
senti; durou de maneira a poder-se aperceber bem disto.
Outra vez estava no coro e deu-me um grande ímpeto de recolhimento: saí dali para que não o
percebessem. Porém, todas as que estavam ali perto, ouviram dar pancadas grandes onde eu estava;
e ao pé de mim, eu ouvi falar como que combinando alguma coisa, embora não entendesse o quê.
Era fala grossa, mas estava tão em oração que não entendi coisa alguma, nem tive nenhum medo.
Era isto quase de cada vez que o Senhor me fazia mercê de que, por minha persuasão, se
aproveitasse alguma alma.
E é certo que me aconteceu o que agora direi. E disto há muitas testemunhas, em especial quem
agora me confessa que o viu escrito numa carta e, sem dizer-lhe eu de: quem era a carta, ele bem
sabia de quem se tratava.
7. Veio, pois, ter comigo uma pessoa que havia dois anos e meio estava num pecado mortal dos
mais abomináveis que tenho ouvido e em todo este tempo nem o confessava, nem se emendava e
dizia Missa. E embora confessasse outros, este, dizia, não havia de confessar coisa tão feia. E tinha
grande desejo de sair dele e não se podia vencer a si mesmo. A mim fez-me grande lástima; e ver
que se ofendia a Deus de tal maneira deu-me muita pena. Prometi-lhe suplicar muito a Deus lhe
pusesse remédio e fazer com que outras pessoas Lho pedissem, pois eram melhores do que eu.
Escrevia-lhe por intermédio de certa pessoa a quem ele me disse que podia dar as cartas. E é assim
que à primeira se confessou. Pois quis Deus (pelas muitas pessoas muito santas que Lho tinham
suplicado, e às quais eu o tinha encomendado) usar para com esta alma de misericórdia, e eu,
embora miserável, fazia o que podia, tomando-o muito a meu cuidado.
Escreveu-me que estava já com tanta melhoria, que havia dias que não caía nele; mas era tão grande
o tormento que lhe dava a tentação que lhe parecia estar no inferno segundo o que padecia. Que o
encomendasse a Deus. Eu tornei a pedir a minhas irmãs, por cujas orações devia o Senhor fazer-me
esta mercê, que o tomaram muito a peito. Era pessoa que ninguém podia atinar quem era. Eu
supliquei a Sua Majestade que se aplacassem aqueles tormentos e tentações e viessem contra mim
aqueles demônios a atormentarem-me, conquanto eu não ofendesse em nada ao Senhor. E assim
passei um mês de grandíssimos tormentos; então é que sucederam estas duas coisas que disse.
8. Foi o Senhor servido que eles o deixassem; assim mo escreveram, porque lhe disse o que eu sofri
nesse mês. Cobrou forças sua alma e ficou de todo livre, e não se fartava de dar graças ao Senhor e
a mim, como se eu tivesse feito alguma coisa, mas aproveitava-lhe o crédito que já tinha que o
Senhor me fazia mercês. Dizia que, quando se via em muito apuro, lia as minhas cartas e se lhe
tirava a, tentação e estava muito espantado do que eu tinha padecido e como ele se tinha livrado. E
até eu me espantei e o sofreria outros muitos anos para ver aquela alma livre. Seja louvado por tudo
o Senhor, que muito pode a oração dos que O servem, como eu creio que o fazem nesta casa estas
irmãs. Como era eu, no entanto, quem nisto se empenhava, deviam os demônios indignar-sé mais
comigo e o Senhor, por meus pecados, o permitia.
9. Neste tempo também julguei, uma noite, que me estrangulavam. As que estavam ali deitaram
muita água benta, e vi uma grande multidão deles fugir como quem se vai despenhando. São tantas
as vezes que estes malditos me atormentam, e tão pouco o medo que eu lhes tenho, por ver que nem
se podem mexer, se o Senhor lhes não dá liença, que cansaria a V Mercê e me cansaria a mim se eu
lhas dissesse.
10. O que fica dito aproveite ao verdadeiro servo de Deus para fazer pouco caso destes espantalhos
que os demônios armam para fazer temer. Saibam que, de cada vez que deles pouco se nos dá,
ficam com menos força e a alma muito mais senhora. Disto sempre nos fica algum proveito bem
grande que, para não me alongar, não digo.
Só direi isto que me aconteceu numa noite de Finados. Estando eu num oratório, e tendo rezado um
nocturno e dizendo umas orações - que estão no fim do nosso Breviário e são muito devotas -, se me
pôs um demônio sobre o livro para que eu não acabasse a oração. Eu benzi-me e ele desapareceu.
Tornando eu a começar, voltou; creio que foram três vezes as que a comecei, e, enquanto lhe não
deitei água benta, não pude acabar. E, no mesmo instante, vi que saíram algumas almas do
purgatório, às quais devia faltar pouco, e pensei que era isto o que o demônio pretendia estorvar.
Poucas vezes o tenho visto tomando forma corporal e muitas sem forma nenhuma, como na visão
em que, sem forma, se vê claramente que está ali, como tenho dito.
11. Quero também dizer isto, porque me espantou muito: estando um dia da Santíssima Trindade no
coro de certo mosteiro e em arroubamento, vi uma grande contenda de demônios contra anjos. Não
podia eu entender o que queria dizer aquela visão. Antes de quinze dias percebeu-se bem, por certa
desavença que houve entre gente de oração e muitos que o não eram, e dela veio não pouco dano à
casa onde isto se deu. Foi contenda que durou muito e de grande desassossego.
Outras vezes vi uma grande multidão deles, em redor de mim e parecia-me haver uma grande
claridade que me cercava toda e esta não lhes consentia chegar a mim. Entendi que me guardava
Deus para que se não aproximassem de mim de maneira a que me fizessem ofendê- Lo. Pelo que
tenho visto em mim algumas vezes, entendi que era verdadeira a visão.
O caso é que tenho entendido o seu pouco poder, se eu mesma não for contra Deus, que quase
nenhum temor lhes tenho. É porque são nenhumas as suas forças se não vêem almas rendidas a eles
e cobardes, que aqui mostram eles o seu poder.
Algumas vezes; nas tentações de que já falei, parecia-me que todas as vaidades e fraquezas dos
tempos passados tornavam a despertarem mim, e tinha de me encomendar bem a Deus. E logo era o
tormento de me parecer, pois me vinham aqueles pensamentos, que tudo em mim devia ser do
demônio, até que me sossegava ó confessor. É que, nem até ó primeiro movimente de mau
pensamento, julgava eu, havia de ter quem tantas a mercês recebia do Senhor.
12. Outras vezes me atormentava muito, e ainda agora me atormenta, ver que se faz, muito caso de
mim, em especial pessoas principais, e que de mim diziam muito bem. Nisto tenho padecido e
padeço muito. Olho logo para a vida de Cristo e dos santos, e parece-me que vou ao revés; pois eles
não iam senão por caminho de desprezos e injúrias. Isto faz-me andar temerosa e quase não ouso
levantar a cabeça, nem quereria aparecer; o que não faço quando tenho perseguições, porque anda a
alma tão senhora, embora o corpo o sinta, e eu por outra parte ande aflita, que não sei como isto
pode ser. Mas é assim, pois a alma parece então estar em seu reino e que traz tudo debaixo dos pés.
Dava-me algumas vezes e durava-me muitos dias. Parecia-me, por um lado, ser virtude e
humildade, mas agora vejo claramente que era tentação. Um frade dominicano, grande letrado, mo
declarou bem. Quando pensava que estas mercês que o Senhor me faz se viriam a saber em público,
era tão excessivo o tormento, que me inquietava muito a alma. Chegou a termos que, considerandoo,
parece-me que da melhor vontade me determinava a ser enterrada viva do que a isto. Assim,
quando me começaram estes grandes recolhimentos ou arroubamentos, sem lhes poder resistir,
mesmo em público, ficava depois tão corrida de vergonha que não quisera aparecer onde alguém me
visse.
13. Estando uma vez muito aflita com isto, perguntou-me o Senhor: por que temia, pois nisto não
podia haver senão duas coisas: ou murmurarem de mim ou louvarem-n'O a Ele, dando a entender
que, aqueles que acreditavam, O louvariam, e os que não criam, condenar-me-iam sem culpa.
Ambas as coisas eram lucro para mim; que não me afligisse. Muito me sossegou isto e consola
ainda quando me lembro.
Chegou a termos a tentação de, eu me querer ir deste lugar e dotar-me noutro mosteiro muito mais
encerrado que aquele em que ao tempo estava, e do qual tinha ouvido dizer muitos extremos. Era
também da minha Ordem e muito longe, que isso era o que a mim me consolava, estar onde não me
conhecessem, mas nunca o meu confessor me deixou.
14. Muito me tiravam a liberdade de espírito estes temores; depois vim a entender que não era boa
humildade, pois tanto inquietava. E o Senhor ensinou-me esta verdade: se eu estivesse bem
persuadida e certa de que nenhuma coisa boa era minha, senão de Deus, que assim como não me
pesava de ouvir louvar outras pessoas, antes gostava e me consolava muito de ver que ali se
mostrava Deus, assim tão-pouco me pesaria que Ele mostrasse em mim as Suas obras.
15. Também dei noutro extremo: foi suplicar a Deus - e com oração particular - que, quando a
alguma pessoa lhe parecesse algo de bem em mim, Sua Majestade lhe declarasse os meus pecados,
para que visse, quão sem mérito meu, Ele me fazia mercês. Isto desejei-o sempre muito. O meu
confessor me disse que não o fizesse; mas até ainda há pouco, se via que uma pessoa pensava muito
bem de mim, com rodeios, ou conforme podia, dava-lhe a entender meus pecados, e com isto parece
que descansava. Também me puseram muito escrúpulo nisto.
16. Procedia isto, a meu parecer, não de humildade, mas duma tentação vinham muitas outras.
Parecia-me que a todos trazia enganados e, embora seja verdade que andam enganados em pensar
que há algum bem em mim, não é meu desejo engana-los, nem jamais tal pretendi, senão que o
Senhor por algum fim o permite. E assim, nem até com os confessores, se não visse ser necessário,
trataria nenhuma coisa destas, porque me faria grande escrúpulo. Todos estes temorzitos e penas e
sombras de humildade, entendo eu agora que era grande imperfeição e de eu não estar mortificada;
porque a uma alma que se pôs nas mãos de Deus, tanto se lhe dá que digam bem como mal. Isto,
bem entendido, se ela compreendeu bem - tal como o Senhor lhe quer fazer mercê que o
compreenda - que de si nada tem. Fie-se de Quem lho dá, pois sabe a razão porque as descobre e
prepare-se para a perseguição, que é certa nos tempos de agora, quando o Senhor quer que de
alguma pessoa sé entenda que Ele lhe faz semelhantes mercês. Há mil olhos para uma alma destas,
quando para mil almas doutra feitura não há nenhum.
17. Na verdade não há pouca razão de temer, e este devia ser meu temor, não humildade, senão
pusilanimidade. Pois bem se pode dispor uma alma que Deus permite que assim ande nos olhos do
mundo, a ser mártir do mundo; porque, se ela não quiser morrer para ele, o mesmo mundo a matará.
Não vejo nele, certo é, outra coisa que bem me pareça, se não isto: não consentir faltas nos bons
que, a poder de murmurações, não as aperfeiçoe. Digo que é mister mais ânimo, se não é perfeito,
para levar caminho de perfeição, do que para ser logo mártir. A perfeição não se alcança em breve
tempo, a não ser aqueles a quem o Senhor quer, por particular privilégio, fazer esta mercê. O
mundo, em vendo-o começar, logo o quer perfeito e a mil léguas lhe percebe alguma falta que,
porventura, nele é virtude e quem o condena julga aquilo mesmo um vício e assim o julga no outro.
Não há de haver comer, nem dormir, nem, como dizem, respirar; e, em quanto mais o têm, mais se
devem olvidar que ainda estão no corpo. Por perfeita que tenham a alma, vivem ainda na terra
sujeitos às suas misérias, por mais que a tenham debaixo dos pés. E assim, como digo, requer-se
grande ânimo, porque a pobre alma ainda não começou a andar e querem que voe; ainda não tem
vencidas as paixões e querem que, em grandes ocasiões, esteja tão inteira na virtude como eles lêem
que estavam os santos depois de confirmados em graça.
É para louvar o Senhor o que nisto se padece e ainda para se doer muito o coração: porque muitas,
muitas almas tornam atrás, pois não sabem as pobrezitas defender-se. E assim, creio, faria a minha,
se o Senhor tão misericordiosamente não tivera feito tudo da sua parte; e até que, por sua bondade,
Ele não fez tudo, V Mercê verá que não tem havido em mim senão cair e levantar.
18. Quereria sabê-lo dizer, porque creio se enganam aqui muitas almas que querem voar antes que
Deus lhes dê asas. Creio já ter usado de outra vez esta comparação, mas vem bem aqui. Tratarei
disto, porque vejo algumas almas muito aflitas por esta causa. Começam com grandes desejos e
fervor e determinação de ir adiante na virtude e algumas, quanto ao exterior, tudo deixam por Ele,
pois vêem noutras pessoas, que são mais crescidas, coisas muito grandes de virtudes que lhes dá o
Senhor, que, por nós mesmos, não podemos conseguir; e, como vêem em todos os livros que estão
escritos sobre a oração e contemplação, mencionar coisas que havemos de fazer para subir a esta
dignidade, elas desconsolam-se, porque não as podem logo conseguir. É um não se nos dar nada de
que digam mal de nós, antes ter maior contento do que quando dizem bem; uma pouca estima de
honra, um desapego de parentes que, se não são pessoas de oração, quereria não tratar com eles,
pois que antes cansam; e outras muitas coisas deste gênero que, a meu parecer, é Deus que lhas há
de dar, porque julgo que já são bens sobrenaturais ou contra a nossa natural inclinação.
Não se aflijam; esperem no Senhor, pois o que agora têm em desejo, Sua Majestade fará que
cheguem a tê-lo por obra, com oração e fazendo de sua parte o que está nas suas mãos, porque é
muito necessário, para este nosso fraco natural, ter grande confiança e não desanimar, nem pensar
que; se nos esforçamos, deixaremos de sair com vitória.
19. E, porque tenho muita experiência disto, direi alguma coisa para aviso de V Mercê. Não pense,
embora lhe pareça que sim, que está ganha a virtude, se não a experimenta com o seu contrário. E
sempre havemos de andar suspeitosos e não nos descuidamos enquanto vivermos; porque muito se
nos apega logo o coração, se - como digo - não nos foi já dada de todo a graça de conhecer o que
tudo é, e que nesta vida nunca há nada sem muitos perigos.
Parecia-me a mim, há uns anos atrás, que não só não estava apegada a meus parentes, senão que me
cansavam, e era certo ser assim, pois não podia suportar a sua conversação. Ofereceu-se certo
negócio de não pouca importância, e tive de estar com uma irmã minha, a quem eu antes queria
muito. E, embora na conversação eu não me afizesse a ela (porque, ainda que seja melhor do que eu
-como tem diferente estado, pois é casada -, não podíamos falar sempre naquilo que eu queria, e
estava só o mais possível) vi que me davam pena suas penas muito mais que as do próximo, e
algum cuidado. Enfim, entendi que não estava tão livre como eu pensava e que ainda tinha
necessidade de fugir da ocasião para que esta virtude, que o Senhor me havia começado a dar, fosse
em crescimento. E assim, com Seu favor, tenho procurado fazer de então para cá.
20. Em muito se há de ter uma virtude quando o Senhor a começa a dar e de nenhuma maneira nos
devemos pôr em perigo de a perder. Assim é em coisas de honra e em outras muitas; pois creia V.
Mercê que nem todos os que julgam estar desapegados de todo, o estão, e é preciso nunca descuidar
nisto. Qualquer pessoa que sinta em si algum ponto de honra, se quer progredir, creia-me e esforcese
contra este atilho. É uma cadeia que não há lima que a quebre a não ser Deus com a nossa oração
e fazermos muito da nossa parte. Parece-me que é um liame para este caminho, que eu me espanto
com o dano que causa.
Vejo algumas pessoas santas em suas obras, que as fazem tão grandes que espantam as gentes.
Valha-me Deus! Porque está ainda na terra esta alma? Como não chegou ao cume da perfeição?
Que é isto? Quem detém a quem tanto faz por Deus?3' Oh! é que tem um ponto de honra! E o pior é
que não quer entender que o tem, e é porque o demônio lhe faz entender que é obrigada a tê-lo.
21. Pois creiam-me, creiam por amor do Senhor a esta formigazita que o Senhor quer que fale. Se
não tiram esta lagarta, se bem que não dane a toda a árvore, porque algumas outras virtudes ficarão,
serão todas carcomidas. Não é árvore frondosa, não medra, nem mesmo deixa medrar as que estão
ao pé dela; porque a fruta que dá de bom exemplo, não é nada sã; pouco durará.
Muitas vezes digo, que, por pouco que seja o ponto de honra, é como o canto do órgão que, por um
ponto ou compasso que se erre, destoa toda a música. É coisa que em todas as partes faz muito dano
à alma, mas neste caminho de oração é pestilência.
22. Andamos procurando juntar-nos com Deus por união, e queremos seguir os conselhos de Cristo
carregado de injúrias e de falsos testemunhos, e queremos muito inteira a nossa honra e crédito?
Não é possível lá chegar, não vão pelo mesmo caminho. Achega-se o Senhor à alma, quando nos
esforçamos e procuramos perder de nosso direito em muitas coisas.
Dirão alguns: "não tenho em quê, nem se me oferecem ocasiões". Creio que, a quem tiver esta
determinação, não permitirá o Senhor. que perca tão grande bem. Sua Majestade proporcionará
tantas coisas em que ganhe esta virtude, que não quererá tantas. Mãos à obra!
23. Quero dizer as ninharias e pouquidades que eu fazia quando comecei, ou algumas delas; as
palhazitas que disse que ponho no fogo, pois não sou para mais. Tudo recebe o Senhor; seja bendito
para sempre.
Entre as minhas faltas tinha esta: que sabia pouco da salmodia e do que havia de fazer no coro e
como o dirigir, por puro descuido e estar metida em outras vaidades. Via outras, ainda noviças, que
me podiam ensinar. Acontecia não lhes perguntar, para que não entendessem que sabia pouco. Logo
se põe diante o bom exemplo; isto é muito habitual. Mas logo que Deus me abriu um pouco os
olhos, até mesmo sabendo, por um nadinha que estivesse em dúvida, perguntava às pequenas como
era. Nem perdi honra nem crédito, antes quis o Senhor, a meu parecer, dai-me depois mais
memória.
Sabia cantar mal. Sentia-o tanto, se não tinha estudado o que me encomendavam (e não por cometer
faltas diante do Senhor, que isto fora virtude, mas pelas muitas freiras que me ouviam) que, de puro
amor próprio, me perturbava tanto, que dizia muito menos do que sabia. Tomei depois para mim,
quando não o sabia muito bem, dizer que não sabia. Sentia-o muito aos princípios e depois gostava
disso. E é assim que, como comecei a não se me dar nada de que se entendesse que não sabia, dizia
muito melhor. É que a negra honra impedia que soubesse fazer isto que eu tinha por honra, pois
cada um a põe nó que quer.
24. Com estas ninharias, que são nada - e bem nada sou eu, pois isto me dava pena -, pouco a pouco
se vão fazendo atos; e com outras coisas pouquinhas como estas, que, por serem feitas por Deus,
lhes dá Sua Majestade tomo, ajuda Sua Majestade a coisas maiores. E assim, em coisas de
humildade, acontecia-me que, por ver que todas aproveitavam na virtude menos eu, porque nunca
fui para nada, das que saíam do coro ia eu recolher e dobrar todas as capas. Parecia-me servir
aqueles anjos que ali louvavam a Deus, até que, não sei como, o vieram a saber e não me
envergonhei pouco, porque não chegava a minha virtude a querer que entendessem estas coisas, e
não devia ser por humildade, mas para que se não rissem de mim, como eram tão nada.
25. Ó Senhor meu! que vergonha é ver tantas maldades e contar umas areiazitas, que nem ainda as
levantava da terra para Vosso serviço, senão que tudo ia envolto em mil misérias! Não manava
ainda a água da Vossa graça debaixo destas areias para que as fizesse levantar.
Oh! Criador meu, quem pudera ter alguma coisa de monta a mencionar, entre tantos males, pois
conto as grandes mercês que hei recebido de Vós! É assim, Senhor meu, que não sei como o pode
sofrer meu coração nem como poderá quem isto ler, deixar de me aborrecer, vendo tão mal
correspondidas tão grandíssimas mercês e que não tenho vergonha de contar estes serviços, como
meus que são. Sim, tenho vergonha, Senhor meu; mas o não ter outra coisa a contar da minha parte,
me faz dizer tão baixos princípios para que tenha esperança, quem os fizer grandes, pois que a estes
parece que tomou o Senhor em conta, melhor tomará a esses outros. Praza a Sua Majestade dar-me
graça para que não fique sempre nos princípios. Amém.
CAPÍTULO 32. Trata como aprouve ao Senhor pô-la em espírito no lugar do inferno que por seus
pecados tinha merecido. Conta um pouco do que ali se lhe representou. Começa a tratar da
maneira e modo como, se fundou o mosteiro de S. José onde agora está.
1. Depois de muito tempo, quando o Senhor me tinha já feito muitas das mercês que tenho dito e
outras muito grandes, estando um dia em oração, achei-me de repente, sem saber como, e segundo
me parece, toda metida no inferno. Entendi que o Senhor queria que visse o lugar que os demônios
lá me tinham preparado, e eu merecido, por meus pecados. Foi de brevíssima duração, mas, embora
eu vivesse muitos anos, parece-me impossível esquecê-lo.
Parecia-me a entrada à maneira dum beco muito comprido e estreito, semelhante a um forno muito
baixo e escuro e apertado. O chão pareceu-me duma água com lodo muito sujo e de cheiro
pestilencial e cheio de muitas sevandijas peçonhentas. No fundo, havia uma concavidade aberta
numa parede a modo dum armário, aonde me vi meter em muita estreiteza.
Tudo isto era deleitoso à vista, em comparação do que ali senti. Isto que tenho dito vai mal
encarecido.
2. Este outro parece-me que nem ainda pode haver princípio de o poder explicar e de compreender
como é. Senti um grande fogo na alma que eu não chego a entender como poder dizer de que
maneira é. As dores corporais são tão incomportáveis que, apesar de eu as ter passado nesta vida
gravíssimas, tudo é nada em comparação do que ali senti. E, segundo dizem os médicos, tive as
maiores que aqui se podem passar. Foi encolherem-se-me todos os nervos quando fiquei tolhida,
além de outras muitas e de muitas maneiras, e até algumas, como tenho dito, causadas pelo
demônio. Pois tudo isso é nada em comparação do que ali senti e ver que havia de ser sem fim e
sem jamais cessar.
Isto, pois, não é nada em comparação com o agonizar da alma: um aperto, uma sufocação, uma
aflição tão sensível e com um tão desesperado e aflitivo descontentamento, que eu não sei explicar.
Porque, dizer que é um estar sempre arrancando-se a alma, é pouco, pois que então ainda parece que
outro vos acaba com a vida; mas aqui é a própria alma que se despedaça.
O caso é que eu não sei como encarecer aquele fogo interior e aquela desesperação sobrepostos a
tão gravíssimos tormentos e dores. Não via eu quem mos dava, mas sentia-me queimar e retalhar,
ao que me parece. E digo que aquele fogo e desesperação interior é o pior.
3. Estando em tão pestilencial lugar, tão desesperada de toda a consolação, não há sentar-se,' nem
deitar-se, nem há lugar, porquanto me puseram neste como que buraco feito na parede. Porque estas
paredes, que são espantosas à vista, apertam por si mesmas e tudo sufoca. Não há luz, mas tudo
trevas escuríssimas. Eu não entendo como pode ser isto, que, não havendo luz, se vê tudo o que à
vista há de causar pena.
Não quis o Senhor que eu então visse mais nada de todo o inferno. Depois tive outra visão de coisas
espantosas: o castigo de alguns vícios. Quanto à vista, pareceram-me muito mais espantosos, mas
como não sentia a pena, não me fizeram tanto temor como na visão em que o Senhor quis que eu
verdadeiramente sentisse aqueles tormentos e aflição no espírito, como se o corpo o estivesse
padecendo.
Eu não sei como isso foi, mas bem compreendi ser grande mercê e que o Senhor quis que eu visse,
numa vista de olhos, donde me tinha livrado a Sua misericórdia. Porque não é nada o ouvi-lo dizer,
nem eu ter meditado de outras vezes sobre diversos tormentos (embora poucas vezes o fizesse, pois
que, por caminho de temor, não ia bem a minha alma), nem que os demônios atormentam, nem
outros diferentes suplícios que tenho lido, nada é como esta pena, porque é outra coisa. Enfim, é tão
diferente como a pintura o é da realidade, e o queimar-se aqui na terra é muito pouco em
comparação com este fogo de lá.
4. Eu fiquei tão aterrada, e ainda agora o estou ao escrever isto, apesar de haver já quase seis anos
que de temor - parece-me, e assim é -, me falta o calor natural aqui onde estou. E assim não me
recordo vez alguma em que tenha trabalhos ou dores, que tudo quanto cá na terra se pode passar,
não me pareça ninharia e assim julgo que, em parte, nos queixamos sem razão. Torno, pois, a dizer
que foi uma das maiores mercês que o Senhor metem feito, e metem aproveitado muitíssimo, tanto
para perder o medo às tribulações e contradições desta vida, como para esforçar-me a padecê-las e
dar graças ao Senhor que me livrou, ao que agora me parece, de males tão perpétuos e terríveis.
5. De então para cá, como digo, tudo me parece fácil em comparação dum momento que se haja de
sofrer o que eu ali padeci. Espanta-me como, tendo lido muitas vezes livros que dão alguma idéia
das penas do inferno, como não as temia nem as tinha no que elas são. Onde estava? Como me
podia dar descanso coisa que me arrastava a tão mau lugar? Sede bendito, Deus meu, para sempre!
E, como tem parecido que Vós me quereis, muito mais a mim do que eu me quero! Quantas vezes,
Senhor, me livrastes do cárcere tão tenebroso e como eu me tornava a meter nele contra a Vossa
vontade!
