segunda-feira, 28 de maio de 2012

LIVRO DAS MORADAS OU CASTELO INTERIOR - Santa Teresa de Jesus


Este tratado, chamado Castelo interior, escreveu Teresa de Jesus, freira de nossa
Senhora do Carmo, para suas irmãs è filhas, as freiras Carmelitas Descalças.
Indice Geral
􀂃 JHS
􀂃 PRIMEIRAS MORADAS
􀂃 SEGUNDAS MORADAS
􀂃 TERCEIRAS MORADAS
􀂃 QUARTAS MORADAS
􀂃 QUINTAS MORADAS
􀂃 SEXTAS MORADAS
􀂃 SÉTIMAS MORADAS
􀂃 EPÍLOGO
JHS
1. Poucas coisas, das que me tem mandado a obediência, se tornaram tão
dificultosas para mim como escrever agora coisas de oração; primeiro, porque me
parece que o Senhor não me dá nem espírito nem desejo para o fazer; depois, por
ter a cabeça, há três meses, com um zumbido e fraqueza tão grande, que, até sobre
negócios urgentes, escrevo a custo. Mas, entendendo que a força da obediência
costuma facilitar coisas que parecem impossíveis, a vontade determina-se a fazê-lo
de muito bom grado, ainda que a natureza se aflija muito; porque o Senhor não me
deu tanta virtude, para que o pelejar com a enfermidade contínua e com muitas e
variadas ocupações se possa fazer sem grande contradição sua. Faça-o Ele, que tem
feito outras coisas mais dificultosas para me fazer mercê, e em cuja misericórdia
confio.
2. Creio bem que pouco mais hei-de saber dizer do que já disse em outras coisas,
que me mandaram escrever, antes temo que hão-de ser quase sempre as mesmas:
porque, como os pássaros a quem ensinam a falar, não sabem mais do que lhes
ensinam ou eles ouvem, e isto repetem muitas vezes, assim sou eu ao pé da letra.
Se o Senhor quiser que eu diga algo de novo, Sua Majestade o fará ou será servido
trazer-me à memória o que de outras vezes disse, e que até com isto me
contentaria, por tê-la tão má que folgaria em atinar com algumas coisas, que dizem
que estavam bem ditas, caso se tivessem perdido. Se nem mesmo isso me der o
Senhor, com me cansar e acrescentar o mal de cabeça, por obediência, ficarei com
lucro, embora do que disser, não se tire nenhum proveito?
3. E assim começo a cumpri-la hoje, dia da Santíssima Trindade, ano de 1577,
neste mosteiro de S. José do Carmo em Toledo, onde estou presentemente,
sujeitando-me em tudo o que disser ao parecer de quem mo manda escrever, que
são pessoas de grandes letras. Se alguma coisa disser que não vá conforme ao que
ensina a Santa Igreja Católica Romana, será por ignorância e não por malícia. Isto
se pode ter por certo e que sempre estou e estarei sujeita, por bondade de Deus, e o
tenho estado, à Santa Igreja. Seja para sempre bendito e glorificado! Amen!
4. Disse-me quem me mandou escrever, que estas freiras destes mosteiros de
Nossa Senhora do Carmo têm necessidade de que alguém lhes declare algumas
dúvidas de oração, e lhe parecia que melhor entendem as mulheres a linguagem
umas das outras. Com o amor que me têm, lhes faria mais ao caso o que eu lhes
dissesse e, por esta razão, entendia ter alguma importância se se acertasse a dizer
alguma coisa e, por isso, irei falando com elas naquilo que escrever, porque parece
desatino pensar que pode fazer ao caso a outras pessoas. Grande mercê me fará o
Senhor, se a alguma delas aproveitar para O louvar um poucochinho mais. Bem
sabe Sua Majestade que eu não pretendo outra coisa; e é bem claro que, quando
atinar a dizer alguma coisa, elas entenderão que não é meu, pois não há razão para
isso, nem tão-pouco tivera eu entendimento e habilidade para coisas semelhantes;
se o Senhor, por Sua misericórdia não mos desse.
PRIMEIRAS MORADAS
CAPÍTULO l. Trata da formosura e dignidade das nossas almas. Põe uma comparação para se
entender e diz o lucro que há em entendê-la e saber as mercês que recebemos de Deus, e como a
porta deste castelo é a oração.
1. Estando eu hoje suplicando a Nosso Senhor que falasse por mim, porque eu não
atinava com coisa que dissesse, nem como começar a cumprir a obediência,
ofereceu-se-me o que agora direi para começar com algum fundamento. É
considerar a nossa alma como um castelo todo ele de um diamante ou mui claro
cristal, onde há muitos aposentos, assim como no Céu há muitas moradas. Que se
bem o considerarmos, irmãs, não é outra coisa a alma do justo, senão um paraíso
onde Ele disse ter Suas delícias. Pois, não é isso que vos parece que será o
aposento onde um Rei tão poderoso, tão sábio, tão puro, tão cheio de todos os bens
se deleita? Não encontro eu outra coisa com que comparar a grande formosura de
uma alma e a sua grande capacidade; na verdade, os nossos entendimentos, por
agudos que sejam, mal podem chegar a compreendê-la, assim como não podem
chegar a considerar a Deus, pois Ele mesmo disse que nos criou à Sua imagem e
semelhança. Pois, se isto assim é, como é, não há razão para nos cansarmos a
querer compreender a formosura deste castelo; porque, ainda que haja diferença
dele a Deus como do Criador à criatura, pois é criatura, basta dizer Sua Majestade
que a alma é feita à Sua imagem, para que possamos entender a grande dignidade e
formosura da alma.
2. Não é pequena lástima e confusão que, por nossa culpa, não nos entendamos a
nós mesmos, nem saibamos quem somos. Não seria grande ignorância, minhas
filhas, que perguntassem a alguém quem era e não se conhecesse, nem soubesse
quem foi seu pai, nem sua mãe, nem sua terra? Pois, se isto seria grande estupidez,
sem comparação é maior a que há em nós quando não procuramos saber que coisa
somos e só nos detemos nestes corpos; e assim, só a vulto sabemos que temos
alma, porque o ouvimos e porque no-lo diz a fé. Mas, que bens pode haver nesta
alma ou quem está dentro dela, ou o seu grande valor, poucas vezes o
consideramos; e assim se tem em tão pouco procurar com todo o cuidado conservar
sua formosura. Tudo se nos vai na grosseria do engaste ou cerca deste castelo; que
são estes corpos. 3. Consideremos agora que este castelo tem, como disse, muitas
moradas: umas no alto, outras em baixo, outras aos lados; e, no centro e meio de
todas estas, tem a mais principal onde se passam as coisas mais secretas entre Deus
e a alma.
É mister que fiqueis esclarecidas por esta comparação; talvez seja Deus servido
que eu possa por ela dar-vos a entender alguma coisa das mercês que Ele faz às
almas e as diferenças que há entre elas, até onde eu tiver entendido que é possível;
que, todas, será impossível entendê-las alguém, pois são muitas, e quanto mais
quem é tão ruim como eu! Pois ser-vos-á grande consolo, quando o Senhor vos
fizer essas mercês, saber que é coisa possível e, a quem Ele as não fizer, para
louvarem Sua grande bondade. Assim como não nos faz dano considerar as coisas
que há no céu e o que nele gozam os bem-aventurados, antes nos alegramos e
procuramos alcançar o que eles gozam, tão pouco nos fará dano ver que é possível,
neste desterro, comunicar-se um tão grande Deus a uns vermes tão cheios de mau
odor e amá-los com uma bondade tão boa e uma misericórdia tão sem medida.
Tenho por certo que, a quem fizer dano entender que é possível fazer Deus esta
mercê neste desterro, que estará muito falha de humildade e de amor do próximo;
porque, se assim não é, como podemos deixar de nos alegrar de que Deus faça
estas mercês a um irmão nosso e de que Sua Majestade dê a entender Suas
grandezas seja a quem for, pois isso não impede que no-las faça a nós? Que
algumas vezes será só para as mostrar, como disse do cego a quem deu vista
quando Lhe perguntaram os Apóstolos se era cego por seus pecados ou de seus
pais. E assim acontece fazer mercês, não por serem mais santos do que aqueles a
quem as não faz, mas para que se conheça Sua grandeza, como vemos em S. Paulo
e na Madalena e para que O louvemos em Suas criaturas.
4. Poderá dizer-se que parecem coisas impossíveis e que é bom não escandalizar os
fracos. Menos se perde em que estes não o creiam, do que em deixarem de
aproveitar aqueles a quem Deus as faz e de se consolar e despertar a amar mais a
Quem faz tantas misericórdias, sendo tão grande Seu poder e majestade; tanto mais
que sei que falo com quem não corre este perigo, porque sabem e crêem que dá
Deus ainda muito maiores provas de amor. Eu sei que os que nisto não crerem, não
o verão por experiência; porque Deus é muito amigo de que Lhe não ponham taxa
e medida a Suas obras, e assim, irmãs, nunca isto aconteça às que o Senhor não
levar por este caminho.
5. Pois, voltando a nosso formoso e deleitoso castelo, temos de ver como
poderemos entrar nele.
Parece que digo algum disparate; porque, se este castelo é a alma, claro que não se
trata de entrar, pois se é ele mesmo, pareceria desatino dizer a alguém que entrasse
num aposento estando já dentro. Mas haveis de entender que vai muito de estar a
estar; que há muitas almas que ficam à volta do castelo, onde estão os que o
guardam, e que se lhes não dá nada de entrar, nem sabem o que há naquele tão
precioso lugar, nem quem está dentro, nem mesmo que dependências tem. Já tereis
visto, em alguns livros de oração, aconselhar a alma a que entre dentro de si; é isto
mesmo.
6. Dizia-me há pouco um grande letrado, que as almas, que não têm oração são
como um corpo paralítico ou tolhido que, embora tenha pés e mãos, não os podem
mexer; e são assim: há almas tão enfermas e tão habituadas às coisas exteriores,
que não há remédio nem parece que possam entrar dentro de si mesmas; porque é
tal o costume de tratarem sempre com as sevandijas e alimárias que estão à roda do
castelo, que já quase se tornaram como elas e, sendo de natureza tão rica e podendo
ter a sua conversação nada menos do que com Deus, não têm remédio. E se estas
almas não procuram entender e remediar sua grande miséria, ficarão feitas em
estátuas de sal por não voltarem a cabeça para si mesmas, assim como ficou a
mulher de Lot por voltar a cabeça para trás.
7. Porque, tanto quanto eu posso entender, a porta para entrar neste castelo é a
oração e reflexão, não digo mais mental que vocal; logo que seja oração, há-de ser
com consideração; porque naquela em que não se adverte com Quem se fala e o
que se pede e quem é que pede e a Quem, não lhe chamo eu oração, embora muito
meneie os lábios. E, se algumas vezes o for, mesmo sem este cuidado, será porque
se teve em outras; mas, quem tivesse por costume falar com a Majestade de Deus
como falaria a um seu escravo, que nem repara se diz mal, mas o que lhe vem à
boca e decorou, porque já o fez outras vezes, não o tenho por oração e preza a
Deus nenhum cristão a tenha desta sorte. Que entre vós, irmãs, espero em Sua
Majestade não haverá tal oração, pelo costume que há de tratardes de coisas
interiores, e que é muito bom para não cairdes em semelhante bruteza.
8. Não falemos, pois, com estas almas tolhidas, que, se não vem o mesmo Senhor
mandar-lhes que se levantem - como aquele que havia 30 anos que estava junto à
piscina-, têm muito má ventura e correm grande perigo; mas sim com outras almas
que, por fim, entram no castelo; porque, ainda que estejam muito metidas no
mundo, têm bons desejos e algumas vezes, ainda que de longe em longe,
encomendam-se a Nosso Senhor e consideram quem são, ainda que sem muita
demora. Alguma vez ou outra, num mês, rezam cheias de mil negócios, o
pensamento quase de ordinário nisso, porque, como estão tão apegadas a eles, o
coração se lhes vai para onde está o seu tesouro. Propõem algumas vezes, para
consigo mesmos, desocuparem-se, e já é grande coisa o próprio conhecimento e o
ver que não vão bem encaminhadas para atinar com a porta. Enfim, entram nas
primeiras dependências do rés-do-chão; mas entram com elas tantas sevandijas,
que não lhes deixam ver a formosura do castelo nem sossegar: muito fazem já em
ter entrado.