6. Daqui também cobrei a grandíssima pena que me dão as almas que se, condenam (destes
luteranos em especial, porque já eram, pelo Batismo, membros da Igreja), e os grandes ímpetos de
salvar almas, que me parece certo que, para livrar uma só de tão gravíssimos tormentos, padeceria
eu muitas mortes de muito boa vontade. Noto que, se vemos cá uma pessoa, a quem mui
particularmente queremos bem, com um grande trabalho ou dor, o nosso mesmo natural parece que
nós convida à compaixão e, se é grande o sofrimento, oprime-nos também a nós mesmos. Pois ver
uma alma, para sempre sem fim, no sumo trabalho dos trabalhos, quem o poderá sofrer? Não há
coração que o sofra sem grande pena. Pois se aqui, embora sabendo que se acabará com a vida e
que enfim, em breve termo, nos move a tanta compaixão; não sei como podemos sossegar à vista
deste outro que o não tem, vendo tantas almas, como são as que o demônio arrasta consigo cada dia.
7. Isto também me faz desejar que, em coisa que tanto importa, não nos contentemos com menos
que fazer tudo o que pudermos da nossa parte. Não deixemos nada por fazer e praza ao Senhor seja
servido de nos dar graça para isso.
Considero que, embora fosse tão imensamente má, andava com algum cuidado de servir a Deus e
não fazia algumas coisas que vejo tragarem-nas no mundo, como se não fossem nada. Enfim;
padecia grandes enfermidades e com muita paciência que ma dava o Senhor. Não era inclinada a
murmurar, nem a dizer mal de ninguém, nem me parece podia querer mal a ninguém, nem era
ambiciosa, nem inveja me lembro jamais de ter, de forma que fosse ofensa grave ao Senhor, e mais
algumas outras coisas. É que, embora fosse tão ruim; andava em contínuo temor de Deus. Vejo, no
entanto, onde os demônios já me tinham arranjado pousada, e a verdade é que, segundo minhas
culpas, ainda me parece que merecia maior castigo. Digo, contudo, que era terrível tormento, e que
é coisa perigosa o satisfazer-se e ter sossego e contento uma alma que, a cada passo, anda caindo
em pecado mortal. Mas sim, tiremo-nos, por amor de Deus, das ocasiões, que o Senhor nos ajudará
como me tem feito a mim. Praza a Sua Majestade não me deixar de Sua mão para que não torne a
cair, pois já tenho visto aonde irei parar. Não o permita o Senhor, por quem Sua Majestade é.
Amém.
8. Depois de ter visto isto e outras grandes coisas e segredos que por Sua bondade o Senhor me quis
mostrar da glória que se dará aos bons e da pena que se dará aos maus, andava eu desejando modo e
maneira de poder fazer penitência de tanto mal e merecer alguma coisa para ganhar tanto bem.
Desejava fugir da gente e acabar, de todo em todo, de me apartar do mundo. Não sossegava meu
espírito, mas não era desassossego inquieto, senão saboroso. Bem se via que era de Deus e que Sua
Majestade tinha dado calor à alma para digerir outros manjares mais fortes do que aqueles que
comia.
9. Pensava o que poderia fazer por Deus e pensei que a primeira coisa era seguir o chamamento que
Sua Majestade me fizera à Religião, guardando minha Regra com a maior perfeição que pudesse.
Na casa onde estava, havia muitas servas de Deus e o Senhor era nela muito servido. Mas, por causa
de ter grande necessidade o mosteiro, as monjas saíam muitas vezes a lugares onde, com toda a
honestidade e religião, podiam estar. E também não estava fundada a Regra em seu primeiro rigor,
senão que se guardava conforme ao que se fazia em toda a Ordem, que é com Bula de mitigação.
Havia ainda outros inconvenientes, pois parecia-me a mim que tinha muito regalo por ser a casa
grande e deleitosa. Porém, este inconveniente de sair, embora fosse eu a que muito o usava, para
mim já era bem grande, porque algumas pessoas, a quem os prelados não podiam dizer que não,
gostavam que eu estivesse em sua companhia e, importunados eles, mandavam-me ir. E assim,
conforme se iam ordenando as coisas, pouco poderia estar no mosteiro. O demônio devia, em parte,
ajudar a isso porque eu comunicava com algumas, o que me ensinavam os que tratavam comigo e
assim era grande o proveito.
10. Ofereceu-se uma vez, estando eu com uma pessoa, dizer-me ela e a outras que, se quiséssemos
ser freiras à maneira das Descalças, seria talvez possível poder-se vir afazer um mosteiro. Eu, como
andava com estes desejos, comecei a tratar com aquela senhora minha companheira viúva, de quem
já falei e que tinha o mesmo desejo. Ela começou a fazer planos para lhe dar renda. Ao que agora
vejo, não levava muito caminho, mas o desejo que disso tínhamos nos fazia parecer que sim.
Eu, por outro lado, como me sentia com tão grandíssimo contento na casa onde estava, porque era
muito a meu gosto e a cela em que vivia feita muito a meu propósito; detinha-me todavia.
Combinamos, contudo; encomendar muito a Deus o caso.
11. Tendo eu um dia comungado, Sua Majestade mandou-me instantemente que o procurasse
realizar com todas as minhas forças, fazendo-me grandes promessas de que o mosteiro não se
deixaria de fazer, e nele se serviria muito a Deus, e que lhe pusesse o nome de S. José: ele nos
guardaria a uma das portas e Nossa Senhora à outra e Cristo andaria conosco. Que esta casa seria
uma estrela que irradiaria de si grande resplendor e, embora as Religiões estivessem relaxadas, não
pensasse eu que Ele era pouco servido nelas. Que seria do mundo se não fossem os religiosos? Que
dissesse ao meu confessor que Ele me pedia isto e a ele lhe rogava não fosse contra, nem mo
estorvasse.
12. Foi esta visão acompanhada de tão grandes efeitos e de tal maneira esta fala do Senhor que eu
não podia duvidar que era Ele. Senti, no entanto; grandíssima pena, pois se me representaram, em
parte, os grandes desassossegos e trabalhos que me havia de custar e por estar contentíssima
naquela casa; porque, embora eu antes tratasse da fundação, não era com tanta determinação nem
com certeza de que se haveria de fazer. Agora, aqui, dir-se-ia que me faziam pressão e, como via
que começava coisa de grande desassossego, estava em dúvida do que faria. Mas foram tantas as
vezes em que o Senhor me tornou a falar nisso, pondo-me diante tantos motivos e razões, que eu via
serem claros e que. era a Sua vontade, que já não ousei fazer outra coisa senão dizê-lo a meu
confessor e dei-lhe, por escrito, relação de tudo o que se passava.
13. Ele não ousou dizer-me determinadamente que o deixasse de lado„ mas via que não levava
caminho, conforme à razão natural, pois eram pouquíssimas ou quase nenhumas as possibilidades
da minha companheira, que era quem o havia de fazer. Disse-me que o tratasse com meu prelado e,
o que ele dissesse, isso fizesse.
Eu não tratava destas visões com o prelado, mas a tal senhora; que queria fazer o mosteiro, foi falar
com ele. O Provincial anuiu a isso de boamente, pois é amigo de toda a perfeição e deu-lhe todo o
apoio necessário e disse-lhe que admitiria a casa. Trataram da renda que havia de ter e, por muitas
razões, queríamos que nunca fossem mais de treze?
Antes de começar a tratar disto, escrevemos ao santo Frei Pedro de Alcântara dizendo tudo o que se
passava. Aconselhou-nos que não o deixássemos de fazer e deu-nos o seu parecer em tudo.
14. Ainda mal se tinha começado a saber no lugar, quando veio sobre nós a grande perseguição que
não se pode descrever em poucas palavras. Foram ditos, risos, dizer-se que era disparate. A mim
diziam que estava bem no meu mosteiro. À minha companheira, tanta foi a perseguição, que a
traziam mortificada. Eu não sabia que fazer de mim e, em parte, parecia-me que tinham razão.
Estando assim muito aflita encomendando-me a Deus, começou Sua Majestade a consolar-me e a
animar-me. Disse-me que por aqui veria o que passaram os santos que tinham fundado as Ordens
Religiosas; que muito maior perseguição do que as que eu podia pensar, tinha eu de sofrer, mas que
disso não se nos desse nada. Dizia-me algumas coisas para que eu as dissesse à minha companheira,
e o que mais me espantava é que logo ficávamos consoladas do que já tínhamos passado e com
ânimo para resistir a todos. E é assim que, de gente de oração, e, enfim, em todo o lugar, não havia
quase pessoa que não fosse então contra nós e não lhes parecesse grandíssimo disparate.
15. Foram tantos os ditos e o alvoroto do meu próprio mosteiro, que, ao Provincial, lhe pareceu
difícil opor-se a todos e assim mudou de parecer e não quis admitir a fundação. Disse que a renda
não era segura e que era pouca e muita a contradição. Em tudo parece que tinha razão. E, enfim,
desinteressou-se e não o quis admitir. A nós já nos parecia que tínhamos recebido os primeiros
golpes e deu-nos uma pena muito grande, em especial a mim por ver o Provincial contrário, porque,
querendo-o ele, tinha eu desculpa para todos. À minha companheira já não a queriam absolver se o
não deixasse, porque, diziam, estava obrigada a evitar o escândalo.
16. Ela foi ter com um grande letrado, muito grande servo de Deus, da Ordem de S. Domingos, a
dizer e a dar conta de tudo. Isto foi ainda antes do Provincial ter abandonado a idéia, porque em
todo o lugar não tínhamos quem nos quisesse dar um parecer e assim diziam que nos guiávamos só
por nossas cabeças. Esta senhora deu, pois, relação de tudo, e conta da renda que tinha do seu
morgadio, a este santo varão, com grande desejo que nos ajudasse, porque era ele o maior letrado
que então havia neste lugar e poucos maiores havia na sua Ordem. Eu também lhe disse tudo o que
pensávamos fazer e algumas causas que nos levavam a isso. Não lhe disse, no entanto, coisa de
revelação alguma, senão as razões naturais que me moviam, porque eu não queria que nos desse
parecer senão conforme a elas.
Pediu que lhe déssemos um prazo de oito dias para responder e perguntou se estávamos
determinadas a fazer o que ele nos dissesse. Disse-lhe que sim e, embora eu o dissesse e penso que
o faria (nem mesmo por então via caminho para o levar por diante), nunca perdi a segurança de que
sé, havia de fazer o mosteiro. Minha companheira tinha mais fé; nunca ela, por coisa alguma que
lhe dissessem, se resolveria a deixá-lo.
17. Eu - como digo - achava impossível deixar de se fazer, de tal maneira tinha para mim ser
verdadeira a revelação, desde que nada fosse contra o que está na Sagrada Escritura ou conta as leis
da Igreja que somos obrigadas a cumprir. Mas, embora a mim verdadeiramente me parecesse ser de
Deus, se aquele letrado me dissesse que não o podíamos fazer sem O ofender e que íamos contra a
consciência, parece-me que logo me apartaria disso ou buscaria outro meio; porém o Senhor não me
dava senão este.
Dizia-me depois este servo de Deus que tomara o assunto a seu cargo na plena determinação de pôr
da sua parte muito empenho em nos dissuadir de o realizar. É que já tinha vindo à sua notícia o
clamor do povo e a ele também lhe parecia desatino, tal como a todos. E logo que soube que o
tínhamos ido procurar, um cavalheiro o mandara avisar para que visse o que fazia e não nos
ajudasse, mas, em começando a ver o que nos havia de responder e a pensar no negócio e o intento
que tínhamos e maneira de viver e religião, assentou-se-lhe ser muito do serviço de Deus e que não
se havia de deixar de fazer.
E assim nos respondeu que nos déssemos pressa em concluí-lo e disse a maneira e esboço que havia
de ter; e, embora a fazenda fosse pouca, que alguma coisa se havia de fiar de Deus. Quem
contradissesse a fundação, que fosse ter com ele, que ele lhe responderia. Assim sempre nos ajudou,
como depois direi.
18. Com isto nos fomos muito consoladas e também porque algumas pessoas santas, que nos
costumavam ser contrárias, já estavam mais aplacadas e algumas até nos ajudavam.
Entre elas, uma era o cavalheiro santo, de quem já tenho feito menção, o qual, como o é, e lhe
parecia levar caminho de tanta perfeição, por ser a oração todo o nosso fundamento, embora os
meios lhe pareciam muito dificultosos e sem caminho, rendia seu parecer a que podia ser coisa de
Deus, o mesmo Senhor o devia mover. Assim fez com o Mestre, aquele clérigo servo de Deus, de
quem disse ter sido o primeiro que me tinha falado, que é o espelho de todo o lugar, como pessoa
que Deus tem nele para remédio e proveito de muitas almas, que também já estava em me ajudar no
negócio.
Estando pois as coisas nestes termos, e sempre com a ajuda de muitas orações, compramos uma
casa em bom lugar. Era pequena. Disto, a mim, não se me dava nada, porquanto o Senhor me havia
dito que entrasse como pudesse; depois veria o que Sua Majestade faria. E que bem o tenho visto! E
assim, embora visse ser pouca a renda, tinha a certeza que o Senhor, por outros meios, havia de
prover e favorecer-nos.
CAPÍTULO 33. Prossegue na mesma matéria da fundação do mosteiro de S. José. Diz como lhe
mandaram que não se metesse nela e o tempo que a deixou e alguns trabalhos que teve e como
neles a consolava o Senhor.
1. Estando pois os negócios neste estado e tão a ponto de se acabar, que no outro dia se haviam de
fazer as escrituras, foi quando o Nosso Padre Provincial mudou de parecer. Creio que foi movido
por inspiração divina, segundo se tem visto depois; porque, como as orações eram tantas, ia o
Senhor aperfeiçoando a obra e ordenando as coisas para que se fizesse doutro modo. Como o
Provincial não quis admitir a fundação, o meu confessor mandou que não me metesse mais nisso.
Porém, o Senhor bem sabe os grandes trabalhos e aflições que já me tinha custado o levar as coisas
àquele ponto. Como se pôs tudo de lado e ficou assim, mais se confirmou ser disparate de mulheres
e a crescer a murmuração contra mim, apesar de meu Provincial mo ter mandado até então.
2. Estava muito malquista em todo o meu mosteiro, por querer fazer mosteiro mais encerrado.
Diziam que lhes fazia afronta, que ali podia também servir a Deus, pois havia lá outras melhores
que eu, que não tinha amor à casa; melhor era procurar renda para ela do que para outra parte. Umas
diziam que me metessem no cárcere; outras, bem poucas, tomavam um tanto a minha defesa. Eu
bem via que em muitas coisas tinham razão, e algumas vezes dava-lhes desconto embora, como não
podia dizer o principal, que era mandar-mo o Senhor, não sabia que fazer e assim calava. Outras
vezes, fazia-me Deus muito grande mercê de que tudo isto não me desse inquietação, e com tanta
facilidade e contentamento o deixei, como se não me houvesse custado nada. E isto ninguém o
podia acreditar, nem ainda as mesmas pessoas de oração que tratavam comigo, porquanto pensavam
que estava muito penalizada e corrida, e até o meu confessor não acabava de o crer. Eu, como me
parecia ter feito tudo quanto podia, achava não estar obrigada a mais para cumprir o que o Senhor
me tinha mandado, e ia-me ficando na casa, onde estava muito contente e a meu prazer. Ainda que
jamais pude deixar de crer que se havia de fazer, não via já meio, nem sabia como, nem quanto.
Mas tinha-o por muito certo.
3. O que muito me afligiu foi uma vez que, o meu confessor, como se eu tivesse feito coisa contra
sua vontade, (também o Senhor devia querer que, daquilo que mais me havia de doer, não
deixariam de surgir trabalhos), e assim, nesta multidão de perseguições, parecendo-me que ele me
haveria de consolar, escreveu-me a dizer que já via, por tudo o que tinha sucedido, era tudo um
sonho; que me emendasse dali em diante não querendo levar a minha avante, nem falando mais no
assunto, pois via o escândalo que tinha acontecido e outras coisas, todas para causar sofrimento.
Tudo isto deu-me mais pena, parecendo-meter sido eu ocasião, por minha culpa, de ofensa e que, se
estas visões eram ilusórias, toda a oração que tinha era engano e que eu andava muito enganada e
perdida.
Apertou-me isto em tanto extremo, que fiquei toda perturbada e em grandíssima aflição. Mas o
Senhor, que nunca me faltou, e em todos estes trabalhos que tenho contado, muitas vezes me
consolava e dava forças - que não há necessidade de o dizer aqui - disse-me então que não me
afligisse, pois tinha servido muito a Deus e não ofendido naquele negócio; mas fizesse o que me
mandava o confessor, que me calasse por então, até que fosse tempo de voltar a isso. Fiquei tão
consolada e contente, que já não me parecia nada toda a perseguição que havia contra mim.
4. Aqui me ensinou o Senhor, o grandíssimo bem que é passar trabalhos e perseguições por Ele. Foi
tanto o acréscimo de amor de Deus e outras muitas coisas que vi em minha alma, que eu me
espantava. Isto faz-me não poder deixar de desejar trabalhos. E as outras pessoas pensavam que
estava muito corrida, e, sim que estaria, se o Senhor me não favorecesse em tanto extremo com
mercê tão grande.
Então começaram a ser maiores os ímpetos de amor de Deus de que falei e os arroubamentos,
embora eu calasse e não dissesse a ninguém estes lucros. O santo varão dominicano não deixava de
ter por tão certo como eu, que se havia de fazer mosteiro, e como eu não me queria meter nisso para
não ir contra a obediência do meu confessor, negociava-o ele com a minha companheira e
escreviam para Roma e buscavam meios.
5. Também começou aqui o demônio a procurar que, de boca em boca, se fosse espalhando e
entendendo que eu havia tido alguma revelação neste negócio e vinham, pois, a mim com muito
medo a dizer que andavam os tempos difíceis e podia ser que me levantassem alguma suspeita e
fossem acusar-me aos inquisidores. A mim caiu-me isto em graça e me fez rir, porque, neste caso,
jamais eu temi, que de mim sabia bem, que em coisa de fé ou contra a menor cerimônia da Igreja
que alguém visse que eu ia, por ela ou por qualquer verdade da Sagrada Escritura, eu me ofereceria
a morrer mil mortes. Disse, pois, que disto não temessem; muito mau seria para a minha alma se
nela houvesse coisa que fosse de molde a eu temer a Inquisição. Se pensasse que havia de quê, eu
mesma a iria buscar, mas, se fosse inventado, o Senhor me livraria e ficaria eu com lucro.
E tratei-o com este meu padre dominicano que, como digo, era tão letrado, que eu bem me podia
assegurar com o que ele me dissesse e disse-lhe então todas as visões e modo de oração e as grandes
mercês que me fazia o Senhor, com a maior clareza que pude e eu supliquei-lhe que o visse muito
bem e me dissesse se havia alguma coisa contra a Sagrada Escritura e o que achava de tudo aquilo.
Ele me assegurou muito e, a meu parecer, fiz-lhe também proveito. Embora já fosse muito bom, daí
por diante deu-se muito mais à oração e, para melhor nela se poder exercitar, retirou-se a um
mosteiro da sua Ordem, onde há muita soledade. Aí esteve mais de dois anos. Tirou-o de lá a
obediência, o que sentiu muito, porque dele tiveram necessidade, por ser a pessoa que era.
6. Eu, em parte, senti também muito quando se foi, pela grande falta que me fazia, - conquanto não
o estorvasse -. Mas compreendi o proveito que daí lhe advinha; porque, estando com grande pena da
sua ida, o Senhor me disse que me consolasse e não a tivesse, pois que ia bem guiado. Veio de lá
tão aproveitada a sua alma e ia tão adiante nas vias de espírito, que então me disse que, por
nenhuma coisa, quisera ter deixado de lá ter estado. E eu bem podia dizer o mesmo; porque, se
antes me assegurava e consolava só com suas letras, agora já o fazia também com experiência de
espírito, que tinha muita, de coisas sobrenaturais. E trouxe-o Deus quando Sua Majestade viu que
havia de ser necessário para ajudar a Sua obra, a deste mosteiro, que Sua Majestade queria que se
fizesse.
7. Estive, pois, neste silêncio, não me metendo nem falando neste negócio, cinco ou seis meses, e
nunca o Senhor mo mandou. Eu não entendi qual era a causa, mas não se me podia tirar do
pensamento que se havia de fazer.
Ao fim deste tempo, tendo-se ido daqui o Reitor da Companhia de Jesus, trouxe Sua Majestade
outro muito espiritual e de grande ânimo, entendimento e boas letras, ao tempo em que eu estava
com grande necessidade; porque, como o que me confessava tinha Superior e eles têm em extremo
esta virtude de não se moverem senão conforme à vontade de seu Maior, embora ele entendesse
bem o meu espírito e tivesse desejo de que eu fosse muito adiante, não ousava determinar-se em
algumas coisas, por várias causas que para isso tinha. E já o meu espírito ia com ímpetos tão
grandes, que eu sentia muito tê-lo atado e, contudo, não saía do que ele me mandava.
8. Estando um dia com grande aflição por me parecer que o confessor não me acreditava, disse-me
o Senhor que não me afligisse, que depressa se acabaria aquela pena. Alegrei-me muito pensando
que havia de morrer em breve e sentia muito contentamento quando disso me lembrava. Depois vi
claramente que era a vinda deste Reitor que digo; porque nunca mais se me ofereceu motivo para
aquela pena. É que o Reitor que veio não ia à mão ao Ministro que era meu confessor, antes lhe
dizia que me consolasse e que não havia de que temer. Que não me levasse por caminho tão
apertado e deixasse obrar o Espírito do Senhor. Às vezes dir-se-ia que, com estes grandes ímpetos
de espírito, ficava a alma como sem poder respirar.
9. Foi-me ver este Reitor e mandou-me o confessor que falasse com ele com toda a liberdade e
clareza. Costumava eu sentir grandíssima contradição em dizer estas coisas. E é assim que, entrando
no confessionário, senti em meu espírito um não sei quê que nem antes nem depois me recordo tê-lo
sentido com mais ninguém, nem eu saberei dizer como foi, nem por comparação o poderia. Porque
foi um gozo espiritual e um entender a minha alma que aquela alma a havia de entender e que se
afazia com ela, embora - como digo - não entendo como foi. Porque, se eu lhe tivesse falado ou dele
me tivessem dado muitas informações, não era muito dar-me gozo o perceber que me havia de
entender; mas nenhuma palavra, nem ele a mim nem eu a ele, havíamos dito, nem era pessoa de
quem eu antes tivesse tido alguma notícia.
Depois vi bem que não se enganara meu espírito, pois de todos os modos e maneiras tem sido de
grande proveito para mim e para minha alma tratar com ele. O seu trato é muito para pessoas que o
Senhor parece ter já muito adiante, porquanto ele as faz correr e não ir passo a passo; o seu modo de
as levar é desapegá-las de tudo e mortificá-las. Para isto lhe deu o Senhor grandíssimo talento,
como também em outras muitas coisas.
10. Quando comecei a tratar com ele, logo entendi seu estilo e vi ser uma alma pura, santa e com
dom particular do Senhor para conhecer espíritos. Consolei-me muito. Havia ainda pouco que o
tratava quando o Senhor voltou a apertar comigo para que tornasse a cuidar do negócio do mosteiro
e que dissesse a meu confessor e a este Reitor muitas razões e coisas para que não mo estorvassem.
Algumas os faziam temer, ainda que este padre Reitor nunca duvidasse de que fosse espírito de
Deus; porque com muito estudo a cuidado olhava a todos os efeitos. Enfim, por muitos motivos,
não ousaram atrever-se a impedir-me-lo.
11. Tornou meu confessor a dar-me licença para eu me pôr a isso, tanto quanto pudesse. Eu bem via
o trabalho em que me metia, por estar muito só e ter pouquíssimas possibilidades. Assentamos em
que se tratasse de tudo com todo o segredo, e assim procurei que uma irmã minha que vivia fora
daqui, comprasse e arranjasse a casa como se fosse para si, com dinheiros que o Senhor deu, por
diversas vias, para a comprar. Seria longo contar como o Senhor foi provendo a tudo. Andava eu
com grande cuidado de não fazer coisa alguma contra a obediência; mas bem sabia que, se o
dissesse a meus prelados, estava tudo perdido, como da vez passada , e ainda seria pior.
Em conseguir o dinheiro, em procurar as coisas, em consertá-las e fazê-las aviar, passei grandes
trabalhos e alguns bem a sós. A minha companheira fazia o que podia, mas podia bem pouco e tão
pouco que era quase nada, a não ser o fazer-se tudo em seu nome e com seu favor. Todo o mais
trabalho era meu e de tantas maneiras, que agora me espanto como o pude agüentar. Algumas
vezes, aflita, dizia: "Senhor meu, como mandais coisas que parecem impossíveis? Embora fora
mulher, se tivesse liberdade!... Mas atada por tantos lados, sem dinheiro nem ter donde vir, nem
para o Breve, nem para nada, que posso eu fazer, Senhor?".
12. Uma vez, estando numa necessidade, sem mesmo saber que fazer de mim nem com que pagar
aos oficiais, apareceu-me S. José, meu verdadeiro pai e senhor, e deu-me a entender que os
ajustasse, pois não me faltaria, e assim o fiz sem ter um real e o Senhor me proveu de tudo, por
modos que espantavam os que o souberam.
Fazia-se-me a casa muito pequena, e era-o tanto, que não parecia levar caminho de ir a ser mosteiro.
Queria, pois, comprar outra, a qual estava junto dela, também muito pequena, para fazer a igreja.
Mas nem tinha com quê, nem havia modo de se poder comprar, nem sabia que fazer. Acabando um
dia de comungar, disse-me o Senhor: já te disse que entres como puderes. E a modo de exclamação,
acrescentou: Oh! cobiça do gênero humano, que até terra pensas que te há de faltar! Quantas vezes
dormi Eu ao relento por não ter onde me recolher!
Eu fiquei muito espantada e vi que o Senhor tinha razão. Vou à casita, tracei-a e achei-a embora
bem pequeno, um mosteiro perfeito. Não curei de comprar mais espaço, senão procurei que nela se
dispusesse tudo de maneira que se pudesse viver; tudo tosco e sem arte, tão semente para que não
fosse nocivo à saúde, e assim se há de fazer sempre.
13. No dia de Santa Clara, indo eu a comungar, ela apareceu-me com muita formosura. Disse-me
que me esforçasse e fosse avante no começado, que me ajudaria. Fiquei-lhe com grande devoção e
tem saído tão verdadeira a sua promessa que um mosteiro de freiras da sua Ordem, que está perto
deste, nos ajuda a sustentar. E o que é mais ainda: pouco a pouco, ela trouxe este meu desejo a tanta
perfeição, que a pobreza que a bem-aventurada Santa tinha em sua casa, se observa nesta e vivemos
de esmola. O que não metem custado pouco trabalho, a fim de que isto fique assente com toda a
firmeza e autoridade do Santo Padre, para que se não. possa fazer outra coisa, nem jamais haja
renda. E mais faz ainda o Senhor, e deve porventura ser pelos rogos desta bendita Santa, que, sem
diligências nossas, nos provê Sua Majestade muito perfeitamente do necessário. Seja bendito por
tudo. Amém.
14. Estando eu por estes mesmos dias, o de Nossa Senhora da Assunção, num mosteiro da Ordem
do glorioso São Domingos, considerando os muitos pecados que noutro tempo eu havia confessado
naquela casa, e em outras coisas da minha ruim vida, veio-me um arroubamento tão grande, que
quase me tirou de mim. Sentei-me e até me parece que não pude ver a Elevação, nem ouvir Missa,
que depois fiquei com escrúpulo disto. Parecia-me, estando assim, que me via vestir uma roupa de
muita brancura e claridade. A princípio não via quem ma vestia; depois vi a Nossa Senhora a meu
lado direito e a meu Pai S. José à esquerda, que me vestiam aquela roupa. Deu-se-me a entender que
já estava limpa de meus pecados. Acabada de vestir e eu com grandíssimo deleite e glória, logo me
pareceu Nossa Senhora pegar-me nas mãos. Disse-me que Lhe dava muito gosto sendo devota do
glorioso S. José; que tivesse por certo que, o que eu pretendia do mosteiro, se havia de fazer e nele
se serviria muito o Senhor e a eles ambos; que não temesse que nisto houvesse jamais quebra,
embora a obediência que dava não fosse a meu gosto, porque Eles nos guardariam e já Seu Filho
nos tinha prometido andar conosco. Para sinal de que isto se cumpriria dava-me aquela jóia.
Pareceu-me então que me tinha deitado ao pescoço um colar de ouro muito formoso e preso a ele
uma cruz de muito valor. Este ouro e pedras são tão diferentes das de cá, que não têm comparação.
Sua formosura excede a tudo o que podemos aqui imaginar, pois o entendimento não alcança
compreender de que era a roupa, nem como imaginar a alvura que o Senhor quer que se nos
represente. Tudo parece aqui como um debuxo a carvão, a modo de dizer.
15. Era grandíssima a formosura que vi em Nossa Senhora, ainda que não pude divisar nenhuma
feição particular, mas vi em conjunto a feitura do rosto. Vestia de branco, num grandíssimo
resplendor, não que deslumbra, mas suave. Ao glorioso S. José não vi tão claramente, embora bem
visse que estava ali, como nas visões que tenho dito que se não vêem. Parecia-me Nossa Senhora
muito jovem.
Estando assim um pouco comigo e eu com tão grandíssima glória e gozo, que segundo me parece,
maior jamais havia tido e nunca quisera apartar-me dele, pareceu-me que os vi subir ao Céu
acompanhados por uma grande multidão de anjos. Fiquei em muita soledade, embora tão consolada,
enlevada, recolhida em oração e enternecida, que estive algum tempo sem me poder mover, nem
falar, mas como quase fora de mim. Fiquei com veemente anseio de me desfazer por Deus e com
tais efeitos - de tal modo tudo se passou - que nunca pude duvidar, ainda que muito quisesse, não
ser coisa de Deus. Deixou-me consoladíssima e com muita paz.
16. No que disse á Rainha dos Anjos da obediência, é que se me tornava duro a mim não a prestar
aos da Ordem. Havia-me dito o Senhor que não convinha fazê-lo. Deu-me os motivos pelos quais,
de nenhuma maneira, convinha que o fizesse, mas que recorresse a Roma por certa via que também
me indicou, que Ele faria com que viesse por ali a licença. E assim foi, que se enviou por onde o
Senhor me disse - pois nunca acabávamos de o conseguir - e veio muito bem. Para as coisas que
depois sucederam, conveio muito que se prestasse a obediência ao Bispo, mas então não o conhecia
eu, nem ainda sabia que prelado seria. Quis o Senhor que fosse tão bom e favorecesse tanto esta
casa, como era necessário pára a grande contradição que tem havido acerca dela - como depois direi
- e para. a levar ao estado em que está. Bendito seja Ele que assim tem feito tudo. Amém.
CAPÍTULO 34. Trata como neste tempo foi conveniente que se ausentasse deste lugar. Diz a causa
por que o seu prelado a mandou ir consolar uma senhora, muito principal, que estava muito aflita.
Trata do que ali lhe sucedeu e diz a grande mercê que o Senhor lhe fez de, por seu intermédio,
mover a uma pessoa para O servir muito, deveras, em quem ela encontrou depois favor e amparo.
É muito para notar.
1. Pois, por mais cuidado que eu tivesse para que nada disto se percebesse, não se podia fazer toda
esta obra tão em segredo, que não se viesse a saber por algumas pessoas. Umas acreditavam e
outras não. Eu temia muito que, em vindo o Provincial, se lhe dissessem alguma coisa, ele me
mandasse não cuidar disso e então logo tudo estava terminado.
Remediou-o o Senhor desta maneira: aconteceu, que; num lugar grande, a mais de vinte léguas
deste, estava uma senhora muito aflita por lhe ter morrido o marido; estava-o em tanto extremo que
se temia pela sua saúde. Teve ela notícia desta pobre pecadora, e assim permitiu o Senhor que lhe
dissessem bem de mim, para outros bens que daqui sucederam. Incutiu-lhe o Senhor um mui grande
desejo de me ver, parecendo-lhe que se consolaria comigo. Esta senhora conhecia muito o
Provincial e, como era pessoa principal e soube que eu estava num mosteiro em que se saía,
procurou logo por, todas as vias que pode, e não o fazer não devia estar em sua mão, levar-me para
sua casa, mandando um pedido ao Provincial que estava bem longe. Este mandou-me uma ordem,
com preceito de obediência para que fosse imediatamente com outra companheira. Soube isto na
noite de Natal.
2. Causou-me certo alvoroço e muita pena ver que, por pensarem que havia em mim algum bem,
queriam que eu fosse, pois, como eu me via tão ruim, não podia sofrer isto. Encomendando-me
muito a Deus, estive as Matinas todas, ou grande parte delas, em grande arroubamento. Disse-me o
Senhor que não deixasse de ir e que não ouvisse pareceres, porque poucos me aconselhariam sem
temeridade; pois, embora encontrasse trabalhos, servir-se-ia muito a Deus e que, para este negócio
do mosteiro, convinha ausentar-me até chegar o Breve; porque o demônio tinha armado uma grande
trama, em vindo o Provincial; mas nada temesse, que Ele lá me ajudaria.
Fiquei muito animada e consolada. Disse tudo isto ao Reitor e ele aconselhou-me a que, de nenhum
modo, deixasse de ir, porque outros me diziam que isso não se podia admitir, que era invenção do
demônio para que lá me adviesse algum mal: que voltasse a enviar recado ao Provincial.
3. Obedeci ao Reitor e, pelo que tinha entendido na oração, ia sem medo, embora não sem
grandíssima confusão de ver a que título me levavam, e como se enganavam tanto. Isto me fazia
importunar mais o Senhor para que não me desamparasse. Consolava-me muito saber que havia
casa da Companhia de Jesus no lugar para onde ia, e poder estar sujeita ao que me mandassem,
como estava aqui; pois parecia-me que, com isso, estaria com alguma segurança.
Foi o Senhor servido de que aquela senhora se consolasse tanto com a minha ida, que começou logo
a ter conhecida melhoria e cada dia se achava mais consolada. Teve-se isto em muito porque, como
disse, a dor trazia-a em grande angústia; e deve-o ter feito o Senhor pelas muitas orações que faziam
por mim as pessoas boas que eu conhecia, para que fosse bem sucedida. Era muito temente a Deus e
tão boa, que a sua muita cristandade supriu o que a mim me faltava. Tomou-me grande amor; eu lho
tinha muito por ver sua bondade. Mas quase tudo me era cruz; porque os regalos me davam grande
tormento e o fazer-se tanto caso de mim, trazia-me em grande temor. Andava a minha alma tão
encolhida que não me ousava descuidar, nem se descuidava o Senhor. Porque, enquanto ali estive,
me fez o Senhor grandes mercês, e estas davam-me tanta liberdade e tanto me faziam menosprezar
tudo o que via - e quanto mais eram, mais - que eu não deixava de tratar com aquelas tão senhoras,
que muito à minha honra poderia eu servi-Ias com a liberdade como se fora sua igual.
4. Tirei daqui um proveito muito grande e dizia-lho. Vi que era mulher e tão sujeita a paixões e
fraquezas como eu. Vi o pouco em que se há de ter o senhorio e como, quanto maior é, mais
cuidados e trabalhos têm e um cuidado de ter a compostura conforme a seu estado, que nem as
deixa viver. O comer é fora de horas e sem acerto, porque tudo há de andar conforme à dignidade e
não à compleição: muitas vezes hão de comer os manjares mais conformes à sua posição e não a seu
gosto.
É assim que de todo aborreci o desejar ser senhora - Deus me livre de má compostura! Embora esta,
com ser das principais do reino, creio que haverá poucas mais humildes e é muito afável e simples.
Fazia-me pena e a tenho de ver como anda muitas vezes não conforme à sua inclinação, para
cumprir com o que exige a sua posição. Pois quanto aos criados é pouco o pouco que deles há que
fiar, embora ela os tivesse bons. Não se há de falar mais com um que com outro, sob pena de ficar
malquisto aquele que assim se favorece.
É uma sujeição e, chamar senhores a pessoas semelhantes, é uma das mentiras que o mundo diz,
pois não me parece senão que são escravos de mil coisas.
5. Foi o Senhor servido que, durante o tempo que estive naquela casa, todas as pessoas
melhorassem no servir a Sua Majestade, ainda que não estive livre de trabalhos e de invejas que
algumas sentiam pelo muito amor que aquela senhora me tinha. Deviam porventura pensar que
pretendia algum interesse. E o Senhor devia permitir que coisas semelhantes, e outras doutro teor,
me dessem algum trabalho, para que não me embebesse no regalo que havia por outra parte, e de
tudo Ele foi servido tirar-me com melhoria da minha alma.
6. Estando eu ali, acertou de vir um religioso, pessoa muito principal e com quem eu, havia já
muitos anos, tinha tratado algumas vezes. Estando à Missa, num mosteiro da sua Ordem, ali perto
onde eu estava, deu-me desejo de saber em que disposição estava aquela alma que eu desejava fosse
muito servo de Deus e levantei-me para lhe ir falar. Mas, como já me encontrava recolhida em
oração, pareceu-me depois que era perder tempo, pois quem me metia a mim naquilo e tornei-me a
sentar. Parece-me que foram três, três vezes que isto me aconteceu e, enfim, pôde mais o anjo bom
de que o mau, e fui chamá-lo e veio-me falar num confessionário.
Comecei a perguntar-lhe - e ele a mim - pelas nossas vidas, porque havia muitos anos que não nos
tínhamos visto. Comecei-lhe a dizer que a minha tinha sido de muitos trabalhos de alma. Instou
muito para que eu lhe dissesse que trabalhos eram esses. Disse-lhe que não eram para se saber, nem
para que eu lhos dissesse. Ele disse que, pois o sabia o padre dominicano - de quem tenho falado -
que era muito seu amigo, ele lhos diria depois, que assim nada se me desse de lhos dizer.
7. O caso é que não esteve na sua mão deixar de me importunar, nem na minha, me parece, deixar
de lho dizer; porque, não obstante o pesar e vergonha que costumava ter quando tratava estas coisas,
com ele e com o Reitor que tenho dito, não tive nenhuma pena, antes me consolei muito. Disse-lho
debaixo de confissão.
Pareceu-me mais avisado do que nunca, embora sempre o tive por ser de grande entendimento. Vi
os grandes talentos e qualidades que tinha para dar muito proveito; se de todo se desse a Deus. É
que eu tenho isto de uns anos para cá: não vejo pessoa que muito me contente, que não queira logo
vê-la de todo dar-se a Deus. E isto com umas ânsias que, algumas vezes, não me posso conter. Pois,
embora deseje que todos O sirvam, com estas pessoas que me satisfazem, é com muito grande
ímpeto, e assim importuno muito ao Senhor por elas. Com o religioso que digo, aconteceu-me
assim.
8. Rogou-me que o encomendasse muito a Deus, e não era preciso pedir-mo que já estava de modo
que não poderia fazer outra coisa. Vou-me para onde a sós costumava ter oração e começo a tratar
com o Senhor, estando muito recolhida, num estilo lhano, como muitas vezes Lhe falo, sem saber o
que digo. Então é o amor que fala e a alma está tão alheada que não olho à diferença que há dela
para Deus., Porque o amor que ela conhece que Sua Majestade lhe tem, faz com que se esqueça de
si e parece-lhe que está n'Ele, que é como coisa própria, sem divisão, e diz desatinos. Recordo-me
que, depois de Lhe pedir, com muitas lágrimas, que pusesse aquela alma a Seu serviço muito
deveras que, embora eu o tivesse por bom, não me contentava; queria-o muito melhor, disse-Lhe:
"Senhor, não me haveis de negar esta mercê; vede que é bom este sujeito para nosso amigo".
9. Oh! bondade e humanidade grande de Deus, que não olha às palavras senão aos desejos e amor
com que se dizem! Como sofre que uma como eu fale a Sua Majestade tão atrevidamente! Seja
bendito para sempre sem fim.
10. Recordo-me que naquela noite, durante aquelas horas de oração, deu-me uma grande aflição ao
pensar se estava na inimizade de Deus. E, como eu não podia saber se estava ou não em graça,
afligia-me esta pena. Não que eu o desejasse saber, mas sim desejava morrer, para não me verem
vida onde não tinha segurança de não estar morta. É que não podia haver para mim morte mais dura
do que pensar que tinha ofendido a Deus e suplicava-Lhe que não o permitisse, toda em gozo e
derretida em lágrimas. Então entendi que bem me podia consolar e ficar certa de que estava em
graça, porque semelhante amor de Deus e o fazer-me Sua Majestade aquelas mercês e os
sentimentos que dava à alma, não eram compatíveis com serem feitas a alma que estivesse em
pecado mortal.
Fiquei confiada de que o Senhor havia de fazer, desta pessoa, o que Lhe suplicava. Mandou-me que
Lhe dissesse umas palavras. Isto senti em muito porque não sabia como lhas dizer. Ter de dar
recado a terceira pessoa - como já disse - é sempre o que mais me custa, em especial sem saber
como essa pessoa o aceitaria ou até se zombaria de mim. Fiquei numa grande angústia. Enfim,
senti-me tão persuadida a fazê-lo que, segundo me parece, prometi a Deus não deixar de as dizer, e
pela grande vergonha que tinha, escrevi-as e dei-lhas.
11. Bem me pareceu sei coisa de Deus pelo efeito que fizeram. Determinou-se muito deveras a darse
à oração, embora não o fizesse desde logo. O Senhor, como o queria para Si, por meu intermédio,
lhe mandava dizer umas verdades que, sem eu o entender, vinham tão a propósito que ele se
espantava, e o Senhor dévia-o dispor a crer que eram de Sua Majestade. Eu, ainda que miserável,
era muito o que suplicava ao Senhor, que de todo em todo o atraísse a Si e lhe fizesse aborrecer as
satisfações e coisas da vida. E assim - seja Ele louvado para sempre! - o fez tão deveras que, de
cada vez que me fala, metem como embevecida. Se eu não o tivesse visto, tivera por duvidoso
fazer-lhe Deus em tão breve tempo tão crescidas mercês e trazê-lo tão ocupado em Si, que parece já
não viver para coisa da terra.
Sua Majestade o tenha de Sua mão, que, se assim for adiante (o que espero no Senhor, por ir muito
bem fundado no conhecer-se a si mesmo), será um dos Seus mais assinalados servos e de grande
proveito para muitas almas. Porque, em coisas de espírito, em pouco tempo adquiriu muita
experiência, e isto são dons que Deus dá quando quer e como o quer, e não está atido ao tempo nem
aos serviços. Não digo que isto não faça muito ao caso, mas que muitas vezes o Senhor não dá em
vinte anos a contemplação que a outros dá num. Sua Majestade sabe a causa.
E o engano está em nos parecer que, pelos anos, havemos de entender o que de nenhum modo se
pode alcançar sem experiência. Assim erram muitos - como tenho dito -, em querer conhecer
espíritos, sem o terem.
Não digo que quem não tiver espírito, se é letrado, não governe a quem o tem, mas entende-se
quanto ao exterior e interior que vá conforme a via natural, por obra do entendimento; e no
sobrenatural, olhe a que vá conforme à Sagrada Escritura. No demais não se mate, nem pense
entender o que não entende, nem afogue os espíritos pois, quanto a isso, já outro maior Senhor os
governa, que não estão sem superior.
12. Não se espante nem lhe pareçam coisas impossíveis - tudo é possível ao Senhor -, mas procure
esforçar a fé e humilhar-se porque, nesta ciência, o Senhor faz porventura mais sábia a uma
velhazita do que a ele, embora seja muito letrado. E com esta humildade aproveitará mais às almas
e a si, do que em se fazer contemplativo sem o ser. Porque torno a dizer que, se não tem muita
experiência e se não tem muita humildade para reconhecer que não o entende, mas que, no entanto,
não é coisa impossível, ganhará pouco e dará ainda menos a ganhar a quem dirige. Não haja porém
medo: se tem humildade, o Senhor permitirá que não se engane nem um nem outro.
13. Pois este Padre que digo, como o Senhor lhe deu experiência em muitas coisas, tem procurado
estudar tudo o que por estudo tem podido saber neste caso, pois é bem letrado. E, o que não entende
por experiência, informa-se de quem a tem e, por isso, ajuda-o o Senhor com dar-lhe muita fé e
assim tem ele aproveitado muito e feito aproveitar algumas almas e a minha é uma delas. Como o
Senhor sabia os trabalhos em que me havia de ver - pois ia levar consigo a alguns que me
governavam - parece que Sua Majestade proveu a que ficassem outros que me têm ajudado em
trabalhos e feito grande bem. Tem-no mudado o Senhor quase de todo, de maneira que ele quase
não se conhece, por assim dizer, e dado forças corporais para a penitência (que antes não tinha, por
ser enfermo). Tornou-se animoso para tudo o que é bom e outras coisas, que bem parece ser muito
particular chamamento do Senhor. Seja bendito para sempre.
14. Creio que todo o bem lhe vem das mercês que o Senhor lhe tem feito na oração, pois que não
são postiças. Já nalgumas coisas quis o Senhor que se tenha exercitado, e sai-se delas como quem
tem já conhecida a verdade do mérito que se ganha em sofrer perseguições. Espero na grandeza do
Senhor que por meio dele há de vir muito bem a alguns da sua Ordem e a ela mesma. Já isto se
começa a entender. Tenho tido grandes visões, nas quais o Senhor me disse algumas coisas de
grande admiração a seu respeito e do Reitor da Companhia de Jesus, de quem tenho falado, e de
outros dois religiosos da Ordem de S. Domingos, em especial dum. Pelo seu aproveitamento -
provado por obra - também já o Senhor tem dado. a entender algumas dessas coisas que antes eu
tinha sabido por Ele. De quem agora falo, tem sido muitas vezes.
15. Uma coisa quero dizer agora aqui. Estava eu uma vez no locutório com ele, e era tanto o amor
que a minha alma e espírito entendia que ardia no dele, que me tinha quase absorta, porque
considerava as grandezas de Deus, em quão pouco tempo subira uma alma a tão alto estado. Faziame
grande confusão, porque via-o, com tanta humildade, escutar o que eu dizia em algumas coisas
de oração, e que pouca eu tinha em tratar assim com pessoa semelhante. Mas isto o Senhor mo
devia sofrer pelo grande desejo que eu tinha de o ver muito adiantado. Fazia-me tanto proveito estar
com ele que parece que deixava em minha alma ateada um novo fogo para desejar principiar de
novo a servir ao Senhor.
Ó Jesus meu! O que faz uma alma abrasada no Vosso amor! Quanto a deveríamos estimar e suplicar
ao Senhor a deixasse nesta vida! Quem tem o mesmo amor, atrás destas almas haveria de andar, se
pudesse.
16. Grande coisa é um enfermo achar outro ferido do mesmo mal; muito se consola de ver que não
está só; muito se ajudam a padecer e até a merecer; fazem-se costas e firme apoio se oferecem, já
como gente determinada a arriscar mil vidas por Deus e desejam que se lhes ofereça ensejo de as
perder. São como soldados que, para ganhar o despojo e fazer-se com ele ricos, desejam que haja
guerra; tendo compreendido que não o podem ser senão por aqui, este é o seu ofício: trabalhar. Oh!
grande coisa é quando o Senhor dá esta luz de entender o muito que se ganha em padecer por Ele!
Não se compreende este bem, enquanto não se deixa tudo, pois quem se atém a alguma coisa, sinal
é que a tem em conta. E se a tem em conta, forçosamente lhe há de pesar de a deixar e já vai tudo
imperfeito e perdido. Vem aqui bem a propósito dizer: perdido está quem atrás de perdido anda. E
que maior perdição e que maior cegueira; que maior desventura, que ter em muito o que não é
nada?
17. Pois, voltando ao que dizia, estando eu em grandíssimo gozo considerando aquela alma, na qual
me parece queria o Senhor que eu visse claramente os tesouros que nela tinha depositado, e vendo a
mercê que me fizera de que fosse por meu intermédio - achando-me indigna disso -, em muito mais
estima tinha eu as mercês que o Senhor lhe fizera e mais as tomava à minha conta do que se fossem
feitas a mim, e louvava muito ao Senhor por ver que Sua Majestade ia cumprindo meus desejos e
tinha ouvido a minha oração, que era que o Senhor despertasse pessoas semelhantes.
Estando já minha alma que não podia sofrerem si tanto gozo, saiu de si e perdeu-se para mais
ganhar. Perdeu as considerações, e deixou de ouvir aquela língua divina, pela qual parece que falava
o Espírito Santo, e deu-me um grande arroubamento que me fez quase perder os sentidos, embora
durasse pouco tempo. Vi Cristo, com grandíssima majestade e glória, mostrando grande prazer do
que ali se passava e assim me disse e quis que eu visse claramente que, em semelhantes práticas,
sempre se achava presente e o muito que se serve em que assim se deleitem em falar d'Ele.
Outra vez, estando longe deste lugar, vi os anjos levantarem esse padre com muita glória. Entendi,
por esta visão, que ia muito adiante a sua alma. E assim era, pois lhe haviam levantado um falso
testemunho bem contra a sua honra, pessoa a quem ele tinha feito muito bem e remediado a honra e
a alma. Ele o sofreu com muita alegria e fez outras obras em serviço de Deus e padeceu outras
perseguições.
18. Não me parece que convenha agora declarar mais coisas. Se depois parecer a V Mercê, pois que
as sabe, poder-se-ão escrever para glória do Senhor. De todas as que tenho dito de profecias que o
Senhor me dizia desta casa, e de outras que ainda direi e de mais coisas, todas se têm cumprido;
algumas, três anos antes que se dessem e outras em mais e outras em menos tempo. E sempre eu as
dizia ao confessor e a esta minha amiga viúva com quem tinha licença de falar, como já disse.
Tenho sabido que ela as dizia a outras pessoas e estas sabem que não minto, nem Deus permita que,
em nenhuma coisa, quanto mais sendo tão graves, eu use senão de toda a verdade.
19. Tendo morrido um cunhado meu subitamente e estando eu com muita pena por não se ter
chegado a confessar, foi-me dito na oração que assim também havia de morrer a minha irmã, que
fosse lá e fizesse com que se dispusesse para isso. Disse-o ao meu confessor e, como não me
deixava ir, foi-me repetido mais vezes. Ele, como visse isto, disse-me que fosse, pois nada se
perderia.
Ela vivia numa aldeia e, como fui sem lhe dizer nada disto, fiz por lhe ir dando a luz que pude em
todas as coisas e com que se confessasse muito amiúde e em tudo tivesse conta na sua alma. Era
muito boa e assim fez. Desde há quatro ou cinco anos que tinha este costume e muito boa conta com
a sua consciência.: Morreu sem ninguém a ver e sem se poder confessar. Bem foi que, como
costumava, havia pouco mais de oito dias que se tinha confessado.
A mim deu-me grande alegria quando soube da sua morte. Esteve muito pouco no Purgatório. Não
me parece que haveria oito dias, quando, acabando de comungar, me apareceu o Senhor e quis que
visse como a levava ao Céu. Em todos estes anos, desde que isto me foi dito até que morreu, não se
me olvidava o que se me tinha dado a entender, nem à minha companheira que, logo que a minha
irmã morreu, veio ter comigo muito espantada por ver, como se tinha cumprido.
Seja Deus louvado para sempre, que tanto cuidado tem das almas para que se não percam.
CAPÍTULO 35. Prossegue na mesma matéria da fundação deste mosteiro do glorioso S. José e
como ordenou o Senhor que se viesse a guardar nele a santa pobreza. Diz por que voltou de casa
daquela senhora em que estava e algumas outras coisas que lhe sucederam.
1. Estando eu, pois, com esta senhora que tenho dito, onde estive mais de meio ano, ordenou o
Senhor que tivesse notícia de mim uma beata da nossa Ordem, que vivia a mais de setenta léguas
daqui deste lugar, e calhou ela ter de vir para estes lados e rodeou algumas léguas para me falar.
Tinha-lhe o Senhor inspirado, no mesmo ano e mês que a mim, que fizesse outro convento desta
Ordem; e como lhe deu este desejo, vendeu tudo o que tinha e foi-se até Roma a buscar despacho
para isso, a pé e descalça.