9. Parecer-vos-á, filhas, que estou impertinente, pois, por bondade do Senhor, não
sois destas. Haveis de ter paciência, porque, a não ser assim, não saberei dar a
entender, como eu as tenho entendido, algumas coisas interiores de oração, e ainda
assim preza ao Senhor que atine a dizer alguma coisa, porque é bem dificultoso o
que eu quereria dar-vos a entender, se não houver experiência. Se a houver, vereis
que o menos que se pode fazer é tocar no que, preza ao Senhor, não nos toque a
nós por Sua misericórdia.
CAPÍTULO 2. Trata de quão feia coisa é a alma que está em pecado mortal, e como quis Deus
dar a entender algo disto a uma pessoa. Trata também alguma coisa sobre o próprio
conhecimento. Diz como se hão-de entender estas moradas.
1. Antes de passar adiante, quero dizer-vos que considereis o que será ver este
castelo tão resplandecente e formoso, esta pérola oriental, esta árvore de vida que
está plantada nas mesmas águas vivas da Vida, que é Deus, quando cai em pecado
mortal. Não há trevas mais tenebrosas, nem coisa tão escura e negra que ela o não
esteja muito mais. Basta saber que, estando até o mesmo Sol, que lhe dava tanto
resplendor e formosura no centro da sua alma, todavia é como se ali não estivesse,
para participar d'Ele, apesar de ser tão capaz de gozar de Sua Majestade, como o
cristal o é para nele resplandecer o sol. Nenhuma coisa lhe aproveita; e daqui vem
que todas as boas obras que fizer, estando assim em pecado mortal, são de nenhum
fruto para alcançar glória; porque, não procedendo daquele princípio que é Deus,
do qual vem que a nossa virtude é virtude, e apartando-nos d'Ele, não pode a obra
ser agradável a Seus olhos; porque, enfim, o intento de quem faz um pecado
mortal, não é contentar a Deus, senão dar prazer ao demónio o qual, como é as
mesmas trevas, assim a pobre alma fica feita uma mesma treva.
2. Eu sei de uma pessoa a quem Nosso Senhor quis mostrar como ficava uma alma
quando pecava mortalmente. Diz aquela pessoa que lhe parece que, se o
entendessem, não seria possível que alguém pecasse, ainda que se pusesse nos
maiores trabalhos que se possam pensar para fugir das ocasiões. E assim, deu-lhe
um grande desejo de que todos o entendessem. Assim vo-lo dê a vós, filhas, de
rogar a Deus pelos que estão neste estado, todos feitos uma escuridão, e tais são
suas obras; porque, assim como duma fonte muito clara, claros são os arroiozitos
que dela manam, assim é uma alma que está em graça, pois daqui lhe vem serem
suas obras tão agradáveis aos olhos de Deus e dos homens, porque procedem desta
fonte de vida, onde a alma está como uma árvore plantada; nem ela teria frescura e
fruto, se não lhe viesse dali; é isto que a sustenta e faz com que não seque, e que dê
bom fruto. Assim a alma que, por sua culpa se aparta desta fonte e se transplanta a
outra de uma negríssima água e de muito mau odor, tudo o que dela sai é a mesma
desventura e sujidade.
3. É de considerar aqui que a fonte e aquele Sol resplandecente que está no centro
da alma, não perde seu resplendor e formosura, que está sempre dentro dela, e não
há coisa que lhe possa tirar a sua formosura. Mas, se sobre um cristal que está ao
sol, se pusesse um pano muito negro, claro está que, embora o sol dê nele, a sua
claridade não fará o seu efeito no cristal.
4. Ó almas remidas pelo Sangue de Jesus Cristo! Entendei-vos e tende dó de vós
mesmas! Como é possível que, entendendo isto, não procureis tirar este pez deste
cristal? Olhai que, se a vida se vos acaba, jamais tornareis a gozar desta luz. Ó
Jesus! O que é ver uma alma apartada dela! Como ficam os pobres aposentos do
castelo! Que perturbados andam os sentidos, que é a gente que vive neles! E as
potências, que são os alcaides, mordomos e mestres-salas, com que cegueira, com
que mau governo! Enfim, como onde está plantada a árvore é o demónio, que fruto
pode dar?
5. Ouvi uma vez a um homem espiritual, que não se espantava do que fazia quem
está em pecado mortal, mas sim do que não fazia. Deus, por Sua misericórdia, nos
livre de tão grande mal, que não há coisa, enquanto vivemos, que mereça este
nome de mal, senão esta; pois acarreta males eternos para sempre. É disto, filhas,
que devemos andar temerosas e o que temos de pedir a Deus em nossas orações;
porque, se Ele não guarda a cidade, em vão trabalharemos, pois somos a própria
vaidade.
Dizia aquela pessoa que tinha aproveitado duas coisas da mercê que Deus lhe fez:
uma, um temor grandíssimo de O ofender, e assim sempre Lhe andava suplicando
não a deixasse cair, vendo tão terríveis danos; a segunda, um espelho para a
humildade, vendo que, coisa boa que façamos, não tem seu princípio em nós
mesmos, mas naquela fonte onde está plantada esta árvore das nossas almas, e
neste Sol que dá calor às nossas obras. Disse que se lhe representou isto tão claro
que, em fazendo alguma coisa boa ou vendo-a fazer, acudia ao seu princípio e
entendia como, sem esta ajuda, não podíamos nada; e daqui lhe procedia ir logo a
louvar a Deus, e, habitualmente, não se lembrava de si em coisa boa que fizesse.
6. Não seria tempo perdido, irmãs, o que gastásseis a ler isto, nem eu a escrevê-lo,
se ficássemos com estas duas coisas, que os letrados e entendidos muito bem
sabem; mas a nossa ignorância de mulheres de tudo precisa; e assim, porventura,
quer o Senhor que nos venham à lembrança semelhantes comparações. Praza a Sua
Majestade dar-nos graça para isso.
7. São tão obscuras de entender estas coisas interiores que, a quem tão pouco sabe
como eu, forçoso é dizer muitas coisas supérfluas e até desatinadas, para que haja
alguma em que acerte. É necessário terem paciência quando isto lerem, pois eu a
tenho para escrever o que não sei; e certo é algumas vezes tomar o papel, como
uma pessoa tonta, sem saber que dizer nem mesmo começar. Bem entendo que é
coisa importante para vós declarar-vos algumas coisas interiores, como puder;
porque sempre ouvimos quão boa é a oração e temos na Constituição tê-la tantas
horas. Não se nos declara mais do que podemos e, de coisas que o Senhor opera
numa alma, declara-se pouco, digo de coisas sobrenaturais. Dizendo-se e dando-se
a entender de muitas maneiras, ser-nos-á grande consolação considerar este
artifício celestial interior, tão pouco entendido dos mortais, embora passem muitos
por ele. E, ainda que em outras coisas que escrevi, o Senhor me tenha dado algo a
entender, creio que algumas não as tinha entendido como de então para cá, em
especial das mais dificultosas. O trabalho é que, para as chegar a declarar - como
disse -, será preciso dizer muitas coisas muito sabidas, porque não pode ser por
menos para meu rude talento.
8. Pois voltemos ao nosso castelo de muitas moradas. Não haveis de imaginar estas
moradas uma após outra, como coisa alinhada; mas ponde os olhos no centro que é
a casa ou palácio onde está o Rei, e considerai-a como um palmito, que, para
chegar ao que é de comer, tem muitas coberturas que cercam tudo quanto é
saboroso. Assim aqui, em redor desta morada, há outras muitas e também por
cima. Porque as coisas da alma devem-se considerar com amplidão, largueza e
grandeza, e nisto não há demasia, pois tem maior capacidade do que nós
poderemos considerar, e a todas as partes dela se comunica este Sol que está no
palácio. Isto importa muito a qualquer alma que tenha oração, pouca ou muita: que
não a tolha nem a aperte. Deixe-a andar por estas moradas, em cima, em baixo e
aos lados, pois Deus lhe deu tão grande dignidade; não se obrigue a estar muito
tempo num só aposento! Oh! mas se é no próprio conhecimento! E quão necessário
é isto (vejam se me entendem), mesmo aquelas que o Senhor tem na mesma
morada em que Ele está, pois - por mais elevada que esteja a alma -, não lhe
cumpre outra coisa, nem poderá, ainda que queira que a humildade sempre fabrica
o seu mel, como a abelha na colmeia; sem isto, tudo vai perdido. Mas
consideremos que a abelha não deixa de sair e voar para trazer flores; assim a alma
no próprio conhecimento: creia-me e voe algumas vezes a considerar a grandeza e
a majestade do seu Deus. Aqui achará a sua baixeza, melhor que em si mesma, e
mais livre das sevandijas, que entram nas primeiras moradas, que são as do próprio
conhecimento; ainda que, como digo, é grande misericórdia de Deus que a alma se
exercite nisto, pois tanto se peca por excesso como por defeito, - costuma-se dizer-.
E creiam-me que, com a virtude de Deus, praticaremos muito melhor a virtude do
que muito presas à nossa terra.
9. Não sei se fica bem dado a entender, porque é coisa tão importante este
conhecermo-nos, que não quereria que nisso houvesse nunca relaxação, por muito
subidas que estejais nos céus; pois, enquanto estamos nesta terra, não há coisa que
mais nos importe que a humildade. E assim volto a dizer que é muito bom e muito
melhor tratar de entrar primeiro no aposento onde se trata disto, que voar aos
demais, porque este é o caminho; e, se podemos ir pelo seguro e plano, para que
havemos de querer asas para voar? Mas procure-se como aproveitar mais nisto; e a
meu ver, jamais acabamos de nos conhecer se não procurarmos conhecer a Deus;
olhando à Sua grandeza, acudamos à nossa baixeza; e olhando à Sua pureza,
veremos nossa sujidade; considerando a Sua humildade, veremos como estamos
longe de ser humildes.
10. Há dois proveitos nisto: o primeiro, está claro que uma coisa branca parece
muito mais branca ao pé duma negra e, ao contrário, a negra ao pé da branca. O
segundo é, porque o nosso entendimento e nossa vontade se tornam mais nobres e
mais dispostos para todo o bem, quando, às voltas consigo mesmos, tratam com
Deus. E se nunca saímos do nosso lodo de misérias, é coisa muito inconveniente.
Assim como dizíamos dos que estão em pecado mortal quão negras e de mau odor
são seus cursos de água, assim aqui (ainda. que não são como aqueles, Deus nos
livre, que isto é só comparação), metidos sempre na miséria da nossa terra, nunca o
curso sairá do lodo de temores, de pusilanimidade e cobardia: de olhar a se me
olham, se me não olham; se indo por este caminho, me sucederá mal; se ousarei
começar aquela obra, se será soberba; se é bom que uma pessoa tão miserável trate
de coisa tão alta como a oração; se me hão-de ter por melhor não indo pelo
caminho de toda a gente; que não são bons os extremos, mesmo em virtude; que,
como sou tão pecadora, será cair de mais alto; não irei talvez por diante e farei
dano aos bons; uma como eu não precisa de singularidades.
11. Oh! valha-me Deus, filhas, quantas almas deve o demónio ter feito perder
muito por este meio! Tudo isto lhes parece humildade e outras muitas coisas que
pudera dizer, vem de nunca acabarmos de nos entender; rende-se o próprio
conhecimento, e, se nunca saímos de nós mesmos, não me espanto, que isto e mais
se possa temer. Por isso digo, filhas, que ponhamos os olhos em Cristo, nosso
Bem, e ali aprenderemos a verdadeira humildade, e em seus santos, e enobrecer-seá
o entendimento - como disse -, e não ficará o próprio conhecimento rasteiro e
cobarde; pois que, embora esta seja a primeira morada, é muito rica e de tão grande
preço e, se se escapa das sevandijas que nela há, não se ficará sem passar adiante.
Terríveis são os ardis e manhas do demónio para que as almas não se conheçam a
si mesmas nem entendam Seus caminhos.
12. Destas primeiras moradas posso eu dar sinais muito certos, por experiência. Por
isso digo que não considerem poucos aposentos, senão um milhão deles; porque,
de muitas maneiras, entram aqui almas, umas e outras com boa intenção. Mas,
como o demónio sempre a tem tão má, deve terem cada um muitas legiões de
demónios a combater para que não passem de uns a outros. Como a pobre alma
não o entende, por mil maneiras nos engana, o que não pode fazer já tanto às que
estão mais perto onde está o Rei Aqui, porém, como ainda estão embebidas no
mundo e engolfadas em seus contentos e desvanecidas com suas honras e
pretensões, não têm força os vassalos da alma (que são os sentidos e potências
naturais que Deus lhe deu), e facilmente estas almas são vencidas, embora andem
com desejos de não ofender a Deus, e façam boas obras. As que se virem neste
estado precisam de recorrer amiúde, como puderem, a Sua Majestade, tomar a Sua
bendita Mãe por intercessora e a Seus santos, para que pelejem por elas, pois os
seus criados pouca força têm para se defender. E, na verdade, em todos os estados
é necessário que ela nos venha de Deus. Sua Majestade no-la dê por Sua
misericórdia, amen.
13. Que miserável é a vida em que vivemos! Porque, em outra parte, disse muito
do dano que nos faz, filhas, não entender bem isto da humildade e do próprio
conhecimento, nada mais vos digo aqui, ainda que seja o que mais importa, e praza
a Deus tenha dito alguma coisa que vos aproveite.
14. Haveis de notar que, nestas primeiras moradas, ainda não chega quase nada da
luz que sai do palácio onde está o Rei; porque, embora não estejam obscurecidas e
negras como quando a alma está em pecado, estão de alguma maneira obscurecidas
para poderem ver quem está nelas e não por culpa do aposento - não me sei dar a
entender -, mas porque entraram com a alma tantas coisas más de cobras e víboras
e coisas peçonhentas que não a deixam reparar na luz. É como se alguém entrasse
em um lugar aonde entra muito sol e levasse terra nos olhos, que quase os não
pudesse abrir. O aposento está claro, mas ela não o goza pelo impedimento destas
feras e alimárias que lhe fazem cerrar os olhos para não ver senão a elas.
Assim me parece deve ser uma alma que, embora não esteja em mau estado, está
tão metida em coisas do mundo e tão embebida com sua fazenda ou honra ou
negócios - como disse - que, ainda que de facto e verdade queira ver e gozar da
Sua formosura, não a deixam nem parece que possa desembaraçar-se de tantos
impedimentos. E convém muito, para entrar nas segundas moradas, que procure
dar de mão às coisas e negócios não necessários, cada um conforme à seu estado; é
coisa que lhe importa tanto para chegar à morada principal, que, se não começa a
fazer isto, o tenho por impossível; e até mesmo o estar sem muito perigo naquela
em que está, embora já tenha entrado no castelo, porque entre coisas tão
peçonhentas, uma vez ou outra é impossível que deixem de lhe morder.
15. Pois que seria, filhas, se às que já estão livres destes tropeços, como nós, e
entrámos já muito mais adentro de outras moradas secretas do castelo, se por nossa
culpa tornássemos a sair para estas barafundas, como por nossos pecados deve
haver muitas pessoas a quem Deus faz mercês, e por sua culpa se lançam nesta
miséria? Aqui estamos livres quanto ao exterior; no interior, praza ao Senhor que o
estejamos e que Ele nos livre. Guardai-vos, filhas minhas, de cuidados alheios.
Olhai que em poucas moradas deste castelo deixam de combater os demónios. É
verdade que em algumas têm força os guardas para pelejar, que são as potências -
como creio ter dito -; mas é muito necessário não nos descuidarmos para entender
seus ardis e não nos engane o demónio feito anjo de luz; pois há uma multidão de
coisas com que ele nos pode fazer dano, pouco a pouco, e, até que o faça, não o
entendemos.
16. Já vos disse de outra vez que ele é como uma lima surda, que é preciso
entendê-lo nos princípios. Quero dizer alguma coisa para vo-lo dar melhor a
entender.
Dá ele a uma irmã vários ímpetos de penitência, e a esta lhe parece que não tem
descanso senão quando se está atormentando. Este princípio é bom; mas, se a
prioresa mandou que não façam penitências sem licença e o demónio lhe faz
parecer que a coisa tão boa bem se pode atrever, e às escondidas se dá a tal vida
que vem a perder a saúde e não poder fazer o que manda a sua Regra, já vedes em
que vai parar tal bem.
Dá a outra um zelo de perfeição muito grande. Isto é muito bom; mas poderá vir
daqui, que qualquer faltita das irmãs lhe pareça uma grande quebra e assim vir-lhe
o cuidado de ver se as fazem, e de recorrer à prioresa; e até, às vezes, poderá ser
ela não ver as suas próprias faltas pelo grande zelo que tem da Religião; como as
outras não vêem o interior, e vêem o cuidado exterior, poderia ser que o não
tomassem tanto a bem.
17. O que aqui pretende o demónio não é pouco; é esfriar a caridade e o amor de
umas para com as outras, o que seria grande dano. Entendamos, minhas filhas, que
a perfeição verdadeira é amor de Deus e do próximo e, com quanto mais perfeição
guardarmos estes dois mandamentos, seremos mais perfeitas. Toda a nossa Regra e
Constituições não servem para outra coisa, senão de meios para guardar isto com
mais perfeição. Deixemo-nos de zelos indiscretos, que nos podem fazer muito
dano. Cada uma olhe para si mesma.
Porque noutra parte vos falei largamente sobre isto, não me alongarei.
18. Importa tanto este amor de umas para com as outras, que eu nunca quereria que
dele vos esquecêsseis; porque, de andar olhando nas outras a umas ninharias que às
vezes não será imperfeição, mas, como sabemos pouco, talvez o lançaremos à pior
parte, pode a alma perder a paz e ainda inquietar a das outras. Vede como custaria
caro a perfeição! Também poderia o demónio trazer esta tentação para com a
prioresa e seria mais perigosa. Para isto é mister muita discrição: porque, se forem
coisas que vão contra a Regra e Constituição, é preciso que nem sempre se lancem
à boa parte, mas sim avisá-la; e, se não se emendar, ao Prelado: isto é caridade. E
também para com as irmãs, se fosse alguma coisa grave; deixar passar tudo com
medo de que seja tentação, seria a mesma tentação. Mas é preciso ponderar muito
(não nos engane o demónio) não o tratar umas com as outras, pois disso pode o
demónio tirar grande proveito e começar o costume da murmuração; mas apenas
tratá-lo com quem há-de aproveitar, como já disse. Aqui, glória a Deus, não há
tanta ocasião para isso, porque se guarda tão contínuo silêncio; mas é bom que
estejamos de sobreaviso.
SEGUNDAS MORADAS
CAPÍTULO ÚNICO. Trata do muito que importa a perseverança para chegar às últimas
moradas, e a grande guerra que dá o demónio, e quanto convém não errar o caminho no
princípio para acertar. Dá um meio que experimentou ser muito eficaz.
1. Agora, vejamos quais serão as almas que entram nas segundas moradas e o que
fazem nelas. Quereria dizer-vos pouco, porque já disse bastante em outras partes e
será impossível deixar de tornar a dizer outra vez muito sobre isso, porque não me
lembra nada do que já foi dito; se o pudesse guisar de diferentes maneiras, bem sei
que não vos enfastiaríeis, como nunca nos cansamos dos livros que tratam disto,
apesar de serem muitos.
2. É esta morada a dos que já começaram a ter oração e entendido quanto lhes
importa não se ficarem nas primeiras moradas, mas não têm ainda determinação
para deixar de estar nela muitas vezes, porque não deixam as ocasiões, o que é
grande perigo. Mas já é grande misericórdia que, mesmo por pouco tempo,
procurem fugir das cobras e coisas peçonhentas e entendam que é bom deixá-las.
Estes, em parte, têm muito mais trabalho que os primeiros, ainda que não tenham
tanto perigo; pois parece que já os entendem, e há grande esperança que entrem
mais adentro. Digo que têm mais trabalho, porque os primeiros são como mudos
que não ouvem, e assim passam melhor o trabalho de não falar; mas não o
passariam assim, senão muito maior, os que ouvissem e não pudessem falar. Mas,
nem por isso é mais de desejar o trabalho dos que não ouvem, porque enfim,
grande coisa é entender o que nos dizem. Assim estes entendem os chamamentos
que lhes faz o Senhor, porque vão entrando mais perto onde está Sua Majestade, é
muito bom vizinho e tão grande a Sua misericórdia e bondade que, mesmo estando
nós em nosso passatempo, negócios, contentamentos e bagatelas do mundo, e até
caindo e levantando-nos em pecados (porque estas alimárias são tão peçonhentas e
perigosa sua companhia e buliçosas que, só por maravilha deixarão de tropeçar
nelas para cair), com tudo isto, tem em tanto este Senhor nosso que O amemos e
procuremos a Sua companhia que, uma vez ou outra, não deixa de nos chamar para
que nos acerquemos d'Ele. E é esta voz tão doce, que se desfaz a pobre alma por
não fazer logo o que lhe manda; e assim - como digo - é muito mais trabalho do
que não O ouvir.
3. Não digo que estas vozes e chamamentos sejam como outros que direi depois,
mas são com palavras que se ouvem a gente boa, ou sermões ou com o que se lê
em bons livros e outras muitas coisas que tendes ouvido, com as quais Deus
chama; ou enfermidades, trabalhos e também com uma ou outra verdade que Ele
ensina naqueles instantes em que estamos em oração que, seja quão frouxamente
quiserdes, os tem Deus em muito. E vós, irmãs, não tenhais em pouco esta primeira
mercê, nem vos desconsoleis, ainda mesmo que não respondais logo ao Senhor.
Bem sabe Sua Majestade aguardar muitos dias e anos, em especial quando vê
perseverança e bons desejos. Esta perseverança é aqui o mais necessário, porque
com ela jamais se deixa de ganhar muito. Mas é terrível a violência que aqui usam
os demónios de mil maneiras, com mais tormento da alma que na morada anterior;
porque ali, estava muda e surda, pelo menos ouvia muito pouco e resistia menos,
como quem tem, em parte, perdida a esperança de vencer; aqui está o entendimento
mais vivo e as potências mais hábeis; e são os golpes e a artilharia de tal modo, que
a alma não pode deixar de ouvir. Porque aqui é o representarem os demónios estas
cobras das coisas do mundo e fazerem os seus contentos quase eternos, a estima
em que nele se é tido, os amigos e parentes, a saúde que se pode perder nas coisas
de penitência (pois sempre começa a alma que entra nesta morada a desejar fazer
alguma), e outras mil maneiras de impedimentos.
4. Ó Jesus, que barafunda a que põem aqui os demónios e as aflições da pobre
alma, que não sabe se há-de passar adiante ou voltar ao primeiro aposento! É que a
razão, por outra parte, representa-lhe o engano que é pensar que tudo isto vale
alguma coisa em comparação do que pretende. A fé ensina-lhe o que é que lhe
cumpre fazer; a memória representa-lhe em que vão parar todas estas coisas,
tornando-lhe presente a morte, e algumas súbitas, dos que muito gozaram destas
coisas que viu; quão depressa são esquecidos de todos, como viu pisar debaixo da
terra alguns que conheceu em grande prosperidade - e até mesmo ter ela passado
sobre suas sepulturas muitas vezes - e pensar que naquele corpo estão fervilhando
muitos vermes e muitas outras coisas que podem ocorrer; a vontade inclina-se a
amar Aquele em quem tem visto tão inumeráveis coisas e mostras de amor, e
quereria pagar alguma; em especial, põe-se-lhe diante como nunca se aparta dela
este verdadeiro Amador, acompanhando-a, dando-lhe vida e ser. Logo o
entendimento acode dando-lhe a entender que não pode encontrar melhor amigo,
ainda que viva muitos anos; que todo o mundo está cheio de falsidade, e estes
contentos que lhe representa o demónio, estão cheios de trabalhos e cuidados e
contradições; e lhe diz que está certo que, fora deste castelo, não encontrará
segurança nem paz; que se deixe de andar por casas alheias, pois a sua está cheia
de bens, se a quiser gozar; que ninguém acha tudo que há mister senão em sua
casa, em especial tendo tal Hóspede, que a fará senhora de todos os bens; se ela
quiser não andará perdida, como o filho pródigo, comendo manjar de porcos.