2. É mulher de muita penitência e oração e fazia-lhe o Senhor muitas mercês e apareceu-lhe Nossa
Senhora mandando-lhe que o fizesse. Levava-me tantas vantagens no servir a Deus, que eu tinha
vergonha de estar diante dela. Mostrou-me os despachos que trazia de Roma e, nos quinze dias que
esteve comigo, assentamos em como havíamos de fazer estes mosteiros. Até que lhe falei, não tinha
vindo a mim notícia de que a nossa Regra - antes da sua mitigação -mandava que se não tivesse
nada de próprio, nem eu estava em fundá-lo sem renda. O meu intento era que não tivéssemos
cuidado daquilo de que precisássemos para viver e não olhava aos muitos cuidados que traz consigo
o ter coisa própria.
Esta bendita mulher, como a ensinava o Senhor, tinha bem entendido, apesar de não saber ler, o que
eu, com tanto ter andado a ler as Constituições, ignorava. Logo que tal me disse pareceu-me bem,
embora temesse que não mo haviam de consentir, mas sim dizer que eram desatinos e que não
fizesse coisas em que padecessem outras por minha causa. A ser eu só, nem pouco nem muito me
detivera, antes me era grande consolo pensar em guardar os conselhos de Cristo Senhor Nosso,
porque grandes desejos de pobreza já mos havia dado Sua Majestade.
Assim, para mim, não duvidava de ser aquilo o melhor. Dias havia em que eu desejava que fosse
possível, ao meu estado, andar pedindo por amor de Deus e não ter casa, nem outra qualquer coisa.
Temia, porém, que as demais, se o Senhor não lhes desse estes desejos, vivessem descontentes, e
fosse também causa de alguma distração, porque via alguns mosteiros, pobres, não muito
recolhidos. Não olhava a que, o não serem recolhidos era causa de serem pobres, e não a pobreza
causa de distração, porque esta não faz a ninguém mais rico, nem falta Deus jamais a quem O serve.
Enfim, a minha fé era fraca, o que não acontecia a esta serva de Deus.
3. Como eu em tudo tomava tantos pareceres, quase a ninguém encontrei deste parecer: nem o
confessor, nem os letrados com quem tratava. Davam tantas razões que não sabia que fazer, porque,
como eu já sabia a Regra e via ser mais perfeito, não podia resolver-me a ter renda. E se bem que
algumas vezes me convenciam, em voltando à oração e olhando a Cristo na cruz, tão pobre e
desnudo, não podia levar com paciência o ser rica.
Suplicava-Lhe com lágrimas o providenciasse de maneira a que eu me visse pobre como Ele.
4. Achava tantos inconvenientes em ter renda e via-a ser causa de tanta inquietação e até distração,
que não fazia senão disputar com os letrados. Escrevi ao religioso dominicano que nos ajudava.
Enviou-me duas folhas escritas a contradizer e cheias de teologia para que não fizesse o convento
sem renda e me dizia que assim o tinha estudado muito. Respondi-lhe que, para não seguir a minha
vocação e o voto que tinha feito de pobreza e os conselhos de Cristo com toda a perfeição, não me
queria aproveitar da teologia, nem com suas letras me fizesse, neste caso, mercê.
Se encontrava alguma pessoa que me ajudasse, alegrava-me muito. Aquela senhora com quem
estava, nisto ajudava-me muito. Alguns, logo a princípio, diziam-me que lhes parecia bem; mas
depois, em olhando mais ao caso, achavam tantos inconvenientes que tornavam a insistir muito em
que não o fizesse. Dizia-lhes que, se eles mudavam tão depressa de parecer, eu me queria ater ao
primeiro.
5. Neste tempo foi o Senhor servido que, a rogos meus, viesse o santo Frei Pedro de Alcântara a
casa desta senhora que ainda não o tinha visto. Como ele era bom amador da pobreza e tantos anos
a havia tido, sabia bem a riqueza que nela havia e assim me ajudou muito e mandou que, de
nenhuma maneira, deixasse de levar o meu intento muito por diante. Com este parecer e ajuda,
como de quem melhor o podia dar, por o saber por larga experiência, determinei-me a já não andar
buscando outros.
6. Estando um dia encomendando muito a Deus este negócio, disse-me o Senhor que, de nenhuma
maneira, deixasse de fazer o convento pobre, que esta era a vontade de Seu Pai e a Sua, que Ele nos
ajudaria. Foi isto num grande arroubamento e com tão grandes efeitos que, de nenhum modo, pude
ter dúvida de que era Deus.
Outra vez disse-me que na renda estava a confusão, e outras coisas em louvor da pobreza,
assegurando-me que, a quem O servia, não lhe faltava o necessário para viver; e esta falta, como
digo, nunca á temi por mim.
Também o Senhor mudou o coração do Presentado, digo, do religioso dominicano, de quem disse
que me escreveu para que não o fizesse sem renda. Já eu estava muito contente por ter entendido
isto e com tais pareceres; não me parecia senão que possuía toda a riqueza do mundo em me
determinando a viver só por amor de Deus.
7. A este tempo, o meu Provincial levantou-me o mandado e obediência que me tinha posto para
estar ali. Deixou à minha vontade que pudesse ir-me embora se eu quisesse, e se quisesse estar,
também podia por mais algum tempo. Ia haver, por então, eleições no meu mosteiro e avisaram-me
que muitas me queriam dar o cargo de prelada. Para mim, de só o pensar, era tão grande tormento
que, com mais facilidade eu me determinava a sofrer por Deus qualquer martírio; a este, de nenhum
modo me podia persuadir. Porque, deixando à parte o trabalho grande que era por serem muitas e
outras coisas de que eu nunca fui amiga, nem de ofício algum, que sempre os havia recusado,
parecia-me de grande perigo para a consciência. E assim louvei a Deus por não me achar lá. Escrevi
às minha amigas para que não me dessem voto.
8. Estando muito contente de não me achar naquele ruído, disse-me o Senhor que, de nenhum
modo, deixasse de ir. Já que desejava cruz, boa me esperava, que não a rejeitasse, que fosse com
ânimo; Ele me ajudaria e que partisse logo. Afligi-me muito e não fazia senão chorar, porque pensei
que cruz seria o ser prelada e, como digo, não podia persuadir-me, de nenhuma maneira, que fosse
um bem para a minha alma, nem via termos para isso.
Contei-o ao meu confessor; mandou-me logo que tratasse de ir, pois era claro ser maior perfeição
mas, porque fazia grande calor, e bastava achar-me lá para as eleições, que me ficasse ainda uns
dias para que me não fizesse mal a jornada. Mas, como o Senhor tinha ordenado outra coisa, teve de
se fazer. Era grande o desassossego que trazia em mim e o não poder ter oração, parecendo-me que
desobedecia ao que o Senhor me tinha ordenado; que por estar ali a meu prazer e com regalo, não
me queria ir oferecer ao trabalho. Tudo não era, pois, mais que palavras para com Deus.
Podendo estar onde era de maior perfeição, porque motivo o havia de deixar? Se morresse, que
morresse! E, com isto, um aperto de alma, um tirar-me o Senhor todo o gosto na oração. Enfim,
estava de tal modo e já me era tormento tão grande, que supliquei àquela senhora que tivesse por
bem deixar-me ir, porque já meu confessor- como me viu assim- me disse que me fosse embora.
Também a ele o movia Deus como a mim.
9. Ela sentia tanto que a deixasse, que era outro tormento, pois tinha-lhe custado muito alcançar
licença do Provincial, com importunações de muitas maneiras. Tive por grandíssimo favor o ela
querer aceitar às boas, pelo muito que o sentia. Mas, como era muito temente a Deus e eu lhe disse
que se Lhe podia prestar grande serviço com a minha ida e outras muitas coisas, e dei-lhe esperança
de que era possível torná-la a ver, ela, embora com muita pena, assim o teve por bem.
10. Já eu não a tinha de me vir embora, porque, entendendo que uma coisa era de maior perfeição e
serviço de Deus, com o gozo que me dá contentá-Lo, passei pela pena de deixar aquela senhora que
tanto eu via sentir a minha partida e a outras pessoas a quem devia muito, em especial a meu
confessor, que era da Companhia de Jesus, e com o qual me achava muito bem. Mas, quanto mais
consolações eu via que perdia pelo Senhor, mais contento me dava de as perder. Não podia entender
como isto era, porque via claramente estes dois contrários: gostar e consolar-me e alegrar-me do
que me pesava na alma. É que eu estava consolada e sossegada e tinha vagar para ter muitas horas
de oração. Vi que me vinha meter num fogo, pois já o Senhor me tinha dito que vinha padecer
grande cruz, embora nunca eu pensei o fosse tanto, como depois experimentei. E, contudo, vinha
alegre e estava impaciente por não entrar logo em batalha, pois o Senhor queria que a tivesse.
Assim Sua Majestade enviava-me o esforço e o incutia na minha fraqueza.
11. Não podia, como digo, entender como isto podia ser. Veio-me ao pensamento esta comparação:
possuindo eu uma jóia ou coisa que me desse grande contento, depara-se-me saber que a deseja uma
pessoa a quem quero mais do que a mim mesma e mais desejo contentá-la do que a minha própria
satisfação. E assim dá-me tão grande prazer o ficar sem a jóia, a fim de contentar aquela pessoa,
como me dava o possuí-la. E, como este prazer de contentá-la excede o meu mesmo prazer, tira-seme
a pena da falta que me faz a jóia ou daquilo que amo e de perder a satisfação que me dava.
Assim aqui: embora quisesse ter pena, por ver que deixava pessoas que tanto sentiam apartar-se de
mim, o que, noutro tempo, me bastara para me afligir muito, por ser eu de minha condição tão
agradecida, agora, ainda que quisesse ter pena, não podia.
12. Importou tanto o não tardar eu nem mais um dia para o que tocava ao negócio desta bendita
casa, que não sei como se poderia concluir se eu então me demorasse. Oh! grandeza de Deus!
Muitas vezes me espanto, quando considero e vejo quão particularmente queria Sua Majestade
ajudar-me para que se efetuasse este cantinho de Deus, pois creio que o é, e morada onde Sua
Majestade se deleita, como uma vez, estando eu em oração, me disse que, esta casa era para Ele
paraíso de deleite. E assim parece Sua Majestade ter escolhido as almas que trouxe para aqui, em
cuja companhia vivo com tanta, tanta confusão. Nem eu as soubera desejar tais para esta vida de
tanta austeridade, pobreza e oração. E levam-na com uma alegria e contento tal, que cada uma se
acha indigna de ter merecido vir para este lugar. Em especial, há algumas que o Senhor chamou de
entre muita vaidade e galas do mundo, onde poderiam estar contentes conforme as suas leis, e temlhes
dado o Senhor aqui tão dobrados gozos, que elas claramente reconhecem ter-lhes dado cem por
um do que deixaram e não se fartam de dar graças a Sua Majestade. A outras, tem Ele mudado de
bem para melhor. Às de pouca idade dá fortaleza e conhecimento para que não possam desejar outra
coisa e entendam que, ainda mesmo cá em baixo, é viver em maior descanso o estarem apartadas de
todas as coisas da vida. Às que são de mais idade e com pouca saúde, dá forças, e lhas tem dado,
para poderem levar a aspereza e penitência como as outras.
13. Oh! Senhor meu, como mostrais que sois poderoso! Não é mister buscar razões para o que Vós
quereis, porque, por sobre toda a razão natural, fazeis as coisas tão possíveis que dais bem a
entender que mais não é preciso, senão amar-Vos deveras e deveras deixar tudo por Vós, para que
Vós, Senhor meu, façais tudo fácil. Aqui bem se pode dizer: «fingis trabalho em vossa lei», porque
eu não o vejo, Senhor, nem sei como «é estreito o caminho que a Vós leva». Caminho real, vejo que
é, e não senda; caminho onde, quem nele entre de verdade, vai mais seguro. Muito longe estão os
recifes e despenhadeiros para cair, porque estão longe das ocasiões. Senda ruim e caminho apertado
chamo eu o que, dum lado tem um vale muito profundo onde se pode cair, e do outro um
despenhadeiro. Ainda mal se descuidam, os que por aí seguem, quando se despenham e fazem em
pedaços.
14. O que Vos ama de verdade, Bem meu, vai seguro por caminho largo e real. Longe está o
despenhadeiro; mal vai o tropeçar e já Vós, Senhor, lhe dais a mão. Não basta uma queda, nem
muitas, para se perder, se Vos tem amor e não às coisas do mundo, pois vai pelo vale da humildade.
Não posso entender o que é que temem de se meterem no caminho da perfeição.
O Senhor nos dê a compreender, por Quem é, como é má a segurança em tão manifestos perigos
como são os de andar arrastado pela corrente do mundo, e como a verdadeira segurança está em
procurar ir muito adiante no caminho de Deus. Olhos fixos n'Ele e não haja medo de que se ponha
este Sol da Justiça, nem que nos deixe caminhar de noite para nos perdermos, se nós primeiro não O
deixamos a Ele.
15. Não temem andar entre leões - e parece cada um querer levar um pedaço -que são as honras e
deleites e coisas semelhantes a que se chama no mundo contentamentos; e aqui parece que o
demônio faz temer musaranhos. Mil vezes me espanto e dez mil quereria fartar-me de chorar e dar
vozes e dizer a todos a minha grande cegueira e maldade, para que aproveitasse um pouco para eles
abrirem os olhos. Abra-nos Aquele que o pode, por Sua bondade, e não permita que se tornem a
cegar os meus. Amém.
CAPÍTULO 36. Prossegue no tema começado e diz como se acabou de concluir e se fundou este
mosteiro de S. José e as grandes contradições e perseguições que houve, depois de tomarem hábito
as religiosas. Conta os grandes trabalhos e tentações que ela passou e como de tudo a tirou o
Senhor com vitória e em glória e louvor Seu.
1. Tendo já partido daquela cidade, vinha eu muito contente pelo caminho, determinando-me a
passar tudo o que o Senhor fosse servido, com toda a minha boa vontade.
Na mesma noite em que cheguei a esta terra, chega o nosso despacho para o mosteiro e Breve de
Roma. Eu me espantei e se espantaram todos os que sabiam a pressa que o Senhor me tinha dado
para a vinda, quando souberam a grande necessidade que havia disso e em que conjuntura o Senhor
me trazia. É que encontrei aqui o Bispo e o santo frei Pedro de Alcântara e o outro cavaleiro muito
servo de Deus, em cuja casa este santo homem fazia pousada, pois era pessoa em quem os servos de
Deus achavam proteção e acolhimento.
2. Os dois levaram a cabo o conseguir que o Bispo aceitasse o mosteiro, o que não foi pouco
trabalho, por ser pobre. Era, porém, tão amigo de pessoas que assim via determinadas a servir ao
Senhor, que logo se afeiçoou a favorecê-lo. O aprová-lo este santo velho e empenhar-se muito com
uns e com outros para que nos ajudassem, foi o que fez tudo ao caso. Se eu não tivesse vindo nesta
conjuntura - como já disse -, não sei com se teria podido fazer. Pois este santo homem esteve aqui
pouco, creio que não foram oito dias, e muito enfermo e daí a pouco o levou o Senhor consigo.
Parece que Sua Majestade o tinha guardado até acabar este negócio, pois já havia muito - não sei se
mais de dois anos - que andava muito doente.
3. Tudo se fez debaixo de grande segredo, porque, a não ser assim, nada se poderia fazer, pois o
povo estava contrário, como depois se viu. Ordenou o Senhor que adoecesse um cunhado meu, sem
cá estar sua mulher e, em tanta necessidade, deram-me licença para o ir tratar. Assim com este
motivo, de nada se desconfiou, embora nalgumas pessoas não se deixasse de suspeitar qualquer
coisa. Contudo não o acreditavam. Foi coisa de espantar, pois meu cunhado não esteve doente além
do tempo necessário para concluir o negócio; e quando foi preciso que tivesse saúde para eu me
desocupar e ele deixar desocupada a casa, logo o Senhor lha tornou a dar, do que ele estava
maravilhado.
4. Passei muito trabalho a instar com uns e com outros que se admitisse a fundação; e com o
enfermo, e com os oficiais para que se acabasse a casa a toda a pressa, e tivesse ar de convento, pois
faltava muito para se acabar. E a minha companheira não estava aqui, pois pareceu-nos que era
melhor ausentar-se para mais dissimular. E eu via que tudo dependia da brevidade, e isto por muitos
motivos: um, era porque temia que a toda a hora me mandassem voltar. Foram tantas as coisas a dar
trabalhos que pensei se seria esta a cruz, conquanto me parecesse que era pouco para a grande cruz
que eu tinha entendido do Senhor que havia de passar.
5. Pois, estando tudo terminado, foi o Senhor servido que, no dia de S. Bartolomeu, tomassem
hábito algumas. Pôs-se o Santíssimo Sacramento, e com toda a autoridade e força ficou fundado o
nosso mosteiro do nosso gloriosíssimo Pai S. José, no ano de mil quinhentos e sessenta e dois.
Estive eu a dar-lhes o hábito e outras duas freiras da nossa mesma casa que acertaram a estar fora
do mosteiro da Encarnação. Como nesta, em que se fez o convento, era onde estava meu cunhado,
que a tinha comprado, como tenho dito, para melhor dissimular o negócio, eu estava ali com
licença. Nem eu fazia coisa sem ser com o parecer de letrados, para não fugir a um só ponto da
obediência. Estes, como viam isto ser por muitos motivos muito proveitoso para toda a Ordem,
embora eu andasse com segredo e acautelando-me para que não o soubessem meus prelados,
diziam-me que o podia fazer. Por muito pouca imperfeição que me dissessem que era, mil mosteiros
me parece que deixaria, quanto mais um. Isto é certo porque, embora desejasse a fundação para
mais me apartar de tudo e guardar minha profissão e chamamento com mais perfeição e clausura, de
tal maneira o desejava, no entanto, que se entendesse que era mais serviço do Senhor deixá-lo de
todo, tê-lo-ia feito - como o fiz da outra vez - com todo o sossego e paz.
6. Foi pois para mim como estar em glória, ver colocar o Santíssimo Sacramento e que se
remediaram quatro órfãs pobres (porque não se recebiam com dote), e grandes servas de Deus.
Logo de princípio foi isto que se pretendeu: que entrassem pessoas que, com seu exemplo, fossem
fundamento em que se pudesse efetuar o intento que levávamos de muita perfeição e oração. Via,
assim, realizada uma obra que eu tinha entendido que era para serviço do Senhor e honra do hábito
de Sua Gloriosa Mãe, que estas eram as minhas ânsias.
E também me deu muito consolo o ter feito o que o Senhor tanto me mandara, e mais outra igreja
neste lugar, dedicada a meu Pai, o glorioso S. José, pois que não havia outra. Não que a mim me
parecesse que nisto tinha feito alguma coisa, que nunca tal me parecia, nem parece. Sempre entendo
que tudo é obra do Senhor; e o que fazia da minha parte, ia com tantas imperfeições, que antes vejo
haver de que me culpar e não de que me agradecer. Contudo, era-me grande gozo ver que Sua
Majestade se servira de mim, como instrumento duma tão grande obra sendo eu tão ruim.
Estive assim com tão grande contentamento, que estava como fora de mim, em elevada oração.
7. Acabado tudo, seria depois de umas três ou quatro horas, suscitou em mim o demônio uma
batalha espiritual, como agora direi. Pôs-se-me diante se teria sido mal feito o que fora feito; se ia
contra a obediência em o ter procurado fazer sem que mo mandasse o Provincial, (que bem me
parecia a mim que lhe havia de dar algum desgosto por causa de sujeitar a casa ao Ordinário sem
lho dizer primeiro; ainda que, por outra parte, também me parecesse que a ele nada se lhe daria,
visto não ter querido admitir a fundação e eu, quanto a mim, não mudava a obediência). E pensava
ainda se ficariam contentes as que estavam aqui em tanta austeridade, se lhes viria a faltar de comer,
se havia sido disparate, quem é que me metia nisto, pois eu tinha mosteiro.
Tudo o que o Senhor me tinha mandado e os muitos pareceres e orações, que havia mais de dois
anos que quase não cessavam, tudo estava tão apagado da minha memória como se nada disto
tivesse havido. Só me recordava do meu parecer e todas as virtudes e a fé estavam então em mim
suspensas, sem ter eu força para que nenhuma operasse nem me defendesse de tantos golpes.
8. Também me sugeria o demônio como é que eu me queria encerrarem casa tão acanhada e com
tantas enfermidades; como é que eu poderia sofrer tanta penitência; que deixava uma casa tão
grande e deleitosa e onde tão contente tinha sempre estado e tinha tantas amigas; que talvez as de cá
não fossem a meu gosto; que me tinha obrigado a muito; que talvez ficasse desesperada e,
porventura, era isto que tinha pretendido o demônio: tirar-me a paz e quietude e assim não poderia
ter oração estando desassossegada, e perderia a alma.
Coisas desta feitura ele punha todas juntas diante de mim, que não estava na minha mão pensarem
outra coisa; e com isto uma aflição e escuridão e trevas na alma, que eu não o sei encarecer. Logo
que assim me vi, fui-me para diante do Santíssimo Sacramento, mas nem podia encomendar-me a
Ele. Parece-me que estava com uma angústia como quem está em agonia de morte. Tratar disto com
alguém, não havia como, porque nem ainda confessor havia designado.
9. Oh! valha-me Deus, que vida esta tão miserável! Não há prazer seguro nem coisa sem mudança.
Havia tão pouquito que não trocara, me parece, meu contentamento com nenhum da terra e a
mesma causa dele me atormentava agora de, tal sorte, que não sabia que fazer de mim. Oh! se
olhássemos com advertência as coisas da nossa vida! cada qual veria, por experiência, no pouco em
que se hão de ter os gostos ou desgostos dela.
Certo é que me parece ter sido um dos bocados difíceis que passei na minha vida. Parecia adivinhar
o espírito o muito que tinha ainda para passar, embora nada chegasse a ser tanto como este, sé isto
durara. Mas o Senhor não deixou padecer muito a sua pobre serva; porque nunca nas tribulações
deixou de me socorrer e assim foi nesta. Deu-me um pouco de luz para ver que era demônio e para
que eu pudesse entender a verdade e que tudo era querer-me espantar com suas mentiras. Comecei a
recordar-me das minhas grandes determinações de servir o Senhor e desejos de padecer por Ele; e
pensei que, se os havia de cumprir, não havia de andar a procurar descanso. Se tivesse trabalhos,
este era o merecer; e se descontento, como o tomasse para servir a Deus, me serviria de purgatório.
Porque temia, pois? se desejava trabalhos, bons eram estes. Na maior contradição estava o ganho;
por que razão me havia de faltar o ânimo para servir a Quem tanto devia?
Com estas e outras considerações, fazendo-me grande força a mim mesma, prometi, diante do
Santíssimo Sacramento, fazer tudo o que pudesse para alcançar licença para vir para esta casa e
prometer clausura podendo-o fazer em boa consciência.
10. Em fazendo isto, num instante fugiu o demônio e deixou-me sossegada e contente e fiquei-o e o
tenho estado sempre. Tudo quanto se guarda nesta casa de clausura e penitência e o demais, torna-se
para mim em extremo suave e pouco. O gozo é tão extremamente grande, que eu penso algumas
vezes o que poderia escolher na terra que fosse mais saboroso. Não sei se isto concorre para eu ter
muita mais saúde do que nunca, ou querer o Senhor - por ser necessário e de razão que faça como
todas - dar-me este consolo de que o possa fazer, embora com trabalho. Mas, de eu o poder, se
espantam todas as pessoas que conhecem minhas enfermidades. Bendito seja Ele que tudo dá e, por
cujo poder, tudo se pode.
11. Fiquei bem cansada de tal contenda e rindo-me do demônio, pois bem via ser ele. Creio que o
Senhor o permitiu, porque eu nunca soubera antes que coisa era descontentamento de ser freira,
nem sequer por um momento, em vinte e oito anos e mais que o sou, para que entendesse a grande
mercê que nisto me fizera e do grande tormento de que me tinha livrado, e também para que, se eu
visse que alguma o estava, não me espantasse, mas sim me apiedasse dela e a soubesse consolar.
Pois, passado isto, queria depois de comer descansar um pouco (porque em toda a noite não tinha
quase sossegado nem deixado em algumas outras de ter trabalho e cuidado e, todos os dias, bem
cansada); mas, ao saber-se no meu mosteiro e na cidade o que estava feito, levantou-se um grande
alvoroço pelas razões que já disse e nas quais parecia haver alguma cor de verdade.
Logo a prelada me enviou ordem a mandar que, à hora, eu me fosse para lá. Eu, em vendo seu
mandato, deixo minhas freiras muito penalizadas e logo me vou.
Bem via que se me iam oferecer grandes trabalhos; mas como já ficava feita a fundação, muito
pouco se me dava. Fiz oração, suplicando ao Senhor que me favorecesse, e a meu Pai S. José que
me trouxesse à sua casa. Ofereci-lhe o que ia passar e, muito contente de que se me oferecesse algo
em que eu padecesse por Ele e O pudesse servir, fui-me, tendo por certo que logo me haviam de
meter no cárcere. Mas isto, a meu parecer, dar-me-ia muito prazer por não falar com ninguém e
descansar um pouco em solidão, do que estava bem necessitada, porque andava moída de tanto
tratar com gente.
12. Como cheguei e dei minhas razões à Prelada, aplacou-se um tanto. Tudo quanto expus enviaram
ao Provincial e ficou a causa para ser julgada diante dele. E vindo ele, fui chamada a juízo com bem
grande contentamento por ver que padecia alguma coisa pelo Senhor, pois nem contra Sua
Majestade nem contra a Ordem achava eu ter desobedecido em nada neste caso. Antes procurava
engrandecê-la com todas as minhas forças e morreria de boa vontade para isso, pois todo o meu
desejo era que se cumprisse a Regra com toda a perfeição. Lembrei-me do julgamento de Cristo e vi
como era nada aquele meu. Disse minha culpa, como se fora muito culpada e assim o parecia a
quem não sabia todas as causas. Depois de me ter dado uma forte repreensão, embora não fosse
com tanto rigor, como merecia o delito e o que muitos diziam ao Provincial, eu não me. quis
desculpar, pois ia determinada a isso, mas antes pedi me perdoasse e castigasse e não ficasse
zangado comigo.
13. Em algumas coisas bem via eu me condenavam sem culpa, porque diziam que o tinha feito para
ser tida por alguém e ter nomeada e outras coisas semelhantes. Mas reconhecia claramente ser
verdade o dizerem que eu era pior do que outras e que, não tendo guardado a muita religião que se
praticava naquela casa, pensava guardá-la noutra com mais rigor, que escandalizava o povo e
pretendia coisas novas... Tudo isto não me causava perturbação alguma nem pena, embora eu
mostrasse tê-la para que não parecesse que tinha em pouca conta o que me diziam. Enfim, mandoume
o Provincial que diante das freiras desse minhas razões e tive que fazê-lo.
14. Como eu estava tranqüila cá dentro de mim e o Senhor me ajudava, dei minhas razões de
maneira que o Provincial não encontrou motivo para me condenar, nem as que ali estavam. Depois,
a sós, falei-lhe mais claro e ele ficou muito satisfeito e prometeu-me, se fosse por diante a fundação
em sossegando a cidade, dar licença para voltar para lá. É que o alvoroço de toda a cidade era, de
fato, tão grande, como agora direi.
15. Daí a dois ou três dias, juntaram-se alguns dos regedores, o corregedor e alguns do cabido, e
todos juntos disseram, que de nenhum modo, se podia consentir, pois que daí vinha evidente dano
ao bem público, e que haviam de tirar o Santíssimo Sacramento, e de nenhum modo consentiriam
que fosse por diante. Convocaram todas as Ordens para que, de cada uma delas, dessem o seu
parecer dois letrados. Uns calavam, outros condenavam. Por fim, concluíram que se desfizesse
desde logo. Só um Presentado da Ordem de São Domingos, embora fosse contrário - não do
mosteiro, senão de que fosse pobre -, disse que não era coisa que, sem mais, assim se desfizesse,
que se visse bem, que havia tempo para isso, que este caso era com o Bispo, ou coisas deste teor,
que foram de grande proveito. É que, segundo a fúria com que estavam, sorte foi não o porem logo
por obra. Enfim, foi o que tinha de ser; pois o Senhor era com isso servido e pouco podiam todos
contra a Sua vontade. Eles alegavam suas razões e eram movidos por bom zelo, e assim, sem
ofender a Deus, faziam-me padecer a mim e a todas as pessoas que favoreciam a fundação. Estas,
que eram algumas, passaram muita perseguição.
16. Era tanto o alvoroço do povo, que não se falava doutra coisa, e todos a condenar-me e a ir fazer
queixa ao Provincial e ao meu mosteiro. Eu nenhuma pena tinha de quanto diziam de mim, pois
disso não se me dava mais, que se não o dissessem; mas sim temia que se desfizesse a fundação.
Isto é que me dava grande pena e ver que perdiam crédito e passavam muito trabalho as pessoas que
me ajudavam, pois, do que diziam de mim, antes me parece que me alegrava. E se eu tivera tido
bastante fé, nenhuma alteração sentia, mas o faltar alguma coisa numa virtude, basta para as fazer
adormecer a todas; e assim passeiem muita angústia os dois dias em que houve na cidade estas
juntas de que falei, no povo. Estando eu bem aflita, me disse o Senhor: Não sabes que sou
poderoso? que temes? E assegurou-me que não se desfaria. Com isto fiquei muito consolada.
Eles enviaram ao Conselho Real com a sua informação; de lá veio provisão para que se desse
relação de como se havia feito.
17. Eis aqui começado um grande pleito; porque os da cidade foram à Corte e houve que ir da parte
do mosteiro e não havia dinheiro nem eu sabia que fazer. Remediou-o o Senhor, pois nunca o meu
Padre Provincial ordenou que eu deixasse de tratar disto, porque é tão amigo de toda a virtude que,
embora não ajudasse, não queria ser contra. Não me concedeu, no entanto, licença de vir para cá,
até ver em que paravam as coisas. Estas servas de Deus estavam sós e faziam mais com suas
orações do que eu com quanto andava negociando, ainda que fossem precisas muitas diligências.
Algumas vezes parecia que tudo falhava, em especial um dia, antes que o Provincial chegasse, em
que a Prioresa me mandou que não tratasse de nada, o que era deixar-se tudo ao desamparo. Volteime
para Deus e disse-Lhe: - Senhor, esta casa não é minha, para Vós se fez; agora que não há
ninguém que cuide disto, faça-o Vossa Majestade. Fiquei assim tão descansada e tão sem pena,
como se tivera o mundo todo a trabalhar por mim, e logo dei o negócio por assegurado.
18. Um sacerdote muito servo de Deus e amigo de toda a perfeição, que sempre me tinha ajudado,
foi à Corte a cuidar do negócio e trabalhava muito; o cavalheiro santo - de quem tenho feito menção
-, também, neste caso, fazia muito e por todos os modos o favorecia. Passou não poucos trabalhos e
perseguição e sempre e em tudo, eu achei nele um pai e como tal ainda agora o tenho. E o Senhor
incutia tanto fervor naqueles que nos ajudavam, que cada um tomava o caso tão como coisa própria,
que parecia lhes ia nisso a vida e a honra, e não lhes tocava senão o julgarem ser coisa em que se
servia o Senhor. Um dos que também muito me auxiliava era o Mestre clérigo, de quem tenho
falado. E viu-se claramente que nisto o ajudava Sua Majestade. Pois, tendo-o o Bispo enviado em
seu nome a uma junta grande que então se realizou, ele, só contra todos, os aplacou por fim, dandolhes
certas razões. Isto foi muito, porquanto os entreteve, embora não bastasse para que não
voltassem logo a dar a vida, como se costuma dizer, em desfazer o convento. Este servo de Deus,
foi quem deu hábito às noviças e colocou o Santíssimo Sacramento e, por isto, viu-se alvo de forte
perseguição. Durou esta bateria quase meio ano, e dizer por miúdo os grandes trabalhos que se
passaram, seria longo.
19. Espantava-me eu do que o demônio se empenhava contra umas mulherzitas e de como parecia a
todos - digo, aos que contradiziam - que pudessem .causar grande dano ao lugar só doze mulheres e
a prioresa, que não hão de ser mais, e de vida tão austera. Pois ainda mesmo que fora dano e erro,
seria para elas próprias; mas dano para o lugar não parece levava caminho, e eles achavam tantos
que, em boa consciência, o contradiziam. Vieram, por fim a dizer, que, se o convento tivesse renda,
passariam por isso e consentiriam que fosse por diante. Eu estava já tão cansada de ver o trabalho
de todos os que me ajudavam, mais de que do meu, que já me parecia não ser mau o admitir ter
renda, enquanto não se sossegassem os ânimos, e deixá-la depois. E outras vezes, como ruim e
imperfeita, parecia-me que, porventura, assim o quereria o Senhor, pois, sem ela, não podíamos sair
com nosso intento e já eu estava em aceder a este acordo.
20. Estando eu em oração, na noite anterior ao dia em que se ia tratar disto e tendo já começado o
acordo, disse-me o Senhor - entre outras coisas - que não fizesse tal, porque, se começássemos a ter
renda, não consentiriam depois que a deixássemos. Na mesma .noite apareceu-me, o santo Frei
Pedro de Alcântara, que já tinha morrido. Antes de morrer, ao saber da grande contradição e
perseguição que tínhamos, escreveu-me a dizer que se alegrava de que a fundação fosse com tão
grande contradição. Era sinal de que se havia de servir muito o Senhor neste mosteiro, pois que o
demônio tanto se empenhava em que não se fizesse, e que de nenhum modo viéssemos a ter renda.
Mais duas ou três vezes me persuadia ainda disto na carta, dizendo que, se isto se fizesse, tudo se
viria a fazer como eu queria. Já eu o tinha visto outras duas vezes depois de morto e a grande glória
que usufruía, e assim não me fez temor, antes me alegrei muito. E sempre me aparecia como corpo
glorificado, cheio de muita glória e dava-me também grandíssima ao vê-lo. Recordo-me que, da
primeira vez que o vi, falando-me do muito que gozava, me disse, entre outras coisas: ditosa
penitência tinha sido a que fizera, pois tão grande prêmio lhe alcançara.
21. E, porque julgo já ter dito alguma coisa sobre isto, não digo aqui mais, senão que desta vez me
mostrou rigor, e só me disse que, de nenhum modo, aceitasse renda. Por que não queria eu tomar
seu conselho? E logo desapareceu.
Eu fiquei espantada e logo, no outro dia, disse ao cavalheiro - a quem eu em tudo acudia como
sendo o que mais trabalhava para isto -, o que se passava, e que não se combinasse de nenhum
modo ter renda, senão que fosse por diante o pleito. Ele, que estava neste ponto muito mais firme do
que eu, folgou muito; depois disse-me de quão má vontade tratara do acordo.
22. Depois voltou a levantar-se outra pessoa, grande serva de Deus e com bom zelo; já que o caso
estava em bons termos, dizia, que se pusesse em mãos de letrados. Aqui tive fartos desassossegos,
porque, alguns dos que me ajudavam, eram do mesmo parecer. E de quantas maranhas o demônio
fez, foi esta a de pior digestão. Mas em tudo me ajudou o Senhor. Dito, assim em suma, não se pode
dar bem a entender o que se passou nesses dois anos, desde que se começou esta casa, até se
terminar. Este último passo e o primeiro foram, no entanto, os mais trabalhosos.
23. Aplacada, pois; já algum tanto a cidade, usou de grande destreza o Padre Dominicano que nos
ajudava, ainda mesmo não estando presente. Trouxera-o o Senhor em tempo que nos fez grande
bem e parece só o ter trazido Sua Majestade para este fim, pois, segundo ele me disse, não tinha tido
motivo para vir; só por acaso soubera o que se passava. Esteve aqui o tempo que foi preciso.
Tornando-se a ir, procurou por várias vias alcançar licença do Nosso Padre Provincial para eu voltar
a esta casa e trouxesse mais algumas comigo. Parecia quase impossível obter dele isto tão depressa,
a fim de fazer o ofício e ensinar às que estavam. Foi grandíssimo consolo para mim o dia em que
viemos.
24. Estando eu, antes de entrar no Mosteiro, a fazer oração na Igreja e quase em arroubamento, vi
Cristo; pareceu-me que me recebia com grande amor e me punha uma coroa, agradecendo-me o que
fizera por Sua Mãe.
Outra vez, estando todas no coro em oração depois de Completas, vi Nossa Senhora, com
grandíssima glória, revestida dum manto branco e, debaixo dele, parecia amparar-nos a todas.
Entendi quão alto grau de glória daria o Senhor às desta casa.
25. Principiando-se a rezar o Ofício, era muita a devoção que o povo começou a ter para com esta
casa. Receberam-se mais freiras e começou o Senhor a mover os que mais nos tinham perseguido,
para que muito nos favorecessem e dessem esmola. Aprovavam assim o que tanto tinham reprovado
e, pouco a pouco, deixaram-se do pleito e diziam que já viam ser obra de Deus, pois, apesar de tanta
contradição, tinha Sua Majestade querido que fosse por diante. E não há presentemente ninguém, a
quem lhe pareça ter sido acertado deixar de se fazer, e assim têm tanto cuidado em nos prover de
esmolas que, sem esmolar, nem pedir nada a ninguém, o Senhor os desperta para que no-la enviem
e passamos sem que nos falte o necessário. E espero no Senhor que será sempre assim; pois, como
são poucas, se fazem o que devem, como agora Sua Majestade lhes dá graça para o fazer, segura
estou que não lhes faltará, nem terão necessidade de se tornar pesadas, nem de importunar ninguém,
porquanto o Senhor terá cuidado delas como até aqui.
26. É para mim grandíssimo consolo ver-me aqui metida com almas tão desprendidas. O seu
cuidado é procurar saber como adiantar no serviço de Deus. A soledade é sua consolação e pensar
em ver alguém que não seja para ajudá-las a encender-se mais no amor a seu Esposo, é para elas
trabalho, ainda que sejam muito parentes. E assim ninguém vem a esta casa, senão quem trata disto.
É que nem as contenta, nem se contenta. A sua linguagem não é outra senão falar de Deus e assim
não entendem nem as entende senão quem fala o mesmo.
Guardamos a Regra de Nossa Senhora do Carmo e vivida esta sem mitigação, senão como a
ordenou Frei Hugo, Cardeal de Santa Sabina, é que foi dada em 1248, no ano V de Pontificado do
Papa Inocêncio IV.
27. Parece-me que serão bem empregados todos os trabalhos que se passaram. Agora, ainda que
haja algum rigor, porque não se come jamais carne, a não ser por necessidade, jejum de oito meses
e outras coisas como se vê na mesma Regra Primitiva, em muitas coisas isto ainda parece pouco às
irmãs e guardam outras que nos pareceram necessárias para cumprir a Regra com maior perfeição.
Espero no Senhor que há de ir muito adiante com o começado, como Sua Majestade me tem dito.
28. A outra casa, que a devota de quem falei procurava fazer, também a favoreceu o Senhor. É em
Alcalá, e não lhe faltou contradição à farta, nem deixou de passar grandes trabalhos. Sei que se
guarda nela perfeita observância, conforme a esta nossa primitiva Regra. Praza ao Senhor que seja
tudo para glória e louvor Seu e da gloriosa Virgem Maria, cujo Hábito trazemos. Amém.
29. Creio que se enfadará V. Mercê com a larga relação que dei deste mosteiro e ainda vai muito
curta para os muitos trabalhos e as maravilhas que o Senhor aqui tem realizado. De tudo isto há
muitas testemunhas que o poderiam jurar; assim peço a V. Mercê que, se lhe parecer bem rasgar o
mais que aqui vai escrito, o que toca a este mosteiro guarde-o por amor de Deus, para depois da
minha morte o entregar às irmãs que aqui estiverem. Animará muito às que vierem a servir a Deus e
a procurar que, não decaia o começado, mas sim vá sempre avante, quando virem o muito que Sua
Majestade aqui fez, fazendo-o por, meio de coisa tão ruim e baixa, como eu.
E, pois Sua Majestade tão particularmente Se quis mostrar, dando o Seu favor para que assim se
fizesse, parece-me a mim que fará muito mal e será muito castigada por Deus quem começar a
relaxar a perfeição que o Senhor aqui estabeleceu desde o começo e tem favorecido, para que se
leve com tanta suavidade, pois se vê muito bem que é tolerável e que se pode observar com sossego
e o grande auxílio que é para poderem aqui viver sempre aquelas que, a sós, quiserem gozar do seu
Esposo Cristo; porquanto é isto o que sempre devem pretender: viver a sós com Ele só; e não sejam
mais de treze. Por muitos pareceres tenho sabido que isto é o que convém, e tenho visto por
experiência que, para se viver com o espírito com que aqui se vive e só de esmolas e sem andar a
pedir, não se sofre que sejam mais. È nisto creiam sempre mais a quem, com muitos trabalhos e
com orações de muitas pessoas, procurou o que seria melhor. E no grande contentamento e alegria e
pouco trabalho que nestes anos e desde que estamos nesta casa, vemos terem todas, e com muita
mais saúde do que costumavam ter, se verá ser isto o que convém. E a quem lhe parecer áspero,
deite a culpa à sua falta de espírito e. não ao que se guarda aqui; pois que, pessoas delicadas e não
saudáveis, porque têm esse espírito, o podem fazer com tanta suavidade, e vão-se a outro convento,
onde se, salvarão conforme ao seu espírito.
CAPÍTULO 37. Trata dos efeitos que lhe ficavam quando o Senhor lhe fazia alguma mercê. Junta
com isto muito boa doutrina. Diz como se há de procurar ter em muito o ganhar mais algum grau
de glória e que, por nenhum trabalho, deixemos bens que são perpétuos.
1. Custa-me ter de dizer outras mercês que o Senhor metem feito, além das que já disse, e ainda
estas são demasiadas para que se creia que Ele as tenha feito a pessoa tão ruim; mas, para obedecer
ao Senhor que mo ordenou e a VV. Mercês, direi algumas coisas para glória Sua. Praza a Sua
Majestade aproveite a alguma alma o ver que, a uma coisa tão miserável, o Senhor assim quis
favorecer - que fará a quem O servir de verdade? - e se animem todos a contentar Sua Majestade,
pois já nesta vida dá tais prendas.
2. Primeiro, há de entender-se que nestas mercês que Deus faz à alma, há mais e menos glória.
Porque nalgumas visões, a glória e o deleite e a consolação excedem tanto o que o Senhor dá em
outras, que eu me espanto de tanta diferença de gozar, ainda nesta vida. Pois acontece ser tanta a
diferença que há num gosto e regalo que Deus dá numa visão ou num arroubamento, que parece não
é possível poder haver, aqui na terra, mais a desejar e assim a alma não o deseja nem pediria maior
contentamento. Embora, depois que o Senhor me deu a entender quão grande é a diferença que há
no Céu entre o que gozam uns e o que gozam outros, bem vejo que também cá em baixo não há
medida no dar, quando o Senhor é servido; e assim não quereria que a houvesse no servir eu a Sua
Majestade e quisera empregar nisto toda a minha vida, forças e saúde, e não perder por minha culpa,
um pouco de mais gozar. E assim digo que, se me perguntassem se antes quero ficar na terra até ao
fim dó mundo com todos os trabalhos que nele há, e depois subir um pouquinho mais alto em
glória, ou sem trabalho algum ir já gozar duma glória um pouco mais baixa, de boa vontade sofreria
todos os trabalhos para gozar um pouquito mais no entender a grandeza de Deus, pois vejo que,
quem mais O entende, mais O ama e O louva.
3. Não digo que não me contentaria e me teria por muito venturosa de estar no Céu, mesmo que
fosse no último lugar, pois, quem assim o tinha no inferno, grande misericórdia já nisso me faria o
Senhor, e praza a Sua Majestade eu vá para lá e não olhe a meus grandes pecados! O que digo é
que, embora fosse muito à minha custa, se pudesse e o Senhor me desse graça para trabalhar muito,
não quereria, por minha culpa, perder nada. Miserável de mim que, com tantas culpas, tudo tinha
perdido!
4. Há de notar-se que, em cada mercê que o Senhor me fazia, de visão ou revelação, ficava a minha
alma com algum grande lucro, e, em algumas visões, com muitíssimos.
De ver a Cristo ficou impressa em mim Sua grandíssima formosura, e ainda hoje a tenho; porque,
para isto, bastava uma só vez, quanto mais tantas em que o Senhor me faz esta mercê! Daqui fiquei
com um mui grande proveito e foi este: tinha eu uma grandíssima falta de onde me vieram grandes
danos e era esta: em começando a perceber que uma pessoa me tinha amizade, se me caía em graça,
afeiçoava-me tanto a ela que me prendia de grande modo a memória pensar nela. Embora eu não o
fizesse com intenção de ofender a Deus, gostava de a ver e de pensar nela e nas boas qualidades que
lhe via. Era isto coisa tão danosa, que me trazia a alma assaz perdida. Depois que vi a grande
formosura do Senhor, a ninguém via que, em Sua comparação, me parecesse bem ou me ocupasse a
memória. Só com o volver um pouco os olhos da consideração à imagem que tenho na minha alma,
fiquei, desde então para cá, com tanta liberdade que, tudo o que vejo, parece que me faz asco em
comparação das excelências e graças que eu via neste Senhor. Nem há saber nem regalo algum que
eu estime em comparação do que é ouvir uma só palavra que seja, dita por aquela divina boca,
quanto mais ouvindo tantas! E tenho por impossível, se o Senhor por meus pecados não permite que
se me tire esta lembrança, poder-me alguém ocupar o pensamento de forma a que, por pouco que eu
me recorde deste Senhor, não fique livre.
5. Aconteceu-me com algum confessor mostrar agrado (pois, como os tenho em lugar de Deus tão
de verdade), sentia segurança. E parece-me que é onde a minha amizade mais se emprega, pois
sempre quero muito aos que governam minha alma. Eles, como temerosos e servos de Deus,
temiam não me apegasse eu de algum modo e me prendesse em lhes querer, embora santamente, e
mostravam-me desagrado. Isto foi depois de eu estar tão sujeita a obedecer-lhes, porque antes não
lhes ganhava essa amizade. Eu ria-me comigo mesma ao ver quão enganados estavam, embora nem
de todas as vezes lhes dizia tão claramente como o sentia em mim, o pouco que me prendia a
alguém. Mas sossegava-os e, tratando mais comigo, conheciam o que eu devia ao Senhor; aliás
estas suspeitas que tinham de mim eram sempre ao princípio.
Em vendo o Senhor, começou em mim um amor muito maior para com Ele e uma confiança como
de quem tão de contínuo Lhe falava. Via que, embora fosse Deus, era Homem, que não se admira
das fraquezas dos homens, que compreende a nossa miserável natureza sujeita a muitas quedas por
causa do primeiro pecado que Ele viera reparar. Posso tratá-Lo como a um amigo, embora seja
Senhor. Vejo que não é como os que, cá na terra, temos por senhores, os quais põem todo o seu
senhorio em autoridades postiças. Tem de haver horas para lhes falar e determinadas pessoas que
lhes falem. Se é algum pobrezito que tem com eles algum negócio, mais rodeios, favores e trabalhos
lhe há de custar o tratá-lo. Oh! então se é com o Rei! Aqui não há tocar gente pobre e que não seja
cavalheiresca, não há senão que perguntar quem são os mais privados, que certamente não serão
pessoas que tenham o mundo debaixo dos pés. Esses falam verdades, não temem nem devem; não
são feitos para palácio. Ali não se deve usar disto, mas sim calar o que mal lhes parecer, porque
ainda a pensá-lo não se atrevem, para não serem desfavorecidos.
6. Ó Rei da glória e Senhor de todos os reis! O Vosso reino não é armado de palitos, pois não tem
fim! Não são necessários terceiros para chegar até Vós! Basta divisar ao longe Vossa pessoa para
logo se conhecer que só Vós mereceis que Vos chamem Senhor, pela majestade que mostrais. Não
há necessidade de gente de acompanhamento, nem de guarda, para que conheçam que sois Rei. Cá
na terra, um Rei mal se conhecerá só por si, porque, embora ele queira ser reconhecido por tal, não
o acreditarão; não tem mais do que os outros. É mister que se veja por que o hão de acreditar, e
assim é de razão que tenha estas autoridades postiças, porque, se não as tivesse, tê-lo-iam em nada.
É que não lhe vem dele o parecer poderoso: de outrem lhe há de vir a autoridade.
Ó Senhor meu! Ó meu Rei! Quem soubera representar agora a Majestade que tendes! É impossível
deixar de ver que, por Vós mesmo, sois grande Imperador. Espanta ver esta majestade; mas mais
espanta, Senhor meu, o ver com ela a Vossa humildade e o amor que mostrais a uma como eu. Em
tudo podemos tratar e falar conVosco como quisermos, uma vez perdido o primeiro espanto e temor
de ver a Vossa majestade, ficando-nos maior, no entanto, para não Vos ofender; não, porém, por
medo do castigo, Senhor meu, porque deste nenhum caso se faz em comparação de não Vos perder
a Vós!
7. Ei-los aqui os proveitos desta visão, sem falar de outros grandes que deixam na alma. Se a mercê
é de Deus, conhece-se pelos efeitos, quando a alma tem luz; porque, como já o tenho dito, por vezes
o Senhor quer que esteja em trevas e que não veja esta luz, e assim não é muito que tema a que se
vê tão ruim como eu. Ainda há pouco me aconteceu estar oito dias que parecia não havia em mim,
nem podia haver, conhecimento do que devo a Deus, nem lembrança das mercês. Tinha a alma tão
insensível e posta nem sei em quê, nem como, não com maus pensamentos, mas para os bons estava
tão inábil, que me ria de mim e gostava de ver a baixeza de uma alma quando não anda Deus
sempre operando nela. Bem vê a alma que não está sem Ele neste estado, pois não é como nos
grandes trabalhos que tenho algumas vezes, como já disse; mas, embora ela ponha lenha e faça esse
pouco que pode de sua parte, não consegue atear o fogo do amor de Deus. Já grande misericórdia é
a Sua, que se veja o fumo para entender não estar de todo apagado. Só o Senhor o torna a acender,
porque então, ainda que uma alma se esfalfe a soprar e a dispor a lenha, parece que tudo o abafa
mais. Creio que o melhor é render-se de todo a que não pode nada só por si e ocupar-se em outras
coisas meritórias, como tenho dito. É que talvez o Senhor lhe tire a oração para que se ocupe nelas e
conheça, por experiência, o pouco que pode por si.
8. Certo é que hoje me consolei com o Senhor e me atrevi a queixar-me de Sua Majestade e Lhe
disse: Como, Deus meu, não basta que me tenhais nesta miserável vida, e que, por amor de Vós, eu
passe por isto, e queira viver onde tudo são embaraços para Vos gozar; e ter de comer e dormir e
negociar e tratar com todos; e tudo padeço por amor de Vós; pois bem sabeis, Senhor meu, que isto
me é tormento grandíssimo e que, nos tão pouquitos instantes como me ficam para gozar de Vós,
Vos escondais de mim? Como se compadece isto com a Vossa misericórdia? Como o pode sofrer o
amor que me tendes? Creio, Senhor, que, se me fora possível esconder-me eu de Vós como Vos
escondeis de mim, não o sofreríeis, segundo o amor que eu penso e creio que me tendes. Mas Vós
estais comigo e sempre me vedes. Não se sofre pois isto, Senhor meu; suplico-Vos que vejais que se
faz agravo a quem tanto Vos ama.
9. Isto e outras coisas acontece-me dizer, conhecendo primeiro, no entanto, como era suave o lugar
que me estava preparado no inferno para o que merecia. Mas algumas vezes desatina tanto o amor,
que não me sinto, senão que, em todo o meu juízo, faço estas queixas e tudo me sofre o Senhor.
Louvado seja tão grande Rei! Achegarmo-nos aos da terra com estes atrevimentos!... Ainda ao rei,
já não me maravilho de que não se ouse falar, que é de razão que se tema e aos senhores que
representam ser cabeças; mas já está o mundo de modo que teriam de ser mais longas as vidas para
aprender os pontinhos e novidades e maneiras que hoje há de educação, se é que se há de gastar
alguma parte dela em servir a Deus. Eu me benzo de ver o que se passa." O caso é que eu já não
sabia como viver quando aqui me meti; porque não se toma por engano quando há descuido em não
tratar as pessoas por muito mais do que merecem, senão que tão deveras o tomam por afronta, que é
necessário dar satisfações da intenção, se houve, como digo, descuido; e praza ainda a Deus o
acreditem.