5. Razões são estas para vencer os demónios. Mas, ó Senhor e Deus meu! Os
costumes das coisas de vaidade e o ver que toda a gente trata disso, estraga tudo!
Porque está tão morta a fé, queremos mais o que vemos do que aquilo que ela nos
diz. E, na verdade, não vemos senão excessiva má ventura nos que se deixam ir
atrás destas coisas visíveis. Mas isso fizeram estas coisas peçonhentas que
tratamos; como alguém que é mordido por uma víbora se empeçonha e incha todo,
assim aqui, se não nos acautelamos; claro está que para sarar são precisas muitas
curas; e grande mercê nos faz Deus, se não morremos disso. É certo que a alma
passa aqui grandes trabalhos, em especial se o demónio entende que ela tem
disposições de sua condição e costumes para ir muito adiante: todo o inferno se
juntará para fazê-la tornar a sair para fora.
6. Ah! Senhor meu!, aqui é mister a Vossa ajuda, pois, sem ela, não se pode fazer
nada. Por Vossa misericórdia não consintais que esta alma seja enganada para
deixar o que começou. Dai-lhe luz para ver como está nisto todo o seu bem e para
se apartar das más companhias. Grandíssima coisa é tratar com os que tratam disto
e achegar-se, não só aos que vir nestes aposentos em que está, mas também aos que
entender que já entraram nos mais interiores; porque lhe será grande ajuda, e tanto
poderá conversar com estes, que ali a metam consigo. Esteja sempre de sobreaviso
para não se deixar vencer; porque, se o demónio a vê com uma grande
determinação de que, antes perderá a vida, o descanso e tudo o que ele lhe oferece,
do que voltar ao primeiro aposento, muito mais depressa a deixará. Seja varão e
não dos que se deitavam a beber de bruços, quando iam para a batalha, não me
lembro com quem, mas determine-se: vai pelejar com todos os demónios e não há
melhores armas do que as da Cruz.
7. Ainda que de outras vezes tenha dito isto, importa tanto, que o torno a dizer
aqui; é que não se lembre que há regalos nisto que principia, porque é maneira
muito baixa de começar a construir tão precioso e grande edifício; e, se começam
sobre areia, darão com tudo em terra; nunca deixarão de andar desgostosos e
tentados. Porque não são estas moradas onde chove o maná; estão mais adiante,
onde tudo sabe ao que uma alma quer, porque não quer senão o que Deus quer. É
coisa muito engraçada que ainda estejamos com mil embaraços e imperfeições e as
virtudes que ainda não sabem andar, pois só há pouco começaram a nascer, e
mesmo praza a Deus que estejam começadas; e não temos vergonha de querer
gostos na oração e de nos queixarmos de aridez? Nunca isto vos aconteça, irmãs;
abraçai-vos com a cruz que vosso Esposo tomou sobre Si e entendei que esta deve
ser a vossa empresa. A que mais puder padecer, que padeça mais por Ele e será a
que melhor se liberta. O resto, como coisa acessória, se vo-lo der o Senhor, dai-
Lhe muitas graças.
8. Parecer-vos-á que, para os trabalhos exteriores, estais bem determinadas,
conquanto vos regale Deus no interior. Sua Majestade sabe melhor, o que nos
convém; não temos de Lhe aconselhar o que nos há-de dar, poi. pode com razão
dizer-nos que não sabemos o que pedimos. Toda a pretensão de quem começa a ter
oração (e não vos esqueça isto, pois importa muito) há-de ser trabalhar e
determinar-se e dispor-se, com quanta diligência puder, a fazer conformar a sua
vontade com a de Deus; e - como direi depois -, estai bem certas que nisto consiste
toda a maior perfeição, que se pode alcançar no caminho espiritual. Quem mais
perfeitamente tiver isto, mais receberá do Senhor e mais adiante estará neste
caminho. Não penseis que há aqui muitas algaravias nem coisas não sabidas e
compreendidas: nisto consiste todo o nosso bem. Pois, se erramos no princípio,
querendo logo que o Senhor faça a nossa vontade e que nos leve como
imaginamos, que firmeza pode levar este edifício? Procuremos fazer o que está em
nossa mão e guardemo-nos das sevandijas peçonhentas; que muitas vezes quer o
Senhor que haja securas e nos persigam maus pensamentos e nos aflijam, sem os
podermos afastar de nós, e até algumas vezes permite que nos mordam, para que
nós nos saibamos melhor guardar depois e para ver se nos pesa muito de O ter
ofendido.
9. Por isso, não vos desanimeis, se alguma vez cairdes, para deixar de ir por diante;
pois, dessa mesma queda, tirará Deus bem, como faz aquele que vende a mezinha
que, para provar se é boa, bebe o veneno primeiro. Se não víssemos em outra coisa
a nossa miséria e o grande dano que nos faz o andarmos dissipados, só esta luta
que se passa para nos tornarmos a recolher, bastava. Poderá haver maior mal do
que não nos acharmos em nossa própria casa? Que esperança podemos ter de
encontrar sossego em outras coisas, se nas próprias não podemos sossegar? Mas
tão grandes e verdadeiros amigos e parentes, com quem embora não o queiramos,
sempre havemos de viver, como são as nossas potências, parece fazerem-nos
guerra, como que sentidas da que lhes fizeram os nossos vícios. Paz, paz, minhas
irmãs, disse o Senhor e admoestou os Seus Apóstolos tantas vezes. Pois, crede-me
que, se não a temos e não a procuramos em nossa casa, não a acharemos na dos
estranhos. Acabe-se já esta guerra; pelo Sangue que Ele derramou por nós o peço
eu aos que não começaram a entrar em si; e os que já começaram, que nada seja
bastante para os fazer voltar atrás. Olhem que é pior a recaída que a queda; já vêem
sua perda; confiem na misericórdia de Deus e nada em si mesmas, e verão como
Sua Majestade leva a alma de umas moradas a outras e a mete naquela terra onde
estas feras não a podem tocar nem cansar; mas ela as sujeita a todas e faz troça
delas, e goza de muitos mais bens do que poderia desejar, ainda mesmo nesta vida,
digo.
10. Porque - como disse ao principio -, escrevi como vos haveis de comportar
nestas perturbações que aqui apresenta o demónio, e como começar a recolher-se
não há-de ir à força de braços, mas sim com suavidade, para que o possais estar
mais continuamente, só direi aqui que, a meu parecer, faz muito ao caso tratar com
pessoas experimentadas; porque em coisas que é necessário fazer, podereis pensar
que há grande quebra. Contanto que não se deixe este começo de recolhimento,
tudo guiará o Senhor em nosso proveito, embora não encontremos quem nos
ensine; que para este mal de deixar a oração, não há remédio, se não se torna a
começar, senão que, pouco a pouco, a alma vai perdendo cada dia mais, e ainda
praza a Deus que o entenda.
11. Poderia alguma pensar que, se tão grande mal é voltar atrás, melhor será nunca
começar, mas antes iscar-se fora do castelo. Já vos disse ao princípio,- e o mesmo
Senhor o diz que, quem anda no perigo, nele perece e que a porta para entrar neste
castelo é a oração. Ora, pensar que havemos de entrar no Céu e não entrar em nós,
conhecendo-nos e considerando nossa miséria e o que devemos a Deus e pedindo-
Lhe muitas vezes misericórdia, é desatino. O mesmo Senhor diz: «Ninguém subirá
a meu Pai, senão por Mim». Não sei se disse assim, creio que sim; e «quem Me vê
a Mim vê a Meu Pai». Pois, se nunca olhamos para Ele, nem consideramos o que
Lhe devemos e a morte que sofreu por nós, não sei como O podemos conhecer
nem fazer obras em Seu serviço. Porque a fé, sem elas, e sem irem unidas ao valor
dos merecimentos de Jesus Cristo, nosso Bem, que valor pode ter? E quem nos
despertará a amar este Senhor?
Praza a Sua Majestade nos dê a entender o muito que Lhe custámos e como o servo
não é mais que o Senhor; e que precisamos fazer obras para gozar da Sua glória;
para isto é necessário orar para não andar sempre em tentação.
TERCEIRAS MORADAS
CAPÍTULO 1. Trata da pouca segurança que podemos ter enquanto se vive neste desterro,
ainda que o estado seja elevado. E como convém andar com temor. Contém alguns temas muito
bons.
1. Aqueles que, pela misericórdia de Deus, venceram estes combates e com
perseverança entraram nas terceiras moradas, que lhes diremos, senão «bemaventurado
o varão que teme o Senhor»? Não foi pouco fazer Sua Majestade com
que entenda eu agora, nesta altura, em que costumo ser rude nestes casos, o que
quer dizerem vernáculo este versículo. Por certo, com razão o chamaremos bemaventurado,
pois, se não volta atrás, ao que podemos entender, leva caminho
seguro na sua salvação. Aqui vereis, irmãs, quanto importa vencer as batalhas
passadas; pois tenho por certo que nunca deixa o Senhor de o pôr em segurança de
consciência, o que não é pequeno bem. Digo em segurança, e disse mal, pois não a
há nesta vida, e por isso entendei sempre o que digo: se não voltar a deixar o
caminho começado.
2. Muito grande miséria é viver em vida que sempre temos de andar como quem
tem inimigos à porta, que não pode comer nem dormir sem armas, e sempre em
sobressalto, com receio de que, por alguma parte, possam arrombar esta fortaleza.
Ó meu Senhor e meu Bem! Como quereis que se deseje vida tão miserável, se não
é possível deixar de querer e pedir que nos tireis dela, se não é com esperança de
perdê-la por Vós ou gastá-la em Vosso serviço, e sobretudo entender que é Vossa
vontade? Se o é, Deus meu, morramos convosco, como disse S. Tomé, porque não
é outra coisa senão morrer muitas vezes o viver sem Vós e com estes temores de
que pode ser possível perder-Vos para sempre. Por isso digo, filhas, que a bemaventurança
que temos de pedir é estar já em segurança com os bem-aventurados;
pois com estes temores, que satisfação pode ter aquele que a tem toda em contentar
a Deus? E considerai que esta, e muito maior, tinham alguns santos que caíram em
graves pecados; e não temos a certeza de que nos dará Deus a mão para sair deles e
fazer a penitência que esses fizeram (subentende-se o auxílio particular).
3. Certo é, minhas filhas, que estou com não pouco temor escrevendo isto, pois não
sei como o escrevo nem como vivo, quando disso me lembro muitas, muitas vezes.
Pedi-Lhe, minhas filhas, que Sua Majestade viva sempre em mim; porque, se não
for assim, que segurança pode ter uma vida tão mal gasta como a minha? E não vos
pese o entender que isto é assim, como algumas vezes o tenho visto em vós,
quando vo-lo digo, e procede de que quiséreis que tivesse sido muito santa e tendes
razão; também eu o quisera. Mas, que hei-de fazer, se o perdi somente por minha
culpa?! E não me queixarei de Deus que deixou de me dar bastantes ajudas, para
que se cumprissem vossos desejos. Não posso dizer isto sem lágrimas e grande
confusão de ver que escrevo para aquelas que me podem ensinar a mim. Dura
obediência tem sido! Praza ao Senhor que, pois se faz por Ele, seja para que vos
aproveiteis de alguma coisa e para que Lhe peçais que perdoe a esta miserável
atrevida. Mas bem sabe Sua Majestade que só posso presumir da Sua misericórdia;
e, já que não posso deixar de ser a que tenho sido, não tenho outro remédio, senão
acolher-me a ela e confiar nos méritos de Seu Filho e da Virgem, Sua Mãe, cujo
hábito indignamente trago, e vós trazeis também. Louvai-O, minhas filhas, pois
verdadeiramente o sois desta Senhora; e assim não tendes de vos afrontar que eu
seja ruim, pois tendes tão boa Mãe. Imitai-A e considerai qual deve ser a grandeza
desta Senhora, e o bem de A ter por Padroeira, pois não bastaram meus pecados e
ser a que sou, para em nada deslustrar esta sagrada Ordem.