10. Torno a dizer que, certamente, eu não sabia como viver, porque se vê aflita uma pobre alma. Vê
que a mandam que ocupe sempre o pensamento em Deus e que é necessário trazê-lo n'Ele para se
livrar de muitos perigos. Por outro lado, vê que cumpre não perder ponto em pontos do mundo, sob
pena de dar ocasião a que se tentem os que têm posta a sua honra nestes pontos. Trazia-me isto
fatigada e nunca acabava de dar satisfações, porque não podia, embora o tentasse, deixar de cometer
muitas faltas nisto, que, como digo, não se têm no mundo por pequenas. E será verdade que nas
Religiões, que de razão devíamos ser desculpadas, nestes casos, há desculpa? Não, pois dizem que
os mosteiros hão de ser corte de boa educação e que têm de a saber. Eu, certo é, não posso entender
isto. Tenho pensado se algum santo disse que haviam de ser corte para ensinar aos que quisessem
ser cortesãos do Céu e o entenderam ao revés. Pois quem, em boa razão, há de ter contínuo cuidado
de contentar a Deus e aborrecer o mundo, não sei como o possa ter tão grande em agradar aos que
vivem nele, em coisas que tantas vezes mudam. Ainda se se pudesse aprender de uma vez, passara;
mas até para títulos de cartas é já preciso que haja cátedra onde se ensine como se há de fazer, por
assim dizer; porque ora se deixa papel dum lado, ora do outro, e a quem não se costumava dar por
magnífico, se há de dar por ilustre.
11. Eu não sei onde isto irá parar, porque ainda não tenho cinqüenta anos e, nos que vivi, tenho
visto tantas mudanças, que já não sei viver. Os que agora nascem e viverem muito, que hão de eles,
pois, fazer? Por certo que tenho lástima de gente espiritual que está obrigada a viver no mundo por
alguns santos fins, pois é terrível cruz a que nisto levam. Se todos pudessem combinar fazer-se
ignorantes e querer que os tivessem por tais nestas ciências, de muito trabalho se livrariam.
12. Mas, em que tolices me tenho metido! Para tratar das grandezas de Deus, meti-me a falar das
baixezas do mundo. Pois o Senhor me fez mercê de o ter deixado, quero já sair dele; lá se avenham
os que com tanto trabalho sustentam estas ninharias. Praza a Deus que, na outra vida, que é sem
mudanças, não as paguemos. Amém.
CAPÍTULO 38. Trata dalgumas grandes mercês que o Senhor lhe fez, tanto em mostrar-lhe alguns
segredos do Céu, como outras grandes visões e revelações que Sua Majestade teve por bem que
visse. Diz os efeitos com que a deixavam e o grande aproveitamento que ficava em sua alma.
1. Estando uma noite tão doente que me queria escusar de ter oração, tomei um rosário para me
ocupar vocalmente, procurando não recolher o entendimento, embora no exterior estivesse
recolhida num oratório. Quando o Senhor quer, pouco aproveitam estas diligências. Estive assim
um pouco, e veio-me um arrebatamento de espírito com tanto ímpeto, que não pude resistir-lhe.
Parecia-me estar metida no Céu, e as primeiras pessoas que ali vi foi a meu pai e a minha mãe, e vi
coisas tão grandes - em tão breve espaço como o de se poder dizer uma Ave Maria - que fiquei bem
fora de mim, parecendo-me muito demasiada mercê.
Isto de durar tão breve tempo, bem pode ser que fosse mais, mas parece-nos muito pouco. Temi que
fosse alguma ilusão, ainda que não me parecia. Não sabia que fazer, porque tinha grande vergonha
de ir com isto ao confessor; não por humildade, a meu parecer, senão por julgar que faria troça de
mim dizendo: com que então temos um S. Paulo ou S. Jerônimo para ver coisas do Céu! E por estes
gloriosos santos terem tido coisas destas, isto a mim me fazia mais temor, e não fazia senão chorar
muito, porque me parecia que não levava nenhum caminho. Enfim, embora muito o sentisse, fui ao
confessor, porque calar alguma coisa jamais o ousava, por mais que sentisse em dizê-la, pelo grande
medo que tinha de ser enganada. Ele, como me viu tão aflita, consolou-me muito e disse-me muitas
coisas boas para me tirar a pena.
2. Andando mais o tempo, aconteceu-me e acontece ainda algumas vezes. Ia o Senhor mostrandome
maiores segredos. Querer ver a alma mais do que se lhe representa, não há forma, nem é
possível, e assim eu não via, de cada vez, senão o que o Senhor me queria mostrar. Era porém tanto,
que o menos bastava para ficar espantada e a alma muito aproveitada para estimar e ter em pouco
todas as coisas da vida.
Quisera eu poder dar a entender alguma coisa do menos que entendia e, pensando como o poderei
fazer, vejo que é impossível. Só a diferença que há entre, esta luz que vemos e a que ali se
representa, sendo tudo luz, é tal que não há comparação, porque a claridade do sol parece coisa
muito deslustrada. Enfim; não alcança a imaginação, por muito subtil que seja, pintar nem traçar
como seja esta luz, nem coisa alguma das que o Senhor me dava a entender com um deleite tão
soberano que não se pode dizer. É que todos os sentidos gozam em tão alto grau e suavidade, que
não se pode encarecer, e assim é melhor não dizer mais nada.
3. Uma vez havia estado assim mais duma hora, mostrando-me o Senhor coisas admiráveis,
parecendo-me que não se tirava de ao pé de mim. Disse-me: Olha, filha, ó que perdem os que são
contra Mim; não deixes de lhes dizer isto.
Ai! Senhor meu! e que pouco aproveita o eu falar àqueles a quem suas obras cegam, se Vossa
Majestade não lhes dá luz! A algumas pessoas a quem Vós a tendes dado, têm-lhes aproveitado
saber as Vossas grandezas; mas vêem-nas, Senhor meu, manifestadas a coisa tão ruim e miserável,
que eu tenho em muito o ter-me acreditado alguém. Bendito seja o Vosso nome e misericórdia, pois
- ao menos eu - tenho visto emri minha alma conhecida melhoria.
Quisera ela depois ficar-se sempre ali e não tornar a viver, porque foi grande o desprezo que me
ficou de quanto é cá de baixo; parecia-me lixo e vejo quão baixamente nos ocupamos os que nos
detemos nisto.
4. Quando estava com aquela senhora que tenho dito,. aconteceu-me, uma vez, sentir-me mal do
coração (porque, como já o disse, tenho sofrido muito dele, embora já não sofra), como ela era de
muita caridade, me fez tirar, para as ver, jóias de ouro e pedras preciosas, que as tinha de grande
valor, em especial uma de diamantes avaliada em muito. Ela pensou que me alegraria com isso. Eu
estava-me rindo comigo mesma e tendo compaixão de ver o que os homens estimam, recordandome
do que o Senhor nos tem guardado e pensava quão impossível me seria, embora eu a mim
mesma me quisesse convencer, ter em conta aquelas coisas, se o Senhor não me tirasse a lembrança
de outras.
É isto um grande senhorio para a alma, tão grande que não sei se o entenderá senão quem o possuir;
é o verdadeiro e natural desapego, que nos vem sem esforço nosso, pois tudo é feito por Deus. É
que Sua Majestade mostra estas verdades de tal modo, que ficam tão impressas, que se vê
claramente que, por nós mesmos, não poderíamos adquirir isto, desta maneira, em tão breve tempo.
5. Ficou-me também pouco medo à morte, a qual eu sempre temia muito. Parece-me agora coisa
facílima para quem serve a Deus, porque num momento se vê a alma livre deste cárcere e posta em
descanso. Este levar Deus o espírito nestes arroubamentos, e mostrar-lhe coisas tão sublimes,
afigura-se-me a mim muito semelhante a quando uma alma sai do corpo, que num instante se vê em
todo este bem; deixemos as dores de quando se arranca, que disso pouco caso se há de fazer; e, os
que deveras amarem a Deus e tiverem dado de mão às coisas desta vida, mais suavemente devem
morrer.
6. Também me parece que me aproveitou muito para conhecer a nossa verdadeira pátria e ver que
somos cá na terra peregrinos, e grande coisa é ver o que há por lá e saber onde havemos de viver.
Porque, se alguém tem de ir viver com sossego em uma terra, é-lhe de grande ajuda para passar os
trabalhos do caminho, já ter visto que é lugar onde há de viver muito a seu descanso; é-o também
para considerar com facilidade as coisas celestiais e procurar que seja lá a nossa conversação. Isto é
de muito lucro. Só o olhar para o Céu recolhe a alma, porque, como o Senhor se dignou mostrar
algo do que lá há, está-se pensando no que se viu, e acontece-me, algumas vezes, que os que me
acompanham e com quem me consolo, são os que eu sei que lá vivem; esses é que verdadeiramente
me parecem os vivos, e os que cá vivem tão mortos, que todo o mundo, dir-se-ia, não me faz
companhia, em especial quando tenho aqueles ímpetos.
7. Tudo me parece um sonho e que é burla o que vejo com os olhos do corpo. O que já tenho visto
com os da alma, é o que ela deseja e, como se vê longe, este é o morrer. Enfim, é grandíssima a
mercê que o Senhor faz a quem dá semelhantes visões; porque a ajuda muito e também a levar uma
pesada cruz, porque nada a satisfaz, tudo lhe dá no rosto. E se o Senhor não permitisse, às vezes,
que se olvidasse, embora se torne a lembrar, não sei como se poderia viver. Bendito seja e louvado
para sempre jamais!
Praza a Sua Majestade, pelo Sangue que Seu Filho derramou por mim, visto ter querido que eu
entenda alguma coisa de tão grandes bens e comece de algum modo a gozar deles, não me aconteça
o mesmo que a Lúcifer que, por sua culpa, perdeu tudo. Não o permita Ele por quem é! Não tenho
pouco temor algumas vezes, embora por outra parte, e é muito habitual, a misericórdia de Deus dáme
segurança de que, pois me tirou de tantos pecados, não quererá deixar-me de Sua mão, para que
me perca. Isto suplico eu a V. Mercê que sempre Lhe peça.
8. Não são porém tão grandes as ditas mercês, segundo julgo, como esta que agora direi, por muitas
causas e grandes bens que dela me ficaram, particularmente a grande fortaleza de alma; embora
vista cada coisa de per si é, porém, tão grande que não há com que a comparar.
9. Um dia, na véspera do Espírito Santo, depois da Missa, fui para um lugar bem apartado, onde eu
rezava muitas vezes, e comecei a ler num Cartusiano o referente a esta festa. Lendo os sinais que
devem ter os que começam e aproveitam e os perfeitos, para se conhecer se está com eles o Espírito
Santo, e depois de ter lido estes três estados, pareceu-me, tanto quanto podia perceber, que, por
bondade de Deus, não deixava Ele de estar comigo. Estando-O eu louvando e recordando-me que,
duma outra vez que o tinha lido, estava bem falha de tudo aquilo, que isso via eu muito bens assim
como agora entendia o contrário de mim, conheci que era grande a mercê que o Senhor me tinha
feito. E assim comecei a considerar o lugar que tinha merecido no inferno pelos meus pecados e
dava muitos louvores a Deus, porque me parecia que nem conhecia a minha alma tanto a via
mudada. Estando nesta consideração, deu-me um ímpeto grande sem entender o motivo; parecia
que a alma me queria sair do corpo, porque não cabia nele, nem se achava capaz de esperar tanto
bem. Era ímpeto tão excessivo, que eu não o podia reprimir e, segundo me parece, diferente de
outras vezes, nem entendia o que tinha a alma, nem o que queria, que tão alterada estava. Encosteime,
que nem sentada podia estar, porque me faltava toda a força natural.
10. Estando nisto, vejo sobre minha cabeça uma pomba; bem diferente das de cá, porque não tinha
penas, senão que as asas eram de umas conchinhas que despediam de si grande resplendor. Era
grande, maior que uma pomba normal. Parece-me que ouvia o ruído que ela fazia com as asas.
Estaria adejando pelo espaço de uma Ave-Maria. Já a alma estava de tal sorte que, perdendo-se a si
de si, a perdeu de vista.
Acalmou-se o espírito com tão bom Hóspede, que, segundo meu parecer, mercê tão maravilhosa o
devia desassossegar e espantar; e logo que a começou a gozar, perdeu o medo e começou a
quietação com o gozo, ficando em arroubamento.
11. Foi grandíssima a glória deste arroubamento. Fiquei o resto desta Páscoa tão desatinada e tonta,
que não sabia que fazer de mim, nem como cabia em mim tão grande favor e mercê. Não ouvia nem
via, por assim dizer, com o grande gozo interior. Desde aquele dia percebi ficar com grandíssimo
aproveitamento no mais subido amor de Deus e as virtudes muito mais fortalecidas. Seja Ele
bendito e louvado para sempre. Amém.
12. De outra vez vi a mesma pomba sobre a cabeça de um padre da Ordem de São Domingos, salvo
que me pareceu que se estendiam muito mais os raios e resplendores das mesmas asas. Deu-se-me a
entender que havia de levar almas para Deus.
13. Outra vez vi estar Nossa Senhora pondo uma capa, muito branca ao Presentado desta mesma
Ordem, de quem tenho falado algumas vezes.
Disse-me Ela que, pelo serviço que ele Lhe tinha feito em ajudar a que fizesse esta casa, lhe dava
aquele manto em sinal de que; daí em diante, guardaria a sua alma limpa e não cairia em pecado
mortal. Eu tenho por certo que assim foi; porque daí a poucos anos morreu, e a vida que viveu foi
de tanta penitência e a morte com tanta santidade, que, tanto quanto se pode conhecer, não há que
pôr isto em dúvida. Disse-me um frade, que tinha assistido à sua morte, que, antes de expirar, disselhe
que estava com ele S. Tomás. Morreu com grande gozo e desejo de sair deste desterro. Depois,
tem-me aparecido algumas vezes com muita glória e dito algumas coisas. Tinha tanta oração,
quando morreu, que, embora se quisesse dispensar dela pela grande fraqueza em que estava, não
podia, porque tinha muitos arroubamentos. Escreveu-me pouco antes de morrer a perguntar de que
meio se teria de servir, porque, quando acabava de dizer Missa, ficava em arroubamento muito
tempo, sem o poder evitar. Deu-lhe Deus, no fim, o prêmio do muito que O tinha servido toda a sua
vida.
14. Do Reitor da Companhia de Jesus, de quem algumas vezes fiz menção, tenho visto algumas
coisas das grandes mercês que o Senhor lhe fazia, que, para não me alongar, não as escrevo aqui.
Aconteceu-lhe uma vez um grande trabalho em que foi muito perseguido e viu-se muito aflito.
Estando eu um dia ouvindo Missa, vi Cristo na cruz, à elevação da Hóstia. Disse-me algumas
palavras para que lhas dissesse, de consolação, e outras, prevenindo-o do que estava por vir e
lembrando-lhe o que Ele tinha padecido por ele .e que se preparasse para sofrer. Deu-lhe isto muita
consolação e ânimo, e tudo se passou depois, como o Senhor me disse.
15. Dos da Ordem deste Padre, que é da Companhia de Jesus, e de toda a Ordem junta, tenho visto
grandes coisas. Vi-os no Céu com bandeiras brancas nas mãos algumas vezes e; como digo, outras
coisas tenho visto deles de muita admiração; e assim tenho esta Ordem em grande veneração,
porque os tenho tratado muito e vejo que se conforma a sua vida com o que o Senhor me tem dado a
entender deles.
16. Estando uma noite em oração, começou-me o Senhor a dizer algumas palavras, trazendo-me
com elas à memória quão má tinha sido minha vida, que me faziam grande confusão e pena.
Porque, embora não sejam ditas com rigor, causam uma mágoa e pena, que me desfazem. Sente-se
com uma palavra destas, maior aproveitamento em conhecermo-nos a nós mesmos que em muitos
dias em que consideremos a nossa miséria; porque cada uma traz em si esculpida uma tal verdade
que não a podemos negar. Representou-me as afeições que eu, com tanta vaidade, havia tido e
disse-me que tivesse em muito o Ele querer, e em admitir que Lhe fosse dedicada uma amizade que
tão mal se havia gasto como a minha.
Outras vezes disse-me que me lembrasse do tempo em que parecia que eu tinha por honra ir contra
a Sua. E ainda em outras, que me recordasse do que eu Lhe devia, pois quando Lhe dava maior
golpe, estava-me Ele fazendo mercês. Se tinha cometido algumas faltas, e não são poucas, de tal
maneira Sua Majestade mas dá a entender, que toda eu parece que me desfaço, e como tenho
muitas, é muitas vezes. Quando me acontecia repreender-me o confessor, e eu querer-me consolar
na oração, era ali que encontrava a verdadeira repreensão.
17. Voltando ao que dizia: como o Senhor me começou a trazer à memória a minha ruim vida, ao
virem-me as lágrimas (como então, segundo me parecia, nada tinha feito), pensei que me quereria
fazer alguma mercê. É que, muito de ordinário, quando recebo alguma particular mercê do Senhor,
é depois de eu meter primeiro desfeito a mim mesma. Penso que o Senhor o deve assim fazer para
que veja bem claro quão longe estou de as merecer.
Pouco depois; foi tão arrebatado o meu espírito que quase me pareceu que estava de todo fora do
corpo; pelo menos, não se percebe que se vive nele. Vi a Humanidade Sacratíssima, com tão
excessiva glória como jamais a tinha visto. Representou-se-me, por uma notícia admirável e clara,
estar Ele metido no seio do Pai. Isto não o saberei eu dizer como é, porque, sem ver, pareceu-me
que me via na presença daquela Divindade. Fiquei tão espantada e de tal maneira, que passaram
alguns dias, ao que recordo que não podia voltar a mim e sempre me parecia que trazia presente
aquela majestade do Filho de Deus, embora não fosse como da primeira vez. Isto bem o entendia
eu, senão que fica tão esculpido na imaginação - por breve que tenha sido - que não o pode tirar da
lembrança por algum tempo e é de muito consolo e também aproveitamento.
18. Tive esta mesma visão ainda outras três vezes. É, a meu parecer, a mais subida visão que o
Senhor me fez mercê de ver e traz consigo grandíssimos proveitos. Parece que purifica a alma de
grande modo e tira quase de todo a força a esta nossa sensualidade. É uma grande chama que parece
que abrasa e aniquila todos os desejos da vida; porque, como eu, graças a Deus, já não os tinha em
coisas vãs, aqui se me declarou bem como tudo era vaidade e quão vãos e quão vãos são os
senhorios de cá da terra. É grande ensinamento para levantar os desejos à pura verdade. Deixa
impresso um acatamento que não saberei dizer como é, mas muito diferente do que aqui podemos
adquirir. Causa grande espanto à alma ver como se atrevem, ou como alguém se pode atrever, a
ofender uma Majestade tão imensamente grande.
19. Algumas vezes terei dito estes efeitos de visões e outras coisas, mas já disse também que há
mais e menos aproveitamento; desta fica grandíssimo. Quando me aproximava para comungar eme
lembrava daquela Majestade grandíssima que tinha visto e via que era Ele que estava no Santíssimo
Sacramento (e muitas vezes quer o Senhor que O veja na Hóstia), os cabelos se me arrepiavam e
dir-se-ia que toda eu me aniquilava. Ó Senhor meu! se não encobrísseis assim a Vossa grandeza,
quem ousaria chegar a unir tantas vezes uma coisa tão suja e miserável com uma tão grande
Majestade? Bendito sejais; Senhor! Louvem-Vos os anjos e todas as criaturas, pois assim
acomodais as coisas à nossa fraqueza, para que, gozando de tão soberanas mercês, não nos espante
o Vosso grande poder, a ponto de que nem mesmo nós atrevêssemos a gozá-las, como gente fraca e
miserável.
20. Poderia acontecer-nos o mesmo que sucedeu a um lavrador, e isto eu sei de certeza que se
passou assim. Encontrou um tesouro e, como era maior do que cabia em seu ânimo, que era baixo,
ao ver-se com ele, deu-lhe uma tal tristeza que, pouco a pouco, veio a morrer de pura aflição e
cuidado de não saber o que lhe havia de fazer. Se ele não o tivesse achado assim todo junto, mas
pouco a pouco lho fossem dando e sustentando com ele, viveria mais contente do que sendo pobre,
e não lhe custaria a vida.
21. Ó Riqueza dos pobres! como sabeis admiravelmente sustentar as almas e, sem que vejam tão
grandes riquezas, pouco a pouco lhas ides mostrando!
E assim, quando eu vejo - desde então para cá - uma Majestade tão grande oculta em uma coisa tão
pequena como é uma Hóstia, não posso deixar de me admirar de tão grande sabedoria. Não sei
mesmo como o Senhor me dá ânimo e esforço para me chegar a Ele; porque se mo não desse, Ele
que me tem feito e ainda faz tão grandes mercês, nem seria possível eu poder dissimular a minha
admiração nem deixar de dizer em altas vozes tão grandes maravilhas. Que sentirá, pois, uma
miserável como eu, carregada de abominações e que com tão pouco temor de Deus tem gasto sua
vida, de se ver aproximar a este Senhor de tão grande majestade, quando Ele quer que minha alma
O veja? Como há de juntar uma boca que tantas palavras tem dito contra o mesmo Senhor, àquele
Corpo gloriosíssimo, cheio de pureza e piedade? O amor que mostra aquele rosto de tanta
formosura com uma tal ternura e afabilidade, magoa e aflige muito mais a alma, por não O ter
servido, do que lhe infunde temor a majestade que nele vê.
Mas, que poderia eu sentir das duas vezes que vi isto que adiante digo?
22. Certo é, Senhor meu e glória minha, que estou em dizer que, nestas grandes aflições que sente a
minha alma, eu tenho de certo modo feito alguma coisa em Vosso serviço. Ai! que já não sei o que
digo, pois quase já não sou eu a falar ao escrever isto! porque me acho perturbada e um tanto fora
de mim, por ter trazido de novo à memória estas coisas. Pudera bem dizer, Senhor meu, ter feito
alguma coisa por Vós, se este sentimento me viesse de mim; mas como não pode haver bom
pensamento se Vós não o dais, não há de que me agradecer: Eu sou a devedora, Senhor, e Vós o
ofendido.
23. Chegando-me eu uma vez para comungar, vi com os olhos da alma, mais claro que com os do
corpo, dois demônios de mui abominável figura. Parecia-me que, com seus chifres, cingiam a
garganta do pobre sacerdote. E na Hóstia que me ia dar, vi o meu Senhor, com a Majestade que
tenho dito, posto naquelas mãos, que bem sé Via serem ofensoras Suas. Entendi estar aquela alma
em pecado mortal.
Que seria, Senhor meu, ver Vossa formosura entre figuras tão abomináveis? Estavam eles como que
amedrontados e espantados diante de Vós, e julgo que de boa vontade fugiriam, se Vós os
deixásseis ir. Causou-me tão grande perturbação, que não sei como pude comungar e fiquei com
grande temor, parecendo-me que, se fora visão de Deus, não permitiria Sua Majestade que visse o
mal que estava naquela alma. Disse-me o mesmo Senhor que rogasse por ele, e que o havia
permitido para que eu entendesse a força que tinham as palavras da consagração, e como não deixa
Deus de estar ali, por mau que seja o sacerdote que as pronuncia, e para que visse a Sua grande
bondade, pondo-se naquelas mãos de Seu inimigo; e tudo para bem meu e de todos.
Entendi bem quanto mais obrigados estão os sacerdotes a ser bons do que outros, e que terrível
coisa é receber este Santíssimo Sacramento indignamente, e a que ponto o demônio é senhor da
alma que está em pecado mortal. Aproveitou-me isto muitíssimo e deu-me um grande conhecimento
do que devia a Deus. Seja bendito para sempre.
24. Outra vez aconteceu-me outra coisa que me espantou muitíssimo. Estava eu num lugar onde
morreu certa pessoa que tinha vivido muito mal, segundo soube, e muitos anos; mas havia dois que
estava enfermo e em algumas coisas parece que estava emendado. Morreu sem confissão, mas
apesar disto, não me parecia que se condenaria. Estando-se amortalhando o corpo, vi muitos
demônios pegarem naquele corpo, e dir-se-ia, que jogavam com ele e faziam também justiça nele, o
que me encheu de um grande pavor, pois com grandes garfos o passavam duns aos outros. Quando
o vi levar a enterrar com a honra e cerimónias que se dão a, todos, estava eu pensando em como a
bondade de Deus não queria que fosse difamada aquela alma, mas que ficasse encoberto o ela ser
Sua inimiga.
25. Estava eu meia tonta com o que tinha visto. Durante todo o Ofício não vi mais nenhum
demônio. Depois, quando deitaram o corpo na sepultura, era tanta a multidão deles que estavam
dentro para pegar nele, que eu estava fora de mim de o ver, e não era preciso pouco ânimo para o
dissimular. Considerava o que fariam daquela alma quando assim se assenhoreavam do triste corpo.
Prouvera ao Senhor que isto que eu vi - coisa tão espantosa! - vissem todos os que estão em mau
estado, pois me parece seria grande meio para os fazer viver bem.
Tudo isto me faz conhecer mais o que devo a Deus e do que me livrou. Andei muito temerosa até
que tratei disto com meu confessor, pensando se seria ilusão do demônio para difamar aquela alma,
ainda que não fosse tida por ser de muita cristandade. A verdade é que, embora não fosse ilusão,
sempre me causa temor quando me lembro.
26. Já que comecei a dizer visões de defuntos, quero dizer algumas coisas que, neste caso, o Senhor
tem sido servido que eu veja dalgumas almas. Direi poucas para abreviar e por não ser necessário,
digo, para nenhum aproveitamento.
Disseram-lhe que tinha morrido um Provincial que havia sido nosso (e quando morreu o era de
outra Província), com quem eu tinha tratado e era devedora de alguns favores. Era pessoa muito
virtuosa. Quando soube que tinha morrido, deu-me muita perturbação, porque temi pela sua
salvação, pois havia sido vinte anos prelado, coisa que, em verdade, eu temo muito, por me parecer
de muito perigo o ter encargo de almas. E, em muita aflição, fui para um oratório. Dei-lhe todo o
bem que tinha feito em minha vida, que seria bem pouco, e assim disse ao Senhor que suprissem
Seus méritos o que faltasse àquela alma para sair do Purgatório.