4. Mas, duma coisa vos aviso: que nem por ser tal e ter tão boa Mãe, estais seguras,
que muito santo era David, e já vedes o que foi Salomão; nem façais caso do
encerramento e penitência em que viveis, nem vos assegureis por tratardes sempre
com Deus e exercitar-vos na oração tão continuamente e estardes tão retiradas das
coisas do mundo e tê-las, a vosso parecer, aborrecidas. É bom tudo isto, mas não
basta - como disse para deixarmos de temer; e assim meditai este versículo e
trazei-o na memória muitas vezes: «Beatus vir, qui timet Dominum».
5. Já não sei o que dizia, pois distraí-me muito e, em me lembrando de mim,
quebram-se-me as asas para dizer coisa boa. E assim o quero deixar por agora.
Voltando ao que comecei a dizer das almas que entraram nas terceiras moradas, e
não lhes fez o Senhor pequena mercê, mas sim muito grande em terem vencido as
primeiras dificuldades. Destas, pela bondade do Senhor, creio que há muitas no
mundo; são muito desejosas de não ofender a Sua Majestade, e até mesmo dos
pecados veniais se guardam, e amigas de fazer penitência; têm suas horas de
recolhimento, gastam bem o tempo, exercitando-se em obras de caridade com os
próximos, muito concertadas no falar e vestir e governo de casa, as que a têm.
Decerto que é estado para desejar, e parece que nada há para que se lhes negue a
entrada até à última morada, nem lha negará o Senhor, se elas quiserem. Que bela
disposição esta para que lhes faça toda a mercê.
6. Ó Jesus! e quem dirá que não quer um tão grande bem, em especial havendo já
passado pelo mais trabalhoso? Ninguém. Todas dizemos que o queremos; mas,
como ainda é mister mais para que de todo o Senhor possua a alma, não basta dizêlo,
como não bastou ao mancebo quando o Senhor lhe perguntou se queria ser
perfeito. Desde que comecei a falar destas moradas, trago-o diante de mim; porque
somos assim ao pé da letra, e o mais normal é virem daqui as grandes securas na
oração, ainda que também haja outras causas; e deixo uns trabalhos interiores
intoleráveis que têm muitas almas boas, e muito sem culpa sua, dos quais sempre o
Senhor as tira com muito lucro, e das que têm melancolia e outras enfermidades.
Enfim, em todas as coisas temos de deixar à parte os juízos de Deus. Segundo
tenho para mim, o mais habitual, é o que disse; porque, como estas almas vêem
que por coisa alguma fariam um pecado, e muitas nem ainda venial deliberado, e
que gastam bem sua vida e fazenda, não podem levar à paciência que se lhes cerre
a porta para não entrar aonde está o nosso Rei, por cujos vassalos se têm e o são.
Mas, cá na terra, ainda que tenha muitos vassalos o rei, nem todos entram até à sua
câmara. Entrai, entrai, filhas minhas, no interior; passai adiante de vossas
obrazitas, pois, por serdes cristãs, deveis tudo isso e muito mais, e vos basta ser
vassalas de Deus. Não queirais tanto, que vos fiqueis sem nada. Vede os santos que
entraram na câmara deste Rei e vereis a diferença que há deles para nós. Não
peçais o que não tendes merecido, nem havia de nos vir ao pensamento que, por
muito que sirvamos, o havemos de merecer, nós os que temos ofendido a Deus.
7. Ó humildade! Não sei que tentação me vem neste caso, que não posso acabar de
crer a quem tanto caso faz destas securas, senão que é um pouco falta dela. Digo
que deixo aparte os grandes trabalhos interiores que disse, pois estes são muito
mais que falta de devoção. Provemo-nos a nós mesmas, minhas irmãs, ou antes
prove-nos o Senhor, pois bem o sabe fazer, embora muitas vezes não o queremos
entender, e venhamos a estas almas tão concertadas; vejamos o que fazem por
Deus, e logo veremos como não temos razão de nos queixarmos de Sua Majestade.
Porque, se lhe voltamos as costas e nos vamos tristes como o mancebo do
Evangelho, quando nos diz o que havemos de fazer para sermos perfeitos, que
quereis que faça Sua Majestade, se Ele há-de dar o prémio conforme ao amor que
Lhe temos? E este amor, filhas, não há-de ser fabricado em nossa imaginação, mas
sim provado com obras; e não penseís que olha às nossas obras, senão à
determinação da nossa vontade.
8. Parecer-nos-á a nós, que temos hábito de religião, e o tomámos por nossa
vontade e deixámos todas as coisas do mundo e o que tínhamos, por amor d'Ele
(ainda que sejam as redes de S. Pedro, pois parece que dá muito quem dá o que
tem), que já está tudo feito. Muito boa disposição é se persevera e não se torna a
meter nas sevandijas dos primeiros aposentos, embora só com o desejo; pois não
há dúvida que, se persevera nesta desnudez e desprendimento de tudo, alcançará o
que pretende. Mas há-de ser com a condição, e vede que vos aviso disto, que se
tenha por servo sem proveito - como disse S. Paulo, ou Cristo, e não creia que
obrigou assim a Nosso Senhor a fazer-lhe semelhantes mercês; antes, como quem
mais recebeu, fica mais endividado. Que poderemos fazer por um Deus tão
generoso, que morreu por nós e nos criou e nos dá o ser, que não nos tenhamos por
venturosos em que se vá descontando alguma coisa do que Lhe devemos pelo que
Ele nos tem servido (disse esta palavra de má vontade, mas isto é assim, pois não
fez outra coisa enquanto viveu no mundo), sem que Lhe peçamos de novo mercês e
regalos?
9. Olhai muito, filhas, a algumas coisas que aqui vão apontadas; ainda que
atabalhoadas, porque melhor não as sei declarar. O Senhor vo-lo dará a entender,
para que tireis das securas humildade e não inquietação, que é o que pretende o
demónio. E crede que onde há verdadeira humildade, ainda que Deus nunca dê
regalos, dará uma paz e conformidade com que andareis mais contentes do que
outros com regalos. E muitas vezes - como tendes lido -, os dá a Divina Majestade
aos mais fracos; embora creia que eles não os trocariam pelas fortalezas dos que
andam com securas. Somos amigos de contentamentos mais do que de cruz. Provanos,
Tu, Senhor, que sabes a verdade, para que nos conheçamos.
CAPÍTULO 2. Prossegue no mesmo e trata das securas na oração e do que poderia suceder, a
seu parecer, e como é mister provar-nos e que o Senhor prova aos que estão nestas moradas.
1. Eu tenho conhecido algumas almas, e creio que posso dizer bastantes, das que
chegaram a este estado e vivido muitos anos nesta rectidão e concerto, alma e
corpo; ao que se pode entender. E depois disto, quando já parece haviam de estar
senhores do mundo, ao menos bem desenganados dele, prova-os Sua Majestade em
coisas não muito grandes, e andam com tanta inquietação e aperto de cotação, que
a mim me trazem tonta e até muito temerosa. Pois, dar-lhes conselho, não é
remédio porque, como há tanto que tratam de virtudes, parece-lhes que podem
ensinar a outros e que lhes sobra razão sentindo aquelas coisas.
2. Enfim, eu não achei remédio nem acho para consolar semelhantes pessoas, a não
ser mostrar grande sentimento da sua pena (e na verdade, tem-se pena de as ver
sujeitas a tanta miséria), e não contradizer suas razões; porque todas as concertam
em seu pensamento, que é por Deus que as sentem e assim não vêm a entender que
é imperfeição. E é outro engano para gente tão aproveitada. Que o sintam, não é de
espantar, embora, a meu parecer, havia de passar depressa o sentimento de coisas
semelhantes. Porque muitas vezes quer Deus que Seus escolhidos sintam essa
miséria e aparta um pouco o Seu favor e não é preciso mais para que, de verdade,
nos conheçamos bem depressa. E logo se entende esta maneira de os provar: para
que eles compreendam a sua falta muito claramente; e, às vezes, dá-lhes mais pena
ver que, sem estar na sua mão, sentem as coisas da terra e não muito pesadas, do
que daquilo mesmo de que têm pena. Isto tenho-o eu por grande misericórdia de
Deus; e ainda que é falta, é muito vantajosa para a humildade.
3. Nas pessoas que digo, não é assim, senão que canonizam - como disse - em seus
pensamentos estas coisas, e assim quereriam que os outros as canonizassem. Quero
dizer algumas delas, para que nos entendamos e nos provemos a nós mesmas, antes
que nos prove o Senhor; pois seria bem grande coisa estarmos apercebidas e termonos
entendido primeiro.
4. A uma pessoa rica, sem filhos nem para quem ela queira a fazenda, vem-lhe uma
quebra de riqueza; mas não é de maneira que, do que lhe fica, lhe possa faltar o
necessário para si e para sua casa, e ainda de sobra. Se esta andasse com tanto
desassossego e inquietação como se não lhe ficasse um pão para comer, como háde
pedir-lhe Nosso Senhor que deixe tudo por Ele? Aqui começa a dizer que o
sente, porque o quer para os pobres. Por mim, creio que Deus mais quer que me
conforme com o que Sua Majestade faz e, embora procure fazê-la, aquiete a minha
alma e não esta caridade. E já que o não faz, por não a ter elevado o Senhor a tanto,
seja muito em boa hora; mas entenda que lhe falta esta liberdade de espírito e com
isto se disporá para que o Senhor lha dê, porque lha pedirá.
Tem uma pessoa bem de que comer, e até de sobra; oferece-se-lhe o poder adquirir
mais fortuna: tomá-la, se lha derem, seja em muito boa hora; mas procurá-la, e
depois de a ter, procurar mais e mais, tenha tão boa intenção que quiser (e deve ter
porque, como disse, são estas pessoas de oração e virtuosas), não haja medo que
subam às moradas mais perto do Rei.
5. Deste modo acontece, quando se lhes oferece alguma coisa, pela qual os
desprezem ou lhes tirem um pouco na honra; pois, embora lhes faça Deus mercê de
que muitas vezes o sofram bem (porque é muito amigo de favorecer a virtude em
público, para que não padeça a mesma virtude em que são tidos; e mesmo será
porque O têm servido, pois é muito bom este nosso Bem), lá lhes fica uma tal
inquietação, que não se podem valer, nem acaba de se acabar tão depressa. Valhame
Deus! Não são estes os que, há tanto tempo, consideram como padeceu o
Senhor e quão bom é padecer e até o desejam? Quereriam a todos tão concertados
como eles trazem suas vidas, e praza a Deus que não pensem que a pena que têm é
pela culpa alheia e a façam meritória em seu pensamento.
6. Parecer-vos-á, irmãs, que falo fora de propósito e não convosco, pois estascoisas
aqui não as há, porque nem temos fazenda, nem a queremos, nem a procuramos,
nem tão pouco alguém nos injuria. Por isso as comparações não aludem ao que se
passa; mas tira-se delas outras muitas coisas que podem acontecer, as quais não
seria bom assinalar, nem há para quê. Por estas entenderes se estais bem
desprendidas do que deixastes porque se oferecem coisitas, ainda que não bem
desta sorte, em que vos podereis muito bem provar e conhecer se estais senhoras
das vossas paixões. E crede-me que não está o negócio em ter hábito de religião ou
não, senão em procurar exercitar as virtudes e render a nossa vontade à de Deus em
tudo e que oconcerto da nossa vida seja o que Sua Majestade dela ordenar e não
queiramos que se faça a nossa vontade mas sim a Sua. Se não tivermos chegado até
aqui, tenhamos - como disse - humildade, que é o unguento para as nossas feridas;
porque, se a temos deveras, ainda que tarde algum tempo, virá o cirurgião, que é
Deus, a sarar-nos.
7. As penitências que fazem estas almas são tão concertadas como a sua vida.
Querem-na muito para servir a Nosso Senhor com ela, e tudo isto não é mau; assim
têm grande discrição em fazer penitências, para não causar dano à saúde. Não
tenhais medo que se matem, porque a sua razão está muito em si; não está ainda o
amor para pôr de parte a razão. Mas queria eu que a tivéssemos para não nos
contentarmos com esta maneira de servir a Deus, sempre passo a passo, que nunca
acabamos de andar este caminho. E, como a nosso parecer sempre andamos e nos
cansamos - porque crede que é um caminho custoso -, já será bem bom que não
nos percamos. Mas, parece-vos, filhas, que se indo duma terra a outra pudéssemos
chegar em oito dias, seria bom andar um ano por ventos, neves, chuvas e maus
caminhos? Não valeria mais passá-lo de urna vez? Porque tudo isto há e perigos de
serpentes. Oh! que bons sinais poderia eu dar disto. E praza a Deus que tenha
passado daqui, que bastantes vezes me parece que não.
8. Como vamos com tanto senso, tudo nos ofende, porque tudo tememos; e assim,
não ousamos passar adiante, como se nós pudéssemos chegar a estas moradas e
outros estivessem a caminho. Pois, como isto não é possível, esforcemo-nos, irmãs
minhas, por amor do Senhor; deixemos nossa razão e temores em Suas mãos;
esqueçamos esta fraqueza natural que muito nos pode ocupar. O cuidado destes
corpos tenham-no os prelados, e lá se avenham; nós tenhamo-lo só de caminhar
depressa para ver este Senhor; pois, embora o regalo que possais ter é pouco ou
nenhum, o cuidado da saúde nos poderia enganar, quanto mais que não se terá mais
por isso, eu o sei. E também sei que não está o negócio no que toca ao corpo, que
isto é o menos; pois o caminhar que digo, é com uma grande humildade; porque, se
bem e entendestes, creio estar aqui o mal das que não vão adiante e nos pareça que
temos andado poucos passos e assim o julguemos, e os que andam nossas irmãs
nos pareçam muito pressurosos, e não só desejemos, mas procuremos que nos
tenham pela mais ruim de todas.
9. E, com isto, este estado é excelentíssimo; e, se assim não é, toda a nossa vida
estaremos nele e com mil penas e misérias. Porque, como não nos deixamos a nós
mesmas, é muito trabalhoso e pesado, porque vamos muito carregadas com esta
terra da nossa miséria, que não levam os que sobem aos aposentos que faltam.
Nestes, não deixa o Senhor de pagar como justo, e ainda como misericordioso, pois
dá sempre muito mais do que merecemos, dando-nos contentamentos muito
maiores que os que podemos ter nos regalos e distracções desta vida. Mas não
penso que dê muitos gostos, a não ser alguma vez, para nos convidar a ver o que se
passa nas demais moradas, para que nos disponhamos a entrar nelas.
10. Parecer-vos-á que contentamentos e gostos é tudo o mesmo, para que eu faça
esta diferença nos nomes. A mim parece-me que a há e muito grande; bem me
posso enganar. Direi o que nisto entender nas quartas moradas que vêm depois
destas; porque, como se há-de declarar algo dos gostos que ali dá o Senhor, fica
melhor, e ainda que pareça sem proveito, poderá ser de algum, para que,
entendendo o que é cada coisa, possais; esforçar-vos a seguir o melhor; e é de
muito consolo para as almas que Deus leva até ali, e confusão para quem lhe
parece já ter tudo, e, se são; humildes, mover-se-ão a dar graças. Se há alguma falta
disto, dar-lhes-á um desgosto interior fora de propósito; pois, não está a perfeição
nos gostos, nem no prémio, senão em quem mais ama e em quem melhor opera
com justiça e verdade.
11. Direis: Para que serve tratar destas mercês interiores e dar a entender como são,
se isto é verdade, como é? Eu não o sei; pergunte-se a quem mo mandou escrever
que eu não estou obrigada a discutir com os superiores, mas a obedecer; nem seria
bem fazê-lo. O que vos posso dizer com verdade, é que, quando eu não as tinha,
nem ainda sabia por experiência, nem pensava sabê-lo em minha vida (e com
razão, que grande contentamento fora para mim saber ou por conjecturas entender
que agradava a Deus em algum modo), quando lia em livros destas mercês e
consolos que faz o Senhor às almas que O servem, isso me dava grandíssimo
prazer e era motivo para minha alma dar grandes louvores a Deus. Pois, se a
minha, com ser tão ruim, fazia isto, as que são boas e humildes O louvarão muito
mais; e por uma só que O louve uma vez, está muito bem que se diga, a meu
parecer, e que entendamos o contentamento e deleites que perdemos por nossa
culpa. Quanto mais que, se são de Deus, vêm carregados de amor e fortaleza, com
que se pode caminhar mais sem trabalho e ir crescendo nas obras e virtudes. Não
penseis que importa pouco que isto não falhe da: nossa parte, pois, quando não é
nossa a falta, justo é o Senhor, e Sua Majestade vos dará, por outros caminhos, o
que vos tira por este, pelo que Sua Majestade sabe, pois são mui ocultos Seus
segredos; pelo menos, será isso o que mais nos convém, sem dúvida nenhuma.
12. O que me parece nos faria muito proveito àquelas que pela bondade do Senhor
estão neste estado (que, como disse, não lhes faz pouca misericórdia, porque estão
muito perto de ir mais longe), é exercitarem-se muito na prontidão da obediência.
E mesmo que não sejam religiosos, seria grande coisa - como o fazem muitas
pessoas - ter a quem recorrer para não fazer em nada a sua vontade, que é o que
habitualmente nos causa dano; e não buscar alguém do seu humor, como dizem,
que vá sempre com muito tento em tudo, mas sim, procurar quem esteja muito
desenganado das coisas do mundo, pois, de grande modo, aproveita tratar com
quem já conhece o mundo para nos conhecermos e, porque algumas coisas que nos
parecem impossíveis vendo-se em outros tão possíveis e a suavidade com que as
levam, anima muito e parece que, com seu voo, nos atrevemos a voar, como fazem
os filhos das aves quando os ensinam. Ainda que não dêem grande voo, pouco a
pouco imitam os seus pais. De grande modo aproveita isto, eu o sei.
Por mais determinadas que estejam em não ofender o Senhor, semelhantes pessoas
procederão com acerto, não se metendo em ocasiões de O ofender; porque, como
estão perto das primeiras moradas, com facilidade poderão voltar a elas, porque a
sua fortaleza não está fundada em terra firme, como os que estão já exercitados em
padecer; estes conhecem as tempestades do mundo, e quão pouco têm a temer ou a
desejar seus contentamentos; e seria possível, com uma grande perseguição,
voltarem de novo a eles. O demónio bem as sabe urdir para lhes fazer mal, e
poderia suceder que, indo com bom zelo, querendo impedir pecados alheios, não
pudessem resistir ao que a isto sobreviesse.
13. Olhemos as nossas faltas e deixemos as alheias, pois é muito próprio de
pessoas tão concertadas espantarem-se de tudo; e porventura de quem nos
espantamos, bem poderíamos aprender no principal. Na compostura exterior e na
maneira de tratar, levamos-lhe vantagem; e não é isto o que tem mais importância,
embora seja bom, e nem há para quê querer logo que vão todos pelo nosso
caminho, nem pôr-se a ensinar o que é do espírito quem porventura não sabe o que
isso é; pois com estes desejos que Deus nos dá, irmãs, do bem das almas, podemos
cometer muitos erros. E assim é melhor ater-nos ao que diz a nossa Regra:
«procurar viver sempre em silêncio e esperança», que o Senhor terá cuidado de
nossas almas. Desde que não nos descuidemos de o suplicar a Sua Majestade,
faremos grande proveito com Seu favor. Seja para sempre bendito.
QUARTAS MORADAS
CAPÍTULO 1. Trata da diferença que há entre ternuras na oração e gostos, e diz o contento que
lhe deu entender que é coisa diferente o pensamento e o entendimento. É de grande proveito
para quem se recreia muito na oração.
1. Para começar a falar das quartas moradas, bem necessário é o que fiz, que foi
encomendar-me ao Espírito Santo e suplicar-Lhe que, daqui em diante, fale por
mim, para dizer alguma coisa das que ficam por dizer, de maneira que o entendais;
porque começam a ser coisas sobrenaturais, e é dificultosíssimo dá-las a entender,
se Sua Majestade não o faz, como fez,: há catorze anos, pouco mais ou menos,
quando escrevi em outra parte até onde eu havia entendido. Ainda que me parece
que tenho agora um pouco mais de luz destas mercês que o Senhor faz a algumas
almas, é diferente o sabê-las dizer. Faça-o Sua Majestade, se daí há-de seguir-se
algum proveito; e se não, não.
2. Como estas moradas já estão mais perto de onde está o Rei, é grande a sua
formosura e há coisas tão delicadas para ver e entender, que o entendimento não é
capaz de poder achar maneira de dizer sequer alguma coisa que venha tão ajustada,
que não fique bem obscura para os que não tenham experiência; pois, quem a tem,
muito bem entenderá, em especial se já é muita.
Parecerá que, para chegar a estas moradas, se deverá ter vivido nas outras muito
tempo; e embora o normal seja que se tenha estado na que acabamos de dizer, não
é regra certa, como tereis ouvido muitas vezes; porque o dá o Senhor, quando quer
e como quer e a quem quer, como bens Seus, e não faz agravo a ninguém.
3. Nestas moradas, poucas vezes entram as coisas peçonhentas e, se entram, não
fazem dano, antes deixam lucro. E tenho por muito melhor quando entram e dão
guerra neste estado de oração; porque poderia o demónio enganar, à volta dos
gostos que Deus dá, se não houvesse tentações, e fazer muito mais dano do que
quando as há, e não ganhar tanto a alma, pelo menos apartando todas as coisas que
a hão-de fazer merecer, e deixando-a num embevecimento habitual. Porque,
quando o embevecimento é habitual em um ser, não o tenho por seguro nem me
parece possível estar assim sempre num mesmo ser o espírito do Senhor neste
desterro.
4. Pois falando no que disse que diria aqui, da diferença que há entre
contentamentos na oração e gostos, contentamentos, me parece a mim, se pode
chamar aos que adquirimos com a nossa meditação e petições a Nosso Senhor, que
procedem do nosso natural, ainda que, enfim, ajuda para isso Deus, pois há-de-se
entenderem tudo quanto dissermos que nada podemos sem Ele; mas nascem da
mesma obra virtuosa que fazemos e parece que o ganhamos com nosso trabalho, e
com razão nos dá contentamento o termo-nos empregado em coisas semelhantes.
Mas se o considerarmos bem, os mesmos contentos teremos em muitas coisas que
podem suceder na terra. Assim, numa grande fazenda que de repente advém a
alguém, o ver de súbito uma pessoa que muito amamos ter acertado num negócio
importante ou numa coisa grande, de que todos nos dizem bem; se a alguma pessoa
lhe disserem que morreu seu marido ou irmão ou filho e o vê chegar vivo. Eu vi
derramar lágrimas dum grande contentamento e até mesmo me tem acontecido
algumas vezes. Parece-me a mim que, assim como estes contentamentos são
naturais, assim é nos que nos dão as coisas de Deus; embora de linhagem mais
nobre, ainda que aqueles também não eram de todo maus. Enfim começam no que
é natural em nós e acabam em Deus.
Os gostos começam em Deus e sente-os a natureza, e goza tanto deles como gozam
os que disse e muito mais. ó Jesus!, e que desejo tenho de saber declarar-me nisto!
Porque entendo, a meu parecer, mui conhecida diferença e não alcança o meu saber
o dar-me a entender; faça-o o Senhor.
5. Agora me lembro dum versículo que dizemos em Prima, ao fim do último
salmo, que ao terminar o versículo diz: «Cum dilatasti cor meum». A quem tiver
muita experiência, isto lhe basta para ver a diferença que vai de um ao outro; a
quem não a tiver, é preciso mais. Os contentos que dissemos não dilatam o
coração, antes habitualmente parece que o apertam um pouco, embora com grande
contentamento de ver o que se faz por Deus; mas vêm umas lágrimas de aflição,
que de alguma maneira parece as move a paixão. Eu sei pouco destas paixões da
alma - que talvez me desse a entender -, mas, como sou muito rude, não sei o que
procede da sensualidade e o que procede do nosso natural. Saberia declará-lo se,
assim como passei por isso, o entendesse. Grande coisa é o saber e as letras para
tudo.