27. Estando eu a pedir ao Senhor o melhor que podia, pareceu-me que saía do centro da terra, a meu
lado direito, e vi-o subir ao Céu com grandíssima alegria. Ele era já bem velho, mas vi-o de idade
de trinta anos, e ainda menos me pareceu, e com grande resplendor no rosto. Passou mui
brevemente esta visão, mas fiquei em tanto extremo consolada, que nunca mais me pôde dar pena a
sua morte, ainda que visse aflitas muitas pessoas por ele, pois era muito benquisto. Era tanto o
consolo que tinha a minha alma, que nada se me dava, nem podia duvidar de que era boa a visão,
digo, que não era ilusão.
Não havia mais de quinze dias que tinha morrido. Contudo, não me descuidei de procurar que o
encomendassem a Deus e fazê-lo eu também, mas não o podia fazer com aquele empenho que teria
se não tivesse visto isto. Quando assim o Senhor me mostra alguma alma e depois eu a quero
encomendar a Sua Majestade, parece-me, sem mais estar em meu poder, que é como dar esmola a
rico. Soube depois - porque morreu bem longe daqui - a morte que o Senhor lhe deu, que foi de
tanta edificação que a todos deixou espantados do conhecimento e lágrimas e humildade corri que
morreu.
28. Tinha morrido, na casa, uma freira, grande serva de Deus, havia pouco mais de dia e meio.
Estando uma outra freira dizendo uma lição do Ofício de Defuntos, que por ela se rezava no coro,
eu estava de pé para com ela dizer o versículo. A meio da lição vi, me pareceu, que saía sua alma do
mesmo lugar que da visão anterior e que ia para o Céu. Esta não foi imaginária, como a anterior,
senão como outras que tenho dito; e destas não se duvida mais de que daquelas que se vêem.
29. Morreu também, na minha mesma casa, outra freira. Desde há dezoito ou vinte anos sempre
tinha sido enferma, e muito serva de Deus, amiga do coro e muito virtuosa. Certo é que pensei que
não entrara no Purgatório, porque eram muitas as enfermidades que tinha padecido, senão que lhe
sobrariam méritos. Estando rezando as Horas, antes que a enterrassem, haveria umas quatro horas
que morrera, entendi que saía do mesmo lugar e ia para o Céu.
30. Estando num colégio da Companhia de Jesus, com os grandes trabalhos que tinha e tenho
algumas vezes de alma e corpo, como já disse, estava de sorte que nem sequer um bom pensamento,
segundo me parece, podia admitir. Tinha morrido nessa noite um irmão daquela casa da
Companhia, e estando eu, conforme podia, encomendando-o a Deus e ouvindo missa de outro padre
da Companhia por ele, deu-me um grande recolhimento e vi-o subir ao Céu, com muita glória e o
Senhor ia com ele. Entendi que era particular favor de Sua Majestade.
31. Outro frade da nossa Ordem, muito bom religioso, estava muito mal. Estando eu à missa, veiome
um recolhimento e vi que tinha morrido e subia ao Céu sem passar pelo Purgatório. Morreu
naquela mesma hora em que o vi, segundo soube depois. Eu me espantei de não ter entrado no
Purgatório. Entendi que, por ter sido frade e ter guardado bem a sua profissão, lhe tinham
aproveitado as Bulas da Ordem para não entrar no Purgatório. Não sei por que entendi isto; pareceme
que deve ser porque não está o ser frade no hábito, quero dizer, em trazê-lo, para gozar do
estado de mais perfeição, mas em sê-lo.
32. Não quero dizer mais destas coisas; porque, como tenho dito, não há porquê, embora sejam
muitas as que o Senhor me tem feito mercê que veja. Mas, de todas as que tenho visto, não tenho
entendido deixar nenhuma alma de entrar no Purgatório se não a de este Padre e a de santo Frei
Pedro de Alcântara e a do Padre Dominicano de que falei. De alguns foi o Senhor servido que veja
os graus de glória que têm, representando-se-me os lugares em que estão. Ê grande a diferença que
há de uns a outros.
CAPÍTULO 39. Prossegue na mesma matéria das grandes mercês que lhe tem feito o Senhor e
como lhe prometeu favorecer as pessoas por quem ela lhe pedisse. Diz algumas coisas assinalados
nas quais Sua Majestade lhe tem feito este favor.
1. Estando uma vez importunando muito ao Senhor para que desse vista, a uma pessoa que a tinha
quase de todo perdida, e a quem eu devia, obrigações e por ela sentia grande dó, temia que, por
meus pecados, o Senhor não me ouvisse. Ele apareceu-me como de outras vezes e começou a
mostrar-me a chaga da mão esquerda, e com a outra arrancava um grande cravo que nela tinha
metido. Parecia-me que, ao arranca-lo, arrancava a carne. Via-se bem a grande dor que muito me
condoía, e disse-me, que não duvidasse de que, quem aquilo havia passado por mim, melhor faria o
que eu Lhe pedisse. Já sabia que nada Lhe pediria, senão o que fosse conforme à Sua glória, e assim
faria isto que agora pedia. Advertisse a que, mesmo quando não O servia, hão Lhe pedira coisa que
Ele não ma tivesse feito melhor de que eu a soubera pedir. Quanto mais o faria então agora que
sabia que O amava. Não duvidasse disto.
Não creio passassem oito dial que o Senhor não voltasse a dar vista àquela pessoa. Isto soube-o logo
o meu confessor. Bem pode ser que não fosse por minha oração, mas, como eu tinha tido esta visão,
ficou-me uma, certeza de que era por mercê feita a mim; dei graças a Sua Majestade.
2. Outra vez estava uma pessoa muito mal de uma enfermidade muito penosa que, por não saber de
que natureza, não a nomeio aqui. Era coisa incomportável o que padecia, havia já dois meses.
Estava num tormento que se despedaçava. Foi vê-Ia o meu confessor, que era o Reitor de quem
tenho falado, e causou-lhe grande lástima e disse-me que de todo o modo a fosse ver, pois era
pessoa a quem o podia fazer, por ser meu parente. Fui e comovi-me a ponto de ter tanta compaixão
dele, que comecei a pedir importunamente a sua saúde ao Senhor. Nisto vi claramente, sem me ficar
qualquer dúvida, a mercê que me fez; porque logo, no outro dia, estava de todo bom daquela dor.
3. Estava, uma vez, com grandíssimo pesar, porque sabia que uma pessoa, a quem eu devia muitas
obrigações, queria fazer uma coisa muito contra Deus e a sua própria honra, e estava já muito
determinada a isso. Era tanta a minha aflição que não sabia que fazer; remédio para que desistisse,
parecia já não haver. Supliquei a Deus, muito do coração, que lho desse, mas, enquanto o não via,
não se podia aliviar a minha pena.
Fui-me, nesta aflição, a uma ermida bem apartada, que as há neste mosteiro, e estando eu numa
onde está Cristo atado à coluna, suplicando-Lhe que me fizesse esta mercê, ouvi que me falava uma
voz muito suave, como envolta num silvo. Eu arrepiei-crie toda, pois me causou temor. Quisera eu
entender o que me dizia, mas não pude. Passou muito rapidamente. Passado o meu temor, que foi
breve, fiquei com um sossego e gozo e deleite interior, que me espantei, pois, só o ouvir uma voz
(que isto ouvi-o e com os ouvidos corporais, e sem entender palavra) produzisse tanto na alma. Por
isto, vi que se havia de fazer o que pedia, e assim foi que se me tirou de todo a pena em coisa que
ainda não era, tal como se já o visse feito, como foi depois. Disse-o a meus confessores, que tinha
então dois, bem letrados e servos de Deus.
4. Sabia que uma pessoa que se determinara a servir muito deveras a Deus e tido alguns dias oração,
na qual Sua Majestade lhe fazia muitas mercês, a tinha deixado por certas ocasiões bem perigosas
que teve, e das quais ainda não se apartara. A mim deu-me isto grandíssima pena, por ser pessoa a
quem eu queria e devia muito. Creio que foi mais de um mês que eu não fazia senão suplicar a Deus
que tornasse esta alma para Si.
Estando um dia em oração, vi um demônio ao pé de mim que, com muita raiva, fez em pedaços uns
papéis que tinha na mão. A mim deu-me, isto um grande consolo, pois me pareceu que se havia
feito o que eu pedia; assim foi, pois soube mais tarde que tinha feito uma confissão com grande
contrição e voltou tão deveras para Deus que, espero em Sua Majestade, há de ir sempre muito
adiante. Seja bendito por tudo. Amém.
5. Isto, de Nosso Senhor tirar almas de pecados graves por eu Lho suplicar, e trazer outras a mais
perfeição, acontece muitas vezes. Quanto a tirar almas do Purgatório e outras coisas assinaladas, são
tantas as mercês que o Senhor me tem feito, e muitas mais a favor da, saúde das almas que dos
corpos que seria cansar-me e cansar a quem as lesse, se as houvesse de dizer todas. Isto tem sido
coisa muito conhecida e há bastantes testemunhas. Logo, dava-me muito escrúpulo, porque não
podia deixar de crer que o Senhor o fazia por minha oração -deixemos o principal de ser só por Sua
bondade - mas são já tantas as coisas e tão vistas por outras pessoas, que não me dá pena crê-lo e
louvo a Sua Majestade. Fico porém confusa, porque vejo que sou mais devedora, e faz-me - a meu
parecer -, crescer o desejo de O servir e aviva-se o amor. E o que mais me espanta é que, quando o
Senhor vê que as coisas não convêm, eu não posso, embora queira, suplicar-Lhas, senão com tão
pouca força, espírito e cuidado que, por mais que eu me queira esforçar, é-me impossível fazê-lo
como em outras coisas que Sua Majestade há de fazer, que então vejo que Lhas posso pedir muitas
vezes e com grande importunação; embora eu não traga este cuidado, parece que mas fazem ter
presentes diante de mim.
6. É grande a diferença entre estas duas maneiras de pedir. Não sei como o declarar; porque umas
coisas, embora peça (pois não deixo de esforçar-me no suplicá-las ao Senhor, ainda que não sinta
em mim aquele fervor como em outras, e por muito que me digam respeito), é como quem tem
travada a língua que, embora queira falar, não pode e, mesmo que fale, é de modo que vê que não o
entendem; ou como quem fala claro e desembaraçadamente a quem vê que de boa vontade o está
ouvindo O primeiro, digamos agora, pede-se como em oração vocal; e o outro em contemplação tão
subida, que o Senhor se representa de maneira que se entende que Ele nos entende, e que Sua
Majestade Se alegra de que Lho peçamos e de nos fazer mercê.
Seja bendito para sempre, que tanto dá e tão pouco Lhe dou eu. Porque, que faz, Senhor meu, quem
de todo se não desfaz por Vós? E quanto, quanto, quanto - e outras mil vezes o posso dizer -, me
falta para isto! Por isso não havia de querer viver, ainda que haja outras causas, porque não vivo
conforme ao que Vos devo. Com quantas imperfeições me vejo! Com que frouxidão em servir-Vos!
É certo que, algumas vezes, me parece quereria estar sem sentir, para não entender tanto mal de
mim. Ele, que pode, que o remedeie!
7. Estando eu em casa daquela Senhora que já disse, tinha necessidade de andar com cuidado a
considerar sempre a vaidade que trazem consigo todas as coisas da vida, porque era muito estimada
e muito louvada e ofereciam-se-me assim muitas coisas a que bem me poderia apegar, se olhasse a
mim mesma; mas olhava Aquele que possui a verdadeira visão de tudo, a fim de não me deixar de
Sua mão...
8. Agora que falo de "verdadeira visão", lembro-me dos grandes trabalhos que passam (as pessoas a
quem Deus tem dado a conhecer o que é a verdade), em tratar nestas coisas da terra, onde ela tanto
se encobre, como o Senhor me disse uma vez. Que muitas coisas das que escrevo aqui não são de
minha cabeça, senão que mas dizia este meu Mestre celestial. E assim, nas coisas em que digo
assinaladamente: «isto entendi», ou «isto me disse o Senhor», faz-me grande escrúpulo pôr ou tirar
uma só sílaba que seja. Quando de tudo não me recordo bem exatamente, vai como coisa dita por
mim, ou porque também algumas o serão. Não chamo meu ao que é bom, pois já sei não há coisa
em mim que o seja, senão o que, tão sem eu o merecer, metem dado o Senhor; assim chamo «dito
por mim», o que não me foi dado a entender em revelação.
9. Mas, ai, Deus meu! e como até nas coisas espirituais queremos muitas vezes julgar as coisas pelo
nosso parecer e muito torcidas da verdade, tal como nas do mundo! E julgamos que havemos de
medir o nosso aproveitamento pelos anos que temos de algum exercício de oração e até parece que
queremos pôr limite Aquele que, sem medida alguma, dá os Seus dons quando quer, e pode dar em
meio ano mais a uma alma do que a outra em muitos! E isto é coisa tão vista por mim em muitas
pessoas, que eu me espanto como nos podemos deter nisto.
10. Creio bem que não cairá neste engano quem tiver talento de conhecer espíritos e lhe tenha dado
o Senhor humildade verdadeira. Este julga pelos efeitos e determinação e amor, e dá-lhe o Senhor
luz para que isto conheça. E nisto olha ao adiantamento e aproveitamento das almas, e não aos anos,
pois, em meio ano, pode: um ter alcançado mais de que outro em vinte; porque, como digo, dá o
Senhor a quem quer e ainda a quem melhor se dispõe. Porque vejo agora vir para esta casa umas
donzelas que são de pouca idade e, em tocando-as Deus e dando-lhes um pouco de luz e amor - digo
naquele pouco de tempo em que lhes fez algum regalo - não O fizeram esperar, nada se lhes pôs
diante, pois, sem se lembrarem do comer, se encerram para sempre em casa sem renda, como quem
não estima a vida senão por Aquele que sabem que lhes tem amor. Deixando tudo, não querem ter
vontade, nem se lembram do que se podem desgostar em tanto encerramento e austeridade. Todas
juntas se oferecem a Deus em sacrifício.
11. Quão de boa vontade lhes dou eu aqui a vantagem e devia andar envergonhada diante de Deus!
Porque o que Sua Majestade não acabou de conseguir de mim em tanta multidão de anos como os
que há desde que comecei a ter oração e Ele a fazer-me mercês, consegue delas em três meses - e
até com alguma em três dias -, com fazer-lhes muitas: menos de que a mim, embora bem lhes pague
Sua Majestade. Bem certo é, porém, que não estão descontentes pelo que têm feito por Ele.
12. Para isto quereria eu que nos recordássemos dos muitos anos, os que os temos de profissão e as
pessoas que os têm de oração, e não para afligir aos que, em pouco tempo, vão mais adiante,
fazendo-os voltar atrás, para que andem a nosso passo; e, aos que voam como águias, com as
mercês que Deus lhes faz, queremo-los fazer andar como frango, travado, mas ponhamos os olhos
em Sua Majestade, e se os virmos com humildade, é largar-lhes as rédeas, que o Senhor, que lhes
faz tantas mercês, não deixará que se despenhem. Eles entregam-se confiadamente a Deus, pois
para isto lhes aproveitam as verdades que conhecem da fé; e não os havemos nós de fiar a Ele,
senão que os queremos medir pela nossa medida, conforme aos nossos baixos ânimos? Não assim;
mas, se não alcançamos seus grandes efeitos e determinações, que sem experiência mal se podem
entender, humilhemo-nos e não os condenemos; porque, parecendo que olhamos ao seu proveito, o
tiramos a nós mesmos e perdemos esta ocasião que o Senhor nos proporciona para nos humilharmos
e vermos o que nos falta. Quanto mais desapegadas e unidas a Deus devem estar essas almas do que
as nossas, pois Sua Majestade tanto se chega a elas!
13. Não entendo outra coisa nem quereria entender, senão que oração de pouco tempo que produz
efeitos muito grandes que logo se percebem (pois é impossível deixar tudo só para contentar a
Deus, sem grande força de amor), mais a quisera eu do que a de muitos anos, em que a alma nunca
acabou por se determinar mais no último dia do que no primeiro, a fazer por Deus coisa que não
seja nada, a menos que umas coisitas miúdas como sal, que não têm peso nem tomo - que parece
um pássaro as levará no bico - as tenhamos por grande efeito e mortificação; é que fazemos caso de
certas coisas que fazemos pelo Senhor, que é lástima nos apercebamos delas, ainda que se fizessem
muitas.
Eu sou assim e a cada passo esquecerei as mercês. Não digo eu que Sua Majestade não as terá em
muito, porque é bom; mas quisera eu não fazer caso delas, nem ver que as faço, porquanto não são
nada. Mas perdoai-me, Senhor meu, e não me culpeis, pois com alguma coisa me hei de consolar,
visto que em nada Vos sirvo. Se em coisas grandes Vos servira, não faria caso das ninharias. Bemaventuradas
as pessoas que Vos servem com obras grandes! Se, o ter-lhes eu inveja e desejar imitálas
se me leva em conta, não ficarei muito atrás em contentar-Vos; mas não valho nada, Senhor
meu. Ponde Vós em mim o valor, pois tanto me amais.
14. Tendo chegado um destes dias um Breve de Roma, a fim de que este mosteiro não possa possuir
renda, acabou-se de todo a fundação que, me parece, custou algum trabalho. E aconteceu-me que,
estando eu consolada de o ver assim concluído e pensando nos trabalhos que tinha tido e louvando o
Senhor, que de algum modo se havia querido servir de mim, comecei a pensar em tudo quanto tinha
passado. Assim, em cada uma das coisas em que parecia eu ter feito algo, achava muitas faltas e
imperfeições e, às vezes, pouco ânimo e muito pouca fé. É que até agora, eu nunca acabava de crer
determinadamente que se havia de cumprir tudo quanto o Senhor me disse que se faria desta casa;
mas tão pouco o podia duvidar. Não sei como era isto. Por um lado, me parecia muitas vezes
impossível e, por outro, não podia duvidar, digo, crer que não se havia de fazer. Enfim, achei que
era o Senhor que, de Sua parte, tinha feito o bem, e o mal que era da minha. E assim deixei de
pensar nisso, e quisera não se me recordasse, para não tropeçar com tantas faltas minhas. Bendito
seja Ele que de todas tira o bem quando é servido. Amém.
15. Digo pois que é perigoso ir contando os anos que se têm tido de oração, porque, embora haja
humildade, penso que pode ficar um não sei quê de parecer que se merece alguma coisa pelos
serviços feitos. Eu não digo que não o merecem, e ser-lhes-á bem pago; mas qualquer pessoa
espiritual a quem parecer que, pelos muitos anos de oração, merece estes regalos de espírito, eu
tenho por certo que não subirá ao cume dele. Não é já muito que haja merecido que a tenha Deus de
Sua mão para não O ofender como fazia antes de ter oração, senão que Lhe ponha pleito pelos seus
dinheiros, como dizem? Não me parece isto profunda humildade. Bem pode ser que seja; mas eu
tenho-o por atrevimento, pois, apesar de ter pouca humildade, não me parece ter-me jamais atrevido
a isto. Bem pode ser que, como nunca O servi, nunca o tenha pedido; que porventura, se O tivesse
servido, quisera mais de que todos que o Senhor mo pagasse.
16. Não digo que a alma não vá crescendo e que Deus não lhe dará a paga se a sua oração tem sido
humilde; mas que se olvidem estes anos, pois tudo quanto podemos fazer é asco, em comparação de
uma gota de sangue que o Senhor por nós derramou. E se servindo-O mais, ficamos mais
devedores, que é isto que pedimos, pois se pagamos um maravedi da dívida, nos tornam a dar mil
ducados? Por amor de Deus, deixemos estes juízos, que são Seus. Estas comparações sempre são
más, ainda mesmo em coisas de cá de baixo. Que será, pois no que só Deus sabe, e isto mostrou-o
bem Sua Majestade quando pagou tanto aos últimos como aos primeiros?
17. Escrevi estas três folhas por tantas vezes e em tantos dias - porque tive e tenho, como disse,
pouco vagar - que me ia esquecendo do que comecei a dizer. Era esta visão.
Vi-me, estando em oração, sozinha num grande campo, e em redor de mim muita gente de modos
diversos que me cercava. Todos, me parece, tinham armas nas mãos para me agredir: uns, lanças;
outros, espadas; outros, adagas e outros, estoques muito compridos; enfim, eu não podia sair por
nenhum lado sem me pôr em perigo de morte, e só, sem ninguém que se achasse do meu lado.
Estando meu espírito nesta aflição, que não sabia que fazer de mim, levantei os olhos ao Céu e vi
Cristo, não no Céu, mas bem por cima de mim, no ar, e me estendia a mão e de ali mesmo me
favorecia, de maneira que eu não temia toda aquela outra gente; nem eles, embora quisessem, me
podiam fazer dano.
18. Parece sem fruto esta visão, e tem-me feito grandíssimo proveito, porque deu-se-me a entender
o que significava. Pouco depois, vi-me quase metida naquela bateria e conheci ser aquela visão uma
imagem do mundo, onde, tudo quanto nele há, parece que tem armas para ofender a triste alma.
Deixemos os que não servem muito ao Senhor, e as honras e fazendas e deleites e outras coisas
semelhantes, que, claro está, enredam ou, pelo menos, procuram enredar a alma quando ela se não
precata; mas falo de amigos, parentes e, o que mais me espanta, de pessoas muito boas. De todos
estes me vi depois tão atormentada, pensando eles que faziam bem, que eu nem sabia como
defender-me, nem que fazer.
19. Oh! Valha-me Deus! Se dissesse as maneiras e diferenças de trabalhos que neste tempo tive,
ainda depois do que atrás fica dito, como seria bom aviso para de todo a tudo aborrecer!
Foi, julgo eu, a maior perseguição de quantas tenho passado! Digo que me vi por vezes tão
perseguida de todas ás partes, que só encontrava remédio em erguer os olhos ao Céu e chamar por
Deus. Recordava-me bem do que tinha visto nesta visão. Serviu-me isto grandemente para não
confiar muito em ninguém, porque não há quem seja estável senão Deus. Sempre, nestes grandes
trabalhos, tal como se me mostrara nesta visão, me enviava o Senhor uma pessoa da Sua parte, que
me desse a mão, sem outro intento senão o de agradar ao Senhor. E assim tem sido para me ajudar a
sustentar este pouquito de virtude que eu tinha em desejar servir-Vos. Sede bendito para sempre!
20. Estava uma vez muito inquieta e alvorotada, sem me poder recolher, numa batalha e contenda e
fugindo-me o pensamento para coisas que não eram perfeitas; até me parece que não estava com o
desapego que costumo ter. Ao ver-me assim tão ruim, tive medo que as mercês que o Senhor me
tinha feito fossem ilusões. Enfim, numa grande escuridão de alma. Estando eu com esta pena,
começou-me a falar o Senhor, e disse-me que não me afligisse; em ver-me assim, compreenderia a
miséria que eu seria, se Ele se apartasse de mim e que não há segurança enquanto vivemos nesta
carne. Deu-se-me a entender quão bem empregada é esta guerra e contenda em vista de tal prêmio,
e pareceu-me que o Senhor tinha lástima dos que vivemos no mundo. Que não pensasse eu que Ele
me trazia esquecida; jamais, me deixaria, mas que era preciso fazer eu o que estivesse na minha
mão. Isto me disse o Senhor com uma compaixão e ternura, e com outras palavras em que me fez
grande mercê, que não há para que dizê-las.
21. Sua Majestade tem-me dito muitas vezes estas palavras, mostrais-, do-me grande amor: Já és
minha e Eu sou teu.
As que eu sempre Lhe costumo dizer, e segundo me parece as digo com verdade, são estas: Que se
me dá a mim, Senhor, de mim, senão de Vós? São para mim estas palavras e regalos de tão
grandíssima confusão quando me lembro a que sou, que, como creio já ter dito outras vezes e agora
o digo algumas a meu confessor, é preciso mais ânimo, me parece, para receber estas mercês, do
que para passar grandíssimos trabalhos. Quando isto se dá, estou quase esquecida das minhas obras,
mas é um representar-se-me que sou ruim, sem discurso do entendimento, que também por vezes
me parece sobrenatural.
22. Vêm-me algumas vezes umas ânsias tão grandes de comungar, que não sei se se poderiam
encarecer. Aconteceu-me uma manhã que chovia tanto, que parecia não estar o tempo de modo a se
poder sair de casa. Estando eu fora dela, já estava tão fora de mim com aquele desejo, que, ainda
que me pusessem lanças ao peito, me parece romperia por entre elas, quanto mais por água. Quando
cheguei à Igreja, deu-me um grande arroubamento. Pareceu-me que vi abrirem-se os céus, e não
apenas uma entrada como de outras vezes tenho visto. Representou-se-me o trono que tenho visto
outras vezes, como já disse a V. Mercê e outro acima dele, no qual, por um conhecimento que não
sei dizer, entendi estar ali a Divindade, embora nada visse. Parecia-me o sustentavam uns animais;
creio ter já ouvido a significação destes animais. Pensei se seriam os Evangelistas. Mas, como era o
trono e quem estava nele, isto não vi, senão uma muito grande multidão de anjos. Pareceram-me,
sem comparação, de muito maior formosura que os que tenho visto no Céu. Tenho pensado se serão
serafins ou querubins, porque são muito diferentes na glória. Pareciam estar inflamados. É grande a
diferença entre eles, como tenho dito. A glória que então em mim senti não se pode descrever nem
ainda dizer, nem a poderá imaginar quem não houver passado por isto.
Entendi estar ali, por junto, tudo quanto se pode desejar, e não vi nada. Disseram-me, e não sei
quem, que o que eu ali podia fazer era entender que não podia entender nada, é ver o nada que era
tudo em comparação daquilo. E assim, a minha alma envergonhava-se depois só de pensar que se
poderia deter em alguma coisa criada, quanto mais de se afeiçoar a clã, porque tudo me parecia um
formigueiro.
23. Comunguei e estive na missa, que não sei como pude estar. Pareceu-me ter decorrido apenas
uns breves instantes. Espantei-me quando o relógio deu horas e vi que eram duas as que eu tinha
passado naquele arroubamento e glória. Espantava-me depois, como, em vindo este fogo de
verdadeiro amor de Deus, que dir-se-ia vir do alto - pois por mais que eu queira e procure e me
desfaça por ele, a não ser quando Sua Majestade o quer dar, como de outras vezes já tenho dito,
nada sou nem posso para conseguir sequer uma centelha -, parece que consome o homem velho nas
suas faltas, tibiezas e miséria. E, à maneira do que sucede à ave fênix, que - segundo tenho lido -,
depois que se queima renasce das próprias cinzas, assim a alma fica depois outra, com desejos
diferentes e grande fortaleza. Não parece ser a mesma de antes; mas começa, com pureza nova, o
caminho do Senhor.
Suplicando eu a Sua Majestade que assim fosse e de novo começasse eu a servi-Lo, disse-me: Boa
comparação fizeste; olha a que te não esqueça para procurares ir sempre melhorando.
24. Estando uma vez com a mesma dúvida de que há pouco falei, se estas visões eram de. Deus,
apareceu-me o Senhor e me disse com rigor: Oh! filhos dos homens, até quando sereis duros de
coração? Que examinasse bem em mim uma coisa: se eu, de todo me tinha entregado a Ele ou não;
se assim tinha feito e de todo era Sua, acreditasse que Ele não me deixaria perder.
Eu afligi-me muito com aquela exclamação. Com grande ternura e carinho tornou-me a dizer que
não me afligisse, pois já sabia que eu, por mim, não deixaria de me entregar a tudo quanto fosse em
serviço Seu; que se havia de fazer tudo o que eu queria (e assim foi que se fez o que então Lhe
suplicava); visse o amor que, de dia para dia, se ia aumentando em, mim para O amar, que nisto
conheceria não ser obra do demônio. Nem pensasse que Ele consentia que o demônio tivesse tanta
entrada nas almas de Seus servos e pudesse dar a claridade de entendimento e quietude que tu tens.
E deu-me ainda a entender que, tendo-me dito tantas e tais pessoas, que era Deus, que faria mal em
não o acreditar. .
25. Estando uma vez rezando o salmo «Quicumque vult», deu-se-me a entender a maneira pela qual
Deus é um só em três Pessoas tão claramente,. que eu me espantei e consolei-me muito. Fez-me
grandíssimo proveito para conhecer mais a grandeza de Deus e as Suas maravilhas e, quando penso
ou ouço tratar da Santíssima Trindade, parece-me que entendo como pode, ser, e é para mim de
muito contentamento.
26. Em dia da Assunção da Rainha dos Anjos e Senhora nossa, quis o Senhor fazer-me esta mercê:
num arroubamento representou-se-me a Sua subida ao Céu e a alegria e solenidade com que foi
recebida e o lugar onde está. Dizer como foi isto, eu não saberia. Foi grandíssimo o deleite que o
meu espírito teve de ver tanta glória. Causou isto em mim grandes efeitos e tirei de proveito ficar
com mais e maiores desejos de passar grandes trabalhos e de servir a esta Senhora, pois tanto
mereceu.
27. Estando num colégio da Companhia de Jesus, e estando a comungar os irmãos daquela casa, vi
um pálio muito rico sobre suas cabeças; isto vi por duas vezes. Quando outras pessoas comungavam
não o via.
CAPÍTULO 40. Prossegue na mesma matéria dizendo as grandes mercês que o Senhor lhe fez.
Dalgumas delas se pode tirar muito boa doutrina. Conforme tem dito, o seu principal intento,
depois de obedecer, tem sido de escrever as mercês que são para proveito das almas. Com este
capítulo acaba a narração que escreveu da sua vida. Seja para glória do Senhor.
1. Estando uma vez em oração, era tanto o deleite que em mim senti que, como indigna de tal bem,
comecei a pensar que muito mais merecia estar naquele lugar que eu tinha visto preparado no
inferno para mim, pois, como tenho dito, nunca esqueço o modo como ali me vi.
Com esta consideração, começou a inflamar-se mais a minha alma e veio-me um arrebatamento. de
espírito, de modo que o não sei dizer. Pareceu-me que o meu espírito estava metido e cheio daquela
Majestade que tenho entendido de outras vezes. Nesta Majestade deu-se-me a entender uma verdade
que é complemento de todas as verdades; mas não sei dizer como, porque nada vi?
Disseram-me, sem ver quem tinha sido, mas bem entendi ser a mesma Verdade: Não é pouco isto
que faço por ti; é uma das coisas em que muito me deves; porque todo o dano que vem ao mundo é
de não se conhecerem as verdades da Escritura com clara verdade, da qual não ficará um til por
cumprir.
Pareceu-me, a mim, que nisto sempre eu tinha acreditado e que todos os fiéis o crêem. Disse-me
porém: Ai, filha, quão poucos me amam com verdade. Se Me amassem, não lhes encobriria eu meus
segredos. Sabes o que é amar-Me com verdade? É compreender que. tudo quanto Me não é
agradável a Mim é mentira, Com clareza verás isto que agora não entendes, pelo fruto que sentires
em tua alma.
2. E assim o tenho visto, seja o Senhor louvado, que então para cá, parece-me tanta vaidade e
mentira tudo o que eu vejo que não vai dirigido ao serviço de Deus, que eu não saberia dizer até que
ponto o entendo, e a lástima que me fazem os que vejo em trevas a respeito desta verdade. Com isto
vieram-me outros lucros que agora direi, ainda que muitos não saberei dizer. Disse-me aqui o
Senhor uma particular palavra de grandíssimo favor.' Eu não sei como isto foi, porque nada vi; mas
fiquei de sorte que tão pouco sei dizer, com uma grandíssima fortaleza, e isto muito deveras, para
cumprir com todas as minhas forças a mais pequena parcela da Escritura divina. Parece-me que
nenhuma coisa se me poria diante que eu não padecesse por isto.
3. Desta divina Verdade .que se me representou, sem saber como nem quê, ficou-me impressa uma
verdade que me faz ter um novo acatamento a Deus, porque dá um conhecimento de Sua Majestade
e do Seu poder e isto de uma maneira que não se pode dizer. Sei somente entender que é grande
coisa um tal dom.
Ficou-me uma grandíssima vontade de não falar senão em coisas muito verdadeiras que estejam
acima do trato que se usa aqui no mundo; e assim comecei a ter pena de viver nele. Deixou-me esta
mercê com grande ternura, deleite e humildade. Parece-me, sem entender como, que o Senhor me
deu aqui muito. Não me ficou suspeita alguma de que fosse ilusão.
Nada vi, mas compreendi o grande bem que há em não fazer caso de coisa que não seja para nos
achegarmos mais a Deus, e assim entendi o que é andar uma alma na verdade diante da mesma
Verdade. Isto, que entendi, é dar-me o Senhor a entender que Ele é a mesma Verdade.
4. Compreendi tudo isto que tenho dito, falando-me Ele algumas vezes, e outras sem me falar,
deram-se-me a entender algumas com mais claridade do que as que se me diziam por palavras.
Aprendi grandíssimas verdades sobre esta Verdade, até mais do que se muitos letrados mo tivessem
ensinado. Parece-me que de nenhum modo eles mo poderiam imprimir assim no espírito, nem tão
claramente se me daria a entender a vaidade deste mundo.
Esta Verdade, que digo se me deu a entender, é em si mesma verdade e não tem princípio nem fim,
e todas as demais verdades dependem desta Verdade, como todos os demais amores deste Amor e
todas as demais grandezas desta Grandeza. Isto vai, no entanto, obscuro em comparação da
claridade com que o Senhor quis que se me desse a entender. E como resplandece o poder desta
Majestade, pois em tão breve tempo deixa tão grande lucro e tais coisas impressas na alma!
Oh! Grandeza e Majestade minha! Que fazeis, Senhor meu Todo-poderoso? Vede a quem fazeis tão
soberanas mercês! Não Vos recordais que esta alma foi um abismo de mentiras e um pélago de
vaidades, e tudo por minha culpa; e apesar de me terdes dado por natureza de aborrecer o mentir, eu
mesma me forcei a tratar em muitas coisas com mentira? Como se sofre, Deus meu, como se
compadece tão grande favor e mercê com quem tão mal vo-Lo tem merecido?
5. Estando uma vez nas Horas com todas as irmãs, de pronto se recolheu minha alma, e pareceu-me
ser toda ela como um claro espelho. Não havia costas, nem lados, nem alto, nem baixo que não
fosse tudo claridade; e no centro dela se me representou Cristo Nosso Senhor, como O costumo ver.
Parecia-me que em todas as partes da minha alma O via tão clara- mente como num espelho, e esse
espelho - não sei dizer como - também se esculpia todo no mesmo Senhor por uma comunicação
muito amorosa que eu não saberei explicar.
Sei que esta visão me serve de grande proveito de cada vez que dela me recordo, em especial
quando acabo de comungar: Deu-se-me a entender que, estar uma alma em pecado mortal, é cobrirse
este espelho de densa névoa e ficar muito negro, e assim nele não se pode refletir, nem ver este
Senhor, embora esteja sempre presente dando-nos o ser. Com os hereges é como se o espelho,
estivesse quebrado, o que é muito pior que obscurecido. É muito diferente, o como se vê, do como
se diz, porque mal se pode dar a entender. Mas tem-me feito muito proveito e grande pesar das
vezes que, com minhas culpas, obscureci a minha alma de modo, a não ver este Senhor.
6. Parece-me proveitosa esta visão às pessoas que, se dão ao recolhimento, para as ensinar a
considerar o Senhor no mais íntimo da sua alma. Esta consideração prende mais e é muito mais
frutuosa do que considera-1'O fora de si, como de outras vezes tenho dito. Nalguns livros de oração
está escrito que é onde se há de buscar a Deus; em especial o diz o glorioso Santo Agostinho, que
nem nas praças nem nos conventos, nem em parte alguma onde O buscava, O encontrava, como
dentro de si. E isto é claramente o melhor, pois não é necessário ir ao Céu, nem procurar mais longe
nem fora de nós mesmos; porque é cansar o espírito e distrair a alma, e não com tanto fruto.
7. Uma coisa quero advertir aqui, para se alguém a tiver, que acontece nos grandes arroubamentos..
Passado aquele momento em que a alma está em união (que tem as potências totalmente absortas, e
isto dura pouco como tenho dito), acontece ficar a alma recolhida e até sem poder voltar a si no
exterior, mas as duas potências, memória e entendimento, ficam quase com frenesim, muito
desatinadas. Isto, digo, acontece algumas vezes, especialmente nos princípios. Penso que isto
procede de não poder sofrer a nossa fraqueza natural tanta força de espírito e enfraquece a
imaginação. Sei que isto sucede a algumas pessoas. Parecer-me-ia bom que se esforçassem a deixar,
por então, a oração e a tivessem em outra altura, recuperando assim aquele tempo de oração que
perdem, mas que não seja por junto, porque daí poderá advir muito mal. Disto há experiência e de
quão acertado é olhar ao que pode a nossa saúde.
8. Em tudo é preciso experiência e mestre porque, chegada a alma a estes termos, oferecer-se-ão
muitas coisas em que é mister ter com quem o tratar. E, se buscando mestre não o achar, o Senhor
não lhe faltará, pois não me faltou a mim sendo eu a que sou. Porque creio haver poucos que
tenham chegado a ter experiência de tantas coisas; e se não a têm, debalde dão remédio à alma sem
a inquietar e afligir. Mas isto também tomará o Senhor em conta, e assim o melhor é tratá-lo (como
já tenho dito de outras vezes, e, até mesmo tudo quanto agora digo, que não me lembro bem se já o
disse porquanto, vejo que importa muito), em especial se são mulheres que tratem estas coisas com
o confessor. E há muitas mais mulheres de que homens a quem o Senhor faz estas mercês, e isto
ouvi ao santo Frei Pedro de Alcântara (e também o tenho visto eu) que dizia que, neste caminho,
aproveitavam elas muito mais que os homens, e dava disto excelentes razões, que não há para que
dizê-las aqui, todas em favor das mulheres.
9. Estando uma vez em oração, representou-se-me muito brevemente (sem ver coisa alguma
formada, mas foi representação feita com toda a clareza) como se vêem em Deus todas as coisas e
como Ele as contém todas em Si. Saber escrever como isto foi, eu não sei, mas ficou muito
impresso na minha alma, e é uma das grandes mercês que o Senhor metem feito e das que mais me
fizeram confundir e envergonhar, recordando-me os pecados que cometi.
Creio que, se o Senhor fosse servido de que eu visse isto noutros tempos, e que o vissem os que O
ofendem, não teriam coração nem atrevimento para o fazer. Pareceu-me [ter, visto o que, segue]
sem eu poder, no entanto, afirmar que vi alguma coisa; digo-o desde já. Qualquer coisa sé deve ver
porém, pois eu poderei dar esta comparação; mas é por modo tão subtil e delicado, que o
entendimento não o deve alcançar, ou será que eu não me sei entender nestas visões, que não
parecem imaginárias, e em algumas, alguma coisa de imagem deve haver. Mas, como é estando a
alma em arroubamento, as potências não o sabem depois reproduzir como ali: o Senhor lho
representa e quer que o gozem.
10. Digamos, pois, que a Divindade é como um muito claro diamante, muito maior que todo o
mundo, ou como um espelho - conforme disse da alma na outra visão, à exceção de ser por um
modo tão sublime; que eu não o saberei encarecer - e que tudo o que fazemos se vê neste diamante,
sendo ele de maneira que encerra tudo em si, porque não há nada que saia fora desta grandeza.
Coisa espantosa foi para mim ver, em tão breve espaço, tantas coisas juntas neste claro diamante, e
lastimosíssima coisa é, cada vez que me recordo, ver que coisas tão feias; como eram meus
pecados, se refletiam naquela límpida claridade. E assim é que, quando me recordo, não sei como o
posso suportar, e fiquei então tão envergonhada que me parece não sabia onde me meter.
Oh! quem pudesse dar isto a entender aos que muito desonestos è feios pecados fazem, para que se
lembrem que não são ocultos e que, com razão, os sente Deus, e pois tão em presença de Sua
Majestade eles se fazem, e tão desacatadamente nos havemos diante d'Ele!
Vi com quanta razão se merece o inferno por um só pecado mortal; porque não se pode entender
quão gravíssima coisa é cometê-lo diante de tão grande Majestade, e como são alheias, a quem Ele
é, coisas semelhantes. E assim se vê mais a Sua misericórdia, pois conhecendo nós tudo isto, Ele
nos sofre.
11. Isto tem-me feito considerar que, se uma visão como esta assim deixa espantada a alma, o que
será o dia do juízo, quando esta Majestade claramente se nos mostrar e virmos as ofensas que Lhe
temos feito? Oh! Valha-me Deus, que cegueira, esta que eu .tenho trazido! Muitas vezes me tenho
espantado disto que tenho escrito, e não se espante V Mercê, senão de como ainda vivo vendo estas
coisas e vendo-me a mim. Seja bendito para sempre Quem tanto me tem sofrido.
12. Estando uma vez em oração com muito recolhimento, suavidade e quietude, parecia-me estar
rodeada de anjos e muito perto de Deus. Comecei a suplicar a Sua Majestade pela Igreja. Deu-se-me
a entender o grande proveito que, nos últimos tempos, há de fazer uma Ordem e a fortaleza com que
seus filhos hão de sustentar a Fé.
13. Estando uma vez rezando perto do Santíssimo Sacramento, apareceu-me um Santo cuja Ordem
tem estado um tanto decaída: Tinha nas mãos um grande livro, abriu-o e disse-me que lesse umas
letras, que eram grandes e muito legíveis e diziam assim: Nos tempos vindouros florescerá esta
Ordem; haverá muitos mártires.
14. Outra vez, estando no Coro em Matínas, representaram-se-me e se puseram diante dos olhos
seis ou sete religiosos que me parece seriam desta mesma Ordem; com espadas na mão. Penso que
nisto se dá a entender que hão de defender a Fé; porque, de outra vez, estando em oração, se me
arrebatou o espírito e pareceu-me estar num grande campo onde muitos combatiam, e estes, os desta
Ordem, pelejavam com grande fervor. Tinham os rostos formosos e abrasados e deitavam muitos
por terra, vencidos, e a outros matavam. Parecia-me que esta batalha era contra os hereges.
15. A este glorioso Santo tenho visto algumas vezes, e tem-me dito algumas coisas, e agradecido a
oração que faço pela sua Ordem e prometido de me encomendar ao Senhor. Não declaro as Ordens,
para que não se agravem outras; se o Senhor for servido que se saiba, Ele o declarará. Mas cada
Ordem, ou cada membro de per si, havia de procurar que, por seu meio fizesse o Senhor tão ditosa a
sua Ordem que, em tão grande necessidade, como agora tem a Igreja, a servissem. Ditosas vidas que
nisto se acabarem!
16. Pediu-me, uma vez, uma pessoa, que suplicasse eu a Deus lhe desse a entender se seria do Seu
serviço aceitar um bispado. Disse-me o Senhor, acabando eu de comungar: Quando entender com
toda a verdade e clareza que o verdadeiro senhorio é não possuir coisa alguma, então o poderá
aceitar, dando a entender que, quem tiver de ter prelazias, há de estar muito longe de as desejar e
querer, ou, pelo menos, não as há de procurar.
17. Estas mercês e outras muitas tem feito o Senhor e faz mui de contínuo a esta pecadora que,
parece-me, não há necessidade de as dizer, pois pelo já dito se pode conhecer minha alma e o
espírito que o Senhor me tem dado. Seja bendito para sempre, que tanto cuidado tem tido de mim!
18. Disse-me Ele uma vez, consolando-me com muito amor, que não me afligisse, pois nesta vida
não podíamos estar sempre num mesmo estado. Umas vezes teria fervor e outras vezes estaria sem
ele; umas com desassossego e outras com quietude e tentações, mas que esperasse n'Ele e não
temesse.
19. Estava eu um dia pensando se seria apego o gostar de estar com as pessoas com quem trato da
minha alma e ter-lhes amor, e aos que vejo muito servos de Deus, pois me consolava com eles.
Disse-me o Senhor que, se a um enfermo, que está em perigo de morte, julga que lhe dá saúde um
médico, não é virtude deixar de lhe agradecer e de não lhe ter amizade. Que teria eu feito se não
fosse pela ajuda destas pessoas? A conversação dos bons não danifica, mas que as minhas palavras
fossem sempre pesadas e santas, e não deixasse de tratar com eles, pois antes me seria de proveito
que dano. Consolou-me isto muito, porque algumas vezes parecendo-me apego, quereria não os
tratar de todo. Sempre, em todas as coisas, me aconselhava este Senhor, até dizer-me como me
havia de haver com os fracos e com algumas pessoas. Jamais se descuida de mim.
20. Algumas vezes estou aflita de me ver de tão pouco préstimo em Seu serviço e de ver que, por
força, hei de ocupar mais tempo do que queria, com corpo tão fraco e ruim como é o meu. Estava eu
uma vez em oração e chegou a hora de ir dormir. Estava com muitas dores, esperava pelo vômito do
costume. Como me vi tão atada por mim mesma e o espírito, por outra parte, querendo tempo para
si, vi-me tão atribulada, que comecei a chorar muito e a afligir-me.
Isto não foi só uma vez, mas muitas - como digo - que me dava, me parece, uma tal zanga contra
mim mesma, que então me aborreço em forma. Mas o normal é entender de mim que não tenho
aborrecimento nem falto ao que vejo me é necessário. E praza ao Senhor que não tome muito mais
do que é preciso, que é o que eu farei.
Desta vez que digo, estando nesta pena, me apareceu o Senhor e me consolou muito e me disse que
fizesse eu estas coisas por amor d'Ele e passasse por elas, pois a minha vida era agora necessária. E
assim me parece que nunca me vi em pena, depois que estou determinada a servir com todas as
minhas forças a este Senhor e Consolador meu, que, embora me deixasse padecer um pouco, não
me consolasse, de maneira que não faço nada em desejar trabalhos.
E assim, agora me parece que não tenho razão para viver senão para isto. E é o que de melhor
vontade peço a Deus, e digo-Lhe, algumas vezes, com toda ela: Senhor, ou morrer ou padecer; não
Vos peço outra coisa para mim. Dá-me consolo ouvir o relógio, porque me parece que isso me
aproxima um pouquito mais de ver a Deus, pois vejo já passada aquela hora da vida.
21. Outras vezes estou de modo que nem me sinto viver, nem me parece ter vontade de morrer. Mas
estou com uma tibieza e escuridão em tudo, como disse, que tenho muitas vezes, por causa de
grandes trabalhos. E tendo o Senhor querido que se saibam em público estas mercês que Sua
Majestade me faz, como me disse há alguns anos, que haviam de ser, isto me afligiu muito e até
agora não tenho padecido pouco, como V. Mercê sabe, porque cada um o toma como lhe parece.
Consolação me tem sido, todavia, o não ser por minha culpa; porque, em não o dizer senão a meus
confessores ou a pessoas que eu sabia por eles que o sabiam, tenho tido grande e extremo cuidado.
Não por humildade; senão porque, como tenho dito, até aos mesmos confessores me dava pesar
dizê-lo.
Agora, graças a Deus, embora muito de mim murmurem com bom zelo, outros temam tratar
comigo, mesmo confessar-me, e outros me digam muitas coisas, como vejo que por este meio quis
o Senhor dar remédio a muitas almas (porque isto tenho eu visto claramente, e me recordo do muito
que por uma só passaria o Senhor) muito pouco se me dá de tudo dó que de mim dizem.
Não sei se para isto contribuiu o ter-me Sua Majestade metido neste rincãozito tão encerrado e onde
já pensei que, como de coisa morta, não haveria mais memória de mim. Mas não tem sido tanto
como eu quisera; pois forçoso é ter de falar com algumas pessoas; porém, como estou onde me não
vêem, parece que foi o Senhor servido de me trazer a um porto, que espero em Sua Majestade, será
seguro.
[22]. Por estar já fora do mundo, e entre pouca e santa companhia olho como de alto e já bem pouco
se me dá do que,digam ou se saiba. Em mais teria eu, se uma alma aproveitasse um pouquito, do
que tudo quanto de mim se possa dizer. Depois que estou aqui, tem o Senhor sido servido que todos
os meus desejos parem nisto. E tem-me dado como que uma espécie de sono na vida, que quase
sempre me parece que estou sonhando o que vejo. Nem contentamento, nem pena, que seja muita,
vejo em mim. Se algumas coisas me dão alguma pena, passa com tanta brevidade que, eu me
maravilho e o sentimento que deixa é como uma coisa que se sonhou.
E isto é pura verdade, porque, embora eu depois me queira alegrar com aquele contento, ou ter
pesar daquela pena, não está na minha mão; assim como não estaria na de uma pessoa discreta o ter
pesar ou glória dum sonho que sonhou. É que o Senhor já despertou a minha alma daquilo que, por
eu não estar mortificada e morta às coisas do mundo, me tinha feito sentimento, e Sua Majestade
não quer que ela se torne a cegar.
23. Desta maneira vivo agora, Senhor e Padre meu. Suplique V. Mercê a Deus que me leve para Si
ou me dê em que O sirva. Praza à Sua Majestade que isto que aqui vai escrito faça algum proveito a
V. Mercê, pois, pelo pouco tempo que tenho, foi feito com trabalho. Mas ditoso trabalho, se acertei
a dizer alguma coisa pela qual uma vez se louve o Senhor; que com isto me daria por paga, embora
V. Mercê logo o queime.
24. Não quereria, no entanto, que o fizesse sem que isto vissem as três pessoas que V. Mercê sabe,
pois são e têm sido confessores meus. E se isto vai mal, é bem que percam a boa opinião que têm de
mim. Se vai bem, são bons e letrados; sei que verão de onde me vem è louvarão a Quem por mim o
disse.
Sua Majestade tenha sempre a V. Mercê de Sua mão e o faça um tão grande santo que, com sua luz
e espírito, alumie esta miserável, pouco humilde e muito atrevida, que ousou determinar-se a
escrever coisas tão subidas. Praza ao Senhor não tenha eu nisto errado, tendo intenção e desejo de
acertar e obedecer e que, por meu intermédio, se louvasse em alguma coisa ao Senhor, que é o que
há muitos anos Lhe suplico. E, como me faltam para isto as obras, atrevi-me a pôr aqui por ordem
esta minha desbaratada vida, embora não tenha empregado nisto mais cuidado, nem mais tempo do
que tem sido preciso para escrevê-la, pondo apenas o que por mim tem passado com toda a lisura è
verdade que tenho podido.
Praza ao Senhor, pois é poderoso e, se quer, pode, querer que em tudo eu acerte a fazer a Sua
vontade, e não permita Sua Majestade se perca esta alma que, com tantos artifícios e maneiras, e
tantas vezes, tem tirado do inferno e trazido a Si. Amém.
J. H. S. Carta epílogo remetendo a «Vida».
1. O Espírito Santo seja sempre com V Mercê. Amém.
Não seria mau encarecer a V. Mercê este serviço para o obrigar a ter muito cuidado de me
encomendar a Nosso. Senhor, pois segundo o que tenho passado em me ver descrita e trazer à
memória tantas misérias, bem o poderia fazer; embora com verdade possa dizer que tenho sentido
mais em escrever as mercês que o Senhor metem feito, do que as ofensas que eu fiz a Sua
Majestade.
2. Eu fiz o que V Mercê me mandou em alongar-me, com a condição de que V Mercê faça o que
prometeu de rasgar o que lhe parecer mal. Não tinha acabado de o ler, depois de escrito, quando V
Mercê o manda buscar. Pode ser que algumas coisas vão mal declaradas e outras ditas duas vezes;
porque tem sido tão pouco o tempo que tenho tido, que nem podia voltar a ver o que escrevia.
Suplico a V. Mercê que o emende e mande copiar, se o tiver de mandar ao P Mestre Ávila, porque
poderá ser que alguém conhecesse a letra? Eu desejo muito que se faça de modo a que ele o veja,
pois com esse intento o comecei a escrever; porque, se a ele lhe parece que vou por bom caminho,
ficarei muito consolada, pois já nada mais, me fica para fazer da minha parte.. Em tudo faça V.
Mercê como lhe parecer e vê que está obrigado a quem assim lhe confia a sua alma.
3. A de V Mercê encomendarei eu toda a minha vida a Nosso Senhor. Por isso, dê-se pressa a servir
a Sua Majestade para me fazer a mim mercê, pois V. Mercê verá, pelo que aqui vai, quão bem se
emprega a vida em dar-se tudo, como V. Mercê o tem começado a fazer, a Quem tão sem medida se
nos dá.
Seja Ele bendito para sempre, que eu espero em Sua misericórdia nos veremos onde V. Mercê e eu
mais claramente vejamos as grandezas que fez conosco e para sempre jamais O louvaremos. Amém.
Acabou-se este livro em Junho, do ano de 1562.

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