6. O que tenho de experiência deste estado, digo destes regalos e contentos na
meditação, é que, se começava a chorar por causa da Paixão, não podia acabar até
que se me quebrava a cabeça; se o fazia por meus pecados, era o mesmo. Grande
mercê me fazia Nosso Senhor, e não quero agora examinar qual é melhor, se um se
outro. Apenas quereria saber dizer a diferença que há entre um e outro. Para estas
coisas vão algumas vezes estas lágrimas e estes desejos ajudados do natural e
conforme está a disposição; mas enfim, como disse, vêm a parar em Deus, ainda
que sejam naturais. E são para ter em muito, se houver humildade, para entender
que não se é melhor por isso; porque não se pode entender se todos são efeitos do
amor; e quando forem, são dados por Deus.
Na maior parte têm estas devoções as almas das moradas anteriores, porque andam
quase de contínuo com trabalho do entendimento, empregadas em discorrer com o
entendimento e em meditação; e vão bem, porque não lhes foi dado mais, ainda
que acertariam em ocupar-se um pouco em fazer actos e em louvores de Deus e em
se alegrarem da Sua bondade e que seja Quem é, e em desejar Sua honra e glória.
Isto como puderem, porque desperta muito a vontade. E estejam de sobreaviso,
quando o Senhor lhes der isto; não o deixem para acabar a meditação como se tem
por costume.
7. Porque me alarguei muito em dizer isto em outras partes, não o direi aqui. Só
quero que estejais advertidas que, para aproveitar muito neste caminho e subir às
moradas que desejamos, não está a coisa em pensar muito, senão em amar muito; e
assim, o que mais vos despertar ao amor, isso deveis fazer. Talvez não saibamos o
que é amar, e não me espantarei muito; porque não está no maior gosto, mas sim
na maior determinação de desejar contentar a Deus em tudo e procurar, tanto
quanto pudermos, não O ofender, e rogar-Lhe que vá sempre por diante a honra e
glória de Seu Filho e o aumento da Igreja Católica. Estes são os sinais do amor, e
não penseis que consiste em não pensar outra coisa, e que, se vos distraís um
pouco, vai tudo perdido.
8. Eu tenho andado nisto, nesta barafunda do pensamento, bem apertada algumas
vezes, e haverá pouco mais de quatro anos que vim a entender, por experiência,
que o pensamento (ou imaginação, para que melhor se entenda) não é o
entendimento. Perguntei-o a um letrado e disse-me que, efectivamente, era assim, o
que foi para mim grande contentamento. Por que, como o entendimento é uma das
potências da alma, tornava-se-me duro estar ele tão volúvel, às vezes, pois
normalmente voa o pensamento tão rápido, que só Deus o pode atar quando assim
nos ata, de maneira que parece estarmos de algum modo desatados deste corpo. Eu
via, a meu parecer, as potências da alma empregadas em Deus e estarem recolhidas
com Ele e, por outra parte, o pensamento alvorotado: trazia-me tonta.
9. Ó Senhor, tende em conta o muito que passamos neste caminho por falta de
saber! E o mal é que, como não pensamos ser preciso saber mais do que pensarem
Vós, nem sabemos perguntar aos que sabem, nem entendemos que haja que
perguntar, e passam-se terríveis trabalhos, porque não nos entendemos; e o que não
é mau, senão bom, pensamos que é grande culpa. Daqui procedem as aflições de
muita gente que trata de oração e o queixarem-se de trabalhos interiores, pelo
menos grande parte em gente que não tem letras, e vêm as melancolias e o
perderem a saúde e até o deixarem-na de todo, porque não consideram que há
dentro um mundo interior; e assim, como não podemos deter o movimento dos
céus, que anda à pressa com toda a velocidade, tão-pouco podemos deter o nosso
pensamento, e logo metemos todas as potências da alma com ele e nos parece que
estamos perdidas e mal gasto o tempo em que estamos diante de Deus. E a alma
está porventura toda unida a Ele nas moradas muito próximas e o pensamento nos
arredores do castelo, padecendo com mil animais ferozes e peçonhentos e
merecendo com este sofrimento; e assim, nem nos há-de perturbar nem o havemos
de deixar, que é o que pretende o demónio. E, na maior parte, todas as inquietações
e trabalhos vêm deste não nos entendermos.
10. Ao escrever isto, estou considerando o que se passa na minha cabeça, o grande
ruído que nela há, como disse ao princípio, pelo que se me tornou quase impossível
poder fazer o que me mandavam escrever. Não parece senão que nela estão muitos
rios caudalosos e, por outra parte, que estas águas se despenham; muitos
passarinhos e silvos, não nos ouvidos, mas na parte superior da cabeça, onde dizem
estar a parte superior da alma. E eu estive nisto muito tempo, por me parecer que o
grande movimento do espírito para cima subia com velocidade. Praza a Deus me
lembre, nas moradas mais adiante, de dizer a causa disto, pois aqui não fica bem, e
não será muito que o Senhor haja querido dar-me este mal de cabeça para melhor o
entender, porque, com toda esta barafunda que nela vai, não me estorvava a oração
nem o que estou dizendo, mas antes a alma está muito inteira em sua quietude e
amor e desejos de claro conhecimento.
11. Pois, se na parte superior da cabeça está a parte superior da alma, como não a
perturba? Isso é o que não sei, mas sei que é verdade o que digo. Dá pena quando
não é oração com suspensão, pois então, até que passe, não se sente nenhum mal;
mas grande mal seria se, por este impedimento, eu deixasse tudo. E assim não é
bem que nos perturbemos com os pensamentos, nem deles nada se nos dê, porque,
se vêm do demónio, cessará com isto; e se é, como é, da miséria que nos ficou de
pecado de Adão, com outras muitas, tenhamos paciência e soframo-lo por amor de
Deus, pois também estamos sujeitas a comer e dormir, sem nos podermos escusar,
o que é grande trabalho.
12. Reconheçamos a nossa miséria, e desejemos ir aonde "ninguém nos
menospreze"; pois algumas vezes me lembro de ter ouvido isto que dizia a Esposa
dos Cantares, e verdadeiramente não encontro em toda a vida coisa onde, com mais
razão, isto se possa dizer; porque todos os menosprezos e trabalhos que pode haver
na vida, não me parece que cheguem a estas batalhas interiores. Qualquer
desassossego e guerra se pode sofrer. achando paz onde vivemos, - como já disse -;
mas, que queiramos vir a descansar dos mil trabalhos que há no mundo, que queira
o Senhor preparar-nos o descanso e que em nós mesmas esteja o estorvo, não pode
deixar de ser muito penoso e quase insuportável. Por isso, levai-nos Senhor, aonde
não nos menosprezem estas misérias, que parecem algumas vezes estarem a fazer
escárnio da alma!
Ainda nesta vida a liberta disto o Senhor, quando chegar à última morada, como
diremos, se Deus for servido.
13. Nem a todas darão tanta pena estas misérias, nem as acometerão, como a mim
me fizeram muitos anos por ser tão ruim, que parece que eu mesma me queria
vingar de mim. E, como coisa tão penosa para mim, penso que talvez o seja assim
para vós e não faço senão dizê-lo de um cabo ao outro, para ver se alguma vez
acerto dar-vos a entender como é coisa forçosa e não vos traga inquietas e aflitas,
mas deixemos andar esta taramela do moinho e moamos nossa farinha, não
deixando de trabalhar com a vontade e o entendimento.
14. Há mais e menos neste estorvo, conforme a saúde e os tempos. Padeça a pobre
alma, ainda que não tenha culpa; pois outras teremos pelas quais é de razão que
tenhamos paciência. E, porque não basta o que lemos e nos aconselham, não
façamos caso destes pensamentos; para nós, que pouco sabemos, não me parece
tempo perdido todo o que gasto em declarar mais e em consolar-vos neste caso;
mas, até que o Senhor nos queira dar luz, pouco aproveita. Mas é preciso e quer
Sua Majestade que tomemos conhecimento e entendamos do que faz a fraca
imaginação, o natural, e o demónio, não deitemos a culpa à alma.
CAPÍTULO 2. Prossegue no mesmo e declara por uma comparação o que são gostos e como se
hão-de alcançar não os procurando.
1. Valha-me Deus! Onde me meti! Já tinha esquecido o que tratava, porque os
negócios e a saúde me fazem deixá-lo na melhor altura. E, como tenho pouca
memória, irá tudo desconcertado por não o poder tornar a ler. E mesmo talvez seja
tudo desconcerto quanto digo; ao menos é o que sinto.
Parece-me que fica dito das consolações espirituais, como algumas vezes vão
envoltos com as nossas paixões, trazem consigo uns alvorotos de soluços, e até
ouvi a pessoas que se lhes aperta o peito e mesmo lhes vêm movimentos exteriores,
a que não podem ir à mão; e é tal a força, que lhes faz sair sangue do nariz, e coisas
assim penosas. Disto não sei dizer nada, porque não passei por isso, mas deve ficar
consolação; porque, como digo, tudo vai pararem desejar contentar a Deus e gozar
da Sua Majestade.
2. Os que eu chamo gostos de Deus - que em outra parte chamei "oração de
quietude" são mui de outra maneira, como entendereis as que os tendes
experimentado, pela misericórdia de Deus. Façamos de conta, para o entender
melhor, que vemos duas fontes com dois tanques que se enchem de água, que não
acho coisa mais a propósito para declarar algumas coisas de espírito que isto de
água. Como sei pouco, e o engenho não ajuda e sou tão amiga deste elemento,
tenho olhado para ele com mais advertência, que para outras coisas; pois em todas
as que criou tão grande Deus, tão sábio, deve haver muitos segredos de que nos
podemos aproveitar, e assim fazem os que os entendem, embora eu creia que, em
cada coisinha que Deus criou, há mais do que se entende, ainda que seja uma
formiguita.
3. Estas dois tanques enchem-se de água de diferentes maneiras; para uma, vem de
mais longe, por muitos aquedutos e artifícios; a outra está feita na mesma nascente
da água e vai-se enchendo sem nenhum ruído. E se o manancial é caudaloso como
este de que falamos, depois de cheio o tanque, segue um grande arroio; não é
preciso artifício; nem mesmo se acaba o edifício dos aquedutos, que sempre está
correndo dali água.
A diferença está em que a água que vem por aquedutos, a meu parecer, são os
contentos que tenho dito que se tiram da meditação; porque os trazemos com os
pensamentos, ajudando-nos das criaturas na meditação e cansando o entendimento;
e como vem, afinal, com as nossas diligências, faz ruído quando houver alguma
enchente de proveitos que traz à alma, como fica dito.
4. A esta outra fonte, vem a água da sua mesma nascente, que é Deus; e assim,
como e quando Sua Majestade quer e é servido de fazer alguma mercê
sobrenatural, Ele produz esta água com grandíssima paz e quietação e suavidade no
mui interior de nós mesmos, eu não sei até onde, nem como, nem mesmo aquele
contento e deleite se sente como os de cá no coração - digo no seu princípio, que
depois tudo enche -; vai-se derramando esta água por todas as moradas e potências,
até chegar ao corpo; por isso disse e que começa em Deus e acaba em nós; e é
certo, como verá quem o tiver experimentado, todo o homem interior goza deste
gosto e suavidade.
5. Estava eu agora vendo - ao escrever isto -, que no versículo que diz: «Dilatasti
cor meum», disse que se dilatou o coração; e - como digo - não me parece que seja
coisa que nasce do coração, mas sim de outra parte ainda mais interior, como uma
coisa profunda. Penso que deve ser o centro da alma, como depois entendi e direi
no fim, que certo é, vejo segredos em nós mesmos que me trazem espantada muitas
vezes. E quantos mais deve haver! Ó Senhor meu e Deus meu, que grandes são
Vossas grandezas! E andamos por cá como uns pastorinhos tontos, parecendo-nos
que enxergamos alguma coisa de Vós e deve ser tanto como nada, pois em nós
mesmos há grandes segredos que não entendemos. Digo tanto como nada, para o
muito, muitíssimo que há em Vós; e não porque não sejam muito grandes as
grandezas que vemos, mesmo no que podemos alcançar das Vossas obras.
6. Voltando ao versículo, o que ele me pode aqui aproveitar, a meu parecer, é
aquela dilatação; pois parece que, assim que se começa a produzir aquela água
celestial deste manancial que digo, do profundo de nós mesmos, parece que se vai
dilatando e alargando todo o nosso interior e produzindo uns bens que não se
podem dizer, nem mesmo a alma sabe entender o que é aquilo que ali se lhe dá.
Sente uma fragrância interior - digamos agora - como se naquela profundidade
interior estivesse um braseiro onde se lançassem olorosos perfumes; nem se vê o
lume nem onde está; mas o calor e o fumo perfumado penetram toda a alma e até
bastantes vezes - como já disse -, participa o corpo. Olhai e entendei-me: nem se
sente calor nem se aspira perfume, pois isto é coisa mais delicada que estas coisas;
é apenas para vo-lo dar a entender. E entendam as pessoas que não passaram por
isto, que é verdade isto passar-se assim e que se entende, e que o entende a alma
mais claramente do que eu o digo agora. Não é isto coisa que se possa imaginar,
porque, por diligências que façamos, não o podemos adquirir e nisto mesmo se vê
não ser do nosso metal, senão daquele puríssimo oiro da sabedoria divina.
Aqui não estão as potências unidas, a meu parecer, mas embebidas e olhando como
espantadas o que será aquilo.
7. Poderá ser que nestas coisas interiores me contradiga um tanto do que tenho dito
em outras partes, Não é maravilha, porque em quase quinze anos desde que o
escrevi, talvez me tenha dado o Senhor mais claridade nestas coisas do que então
entendia e, agora como então, posso errar em tudo mas não mentir, que, por
misericórdia de Deus, antes passaria mil mortes. Digo o que entendo.
8. A vontade bem me parece que deve estar unida, de certa maneira, com a de
Deus; mas, nos efeitos e obras que depois se seguem, é que se conhecem estas
verdades da oração, pois não há melhor crisol para as provar. É bem grande mercê
de Nosso Senhor, se a conhece quem a recebe, e muito grande se não volta atrás.
Logo querereis, minhas filhas, procurar ter esta oração, e tendes razão; pois - como
disse - a alma não acaba de entender as mercês que ali lhe faz o Senhor e o amor
com que a vai achegando mais a Si. De certo está, desejando saber como
alcançaremos esta mercê. Eu vos direi o que nisto tenho entendido.
9. Deixemos o Senhor fazê-la quando é servido, por Sua Majestade o querer e não
por mais nada. Ele sabe o porquê; não nos havemos de meter nisso. Depois de
fazermos o mesmo que fazem os das moradas anteriores, humildade, humildade!
Por ela se deixa render o Senhor a tudo quanto d'Ele queremos. E a primeira coisa
em que vereis se a tendes, é em não pensar que mereceis estas mercês e gostos do
Senhor, nem que os haveis de ter em vossa vida. Direis: desta maneira, como se
hão-de alcançar não os procurando? A isto respondo, não há outra melhor do que
esta que vos, disse, e não os procurar pelas razões seguintes: Primeiro, porque a
primeira coisa, que para isto é mister, é amar a Deus sem interesse. Segundo,
porque não deixa de ser um pouco de falta de humildade pensar que, por nossos
serviços miseráveis, se há-de alcançar coisa tão grande. Terceiro, porque a
verdadeira preparação para isto é o desejo de padecer e de imitar ao Senhor e não o
ter gostos, nós que, enfim, O temos ofendido. Quarto,, porque Sua Majestade não
está obrigado a dar-nos gostos, como o está a dar-nos a Glória se guardarmos os
Seus mandamentos, pois, sem isto, nos poderemos salvar, e Ele sabe melhor que
nós o que nos convém e quem O ama de verdade. Assim é coisa certa, eu sei-o, e
conheço pessoas que vão, pelo caminho do amor como se deve ir, só para servir a
seu Cristo crucificado, que não só não Lhe pedem gostos nem os desejam, mas Lhe
suplicam que não lhos dê nesta vida. Isto é verdade. A quinta, porque
trabalharemos debalde, pois, como não se há-de trazer esta água por aquedutos
como a precedente, se o manancial não a quer produzir, pouco aproveita que nos
cansemos. Quero dizer que, por mais meditação que tenhamos e por mais que nos
apoquentemos e tenhamos lágrimas, não é por aqui, que esta água vem. Só se dá a
quem Deus quer e, muitas vezes, quando mais descuidada está a alma.
10. Suas somos, irmãs; faça de nós o que quiser, leve-nos por onde for servido.
Creio bem que, a quem de verdade se humilhar e desapegar (digo de verdade,
porque não o há-de ser só em nosso pensamento, que muitas vezes nos engana,
senão que estejamos desapegadas de todo), não deixará o Senhor de nos fazer esta
mercê, e outras muitas que não saberemos desejar. Seja Ele para sempre bendito.
Amen.
CAPÍTULO 3. Trata do que é oração de recolhimento. Na maior parte das vezes, a dá o Senhor
antes da oração acima dita. Diz seus efeitos e os que ficam da oração anterior em que tratou dos
gostos que dá o Senhor.
1. São muitos os efeitos desta oração; apenas direi alguns. Mas direi primeiro outra
maneira de oração que começa quase sempre antes desta, e, por tê-la dito em outras
partes, direi pouco. É um recolhimento que também me parece sobrenatural,
porque não é estar às escuras nem cerrar os olhos, nem consiste em coisa alguma
exterior, posto que, sem o querer, se faça isto de cerrar os olhos e desejar soledade;
e sem artifício, parece que se vai lavrando o edifício para a oração que fica dita;
porque estes sentidos e coisas exteriores parecem ir perdendo de seu direito, para
que a alma vá cobrando o seu que tinha perdido.
2. Dizem que a alma entra dentro de si e outras vezes que "sobe sobre si". Por esta
linguagem não saberei eu esclarecer nada, que isto tenho de mau: penso que por
aquilo que eu sei dizer de uma coisa o haveis de entender e talvez seja só claro para
mim. Façamos de conta que estes sentidos e potências são, como já disse, a gente
deste castelo - a comparação que tomei para saber dizer alguma coisa-, que saíram
fora e andam com gente estranha, inimiga do bem deste castelo, dias e anos; e que,
vendo sua perdição, já se têm vindo acercando dele, embora não cheguem a entrar
- porque este costume é coisa dura -, mas não são já traidores e andam ao redor.
Vendo já o grande Rei que está na morada deste castelo sua boa vontade, por Sua
grande misericórdia quer trazê-los de novo a Si e, como bom pastor, com um silvo
tão suave que até quase eles mesmos o não ouvem, faz com que conheçam Sua voz
e não andem tão perdidos, mas voltem à sua morada. E tem tanta força este silvo
do pastor, que desamparam as coisas exteriores em que andavam alheados e se
metem no castelo.
3. Parece-me que nunca o dei a entender como agora, porque, para buscar a Deus
no interior da alma (onde melhor O encontramos e com mais proveito para nós que
nas criaturas, como disse Santo Agostinho que aí O achou, depois de O ter
procurado em muitas partes), é grande a ajuda quando Deus faz essa mercê. E não
penseis que isto é adquirido pelo entendimento, procurando pensar que têm dentro
de si a Deus, nem pela imaginação, imaginando-O dentro de si. Bom é isto, e
excelente maneira de meditação, porque se funda sobre esta verdade: o estar Deus
dentro de nós mesmos; mas não é isto, pois cada um o pode fazer (com o favor do
Senhor, bem se entende). Mas o que digo é de maneira diferente, e algumas vezes,
antes que se comece a pensarem Deus, já esta gente está no castelo, que não sei por
onde nem como ouviu o silvo do pastor. E não foi pelos ouvidos, que não se ouve
nada, mas sente-se notavelmente um recolhimento suave para o interior, como verá
quem passa por isto, que eu não o sei aclarar melhor. Parece-me ter lido que é
como um ouriço ou tartaruga, quando se escondem em si mesmos; e devia entendêlo
bem quem o escreveu. Mas estes entram em si quando querem; aqui isto não
está no nosso querer, senão quando Deus nos quer fazer esta mercê. Tenho para
mim que, quando Sua Majestade a faz, é a pessoas que já vão dando de mão às
coisas do mundo. Não digo que seja pondo-o por obra aqueles que têm estado, que
não podem, mas sim pelo desejo, pois chama-os particularmente para que estejam
atentos às coisas interiores; e assim creio que, se queremos dar lugar a Sua
Majestade, Ele não dará só isto a quem já começou a chamar para mais.
4. Louve-O muito quem reconhecer isto em si, porque é muitíssimo justo que se
entenda a mercê, e a acção de graças que se dá por ela fará com que a alma se
disponha para outras maiores. E é também disposição para poder escutar a Deus,
como se aconselha em alguns livros, procurar não discorrer, mas estar-se atentos a
ver o que o Senhor opera na alma; e, se Sua Majestade não começou a embebernos,
não posso acabar de entender como se possa deter o pensamento de maneira
que não faça mais dano que proveito, ainda que isto tenha sido contenda bem
pleiteada entre algumas pessoas espirituais. Eu por mim confesso a minha pouca
humildade: nunca me deram razões para que eu me renda ao que dizem. Um me
alegou certo livro do santo Frei Pedro de Alcântara - que eu creio que o é -, a quem
eu me renderia, porque sei que o sabia; e lemo-lo e diz o mesmo que eu, ainda que
por outras palavras; g mas entende-se no que disse que há-de estar já desperto o
amor. Bem pode ser que eu me engane, mas vou por estas razões:
5. A primeira, é que nesta obra de espírito, quem menos pensa e quer fazer, é que
faz mais. O que devemos fazer é pedir como pobres necessitados diante dum rico
imperador e logo baixar os olhos e esperar com humildade. Quando por seus
secretos caminhos parece que entendemos que nos ouve, então é bom calar, pois
nos deixou estar junto d'Ele e não será mau procurar não trabalhar com o
entendimento - se podemos, digo -. Mas, se ainda não entendemos que este Rei nos
ouviu e nos vê, não havemos de ficar pasmados, e não pouco o fica a alma quando
isto procurou; quando se escondem em si mesmos; e devia entendê-lo bem quem o
escreveu. Mas estes entram em si quando querem; aqui isto não está no nosso
querer, senão quando Deus nos quer fazer esta mercê. Tenho para mim que,
quando Sua Majestade a faz, é a pessoas que já vão dando de mão às coisas do
mundo. Não digo que seja pondo-o por obra aqueles que têm estado, que não
podem, mas sim pelo desejo, pois chama-os particularmente para que estejam
atentos às coisas interiores; e assim creio que, se queremos dar lugar a Sua
Majestade, Ele não dará só isto a quem já começou a chamar para mais.
4. Louve-O muito quem reconhecer isto em si, porque é muitíssimo justo que se
entenda a mercê, e a acção de graças que se dá por ela fará com que a alma se
disponha para outras maiores. E é também disposição para poder escutar a Deus,
como se aconselha em alguns livros, procurar não discorrer, mas estar-se atentos a
ver o que o Senhor opera na alma; e, se Sua Majestade não começou a embebernos,
não posso acabar de entender como se possa deter o pensamento de maneira
que não faça mais dano que proveito, ainda que isto tenha sido contenda bem
pleiteada entre algumas pessoas espirituais. Eu por mim confesso a minha pouca
humildade: nunca me deram razões para que eu me renda ao que dizem. Um me
alegou certo livro do santo Frei Pedro de Alcântara - que eu creio que o é -, a quem
eu me renderia, porque sei que o sabia; e lemo-lo e diz o mesmo que eu, ainda que
por outras palavras; g mas entende-se no que disse que há-de estar já desperto o
amor. Bem pode ser que eu me engane, mas vou por estas razões:
5. A primeira, é que nesta obra de espírito, quem menos pensa e quer fazer, é que
faz mais. O que devemos fazer é pedir como pobres necessitados diante dum rico
imperador e logo baixar os olhos e esperar com humildade. Quando por seus
secretos caminhos parece que entendemos que nos ouve, então é bom calar, pois
nos deixou estar junto d'Ele e não será mau procurar não trabalhar com o
entendimento - se podemos, digo -. Mas, se ainda não entendemos que este Rei nos
ouviu e nos vê, não havemos de ficar pasmados, e não pouco o fica a alma quando
isto procurou; e fica muito mais seca e porventura mais inquieta a imaginação com
a força que se fez para não pensar nada. Mas quer o Senhor que Lhe peçamos e
consideremos estar em Sua presença, que Ele sabe o que nos convém Eu não posso
persuadir-me a recorrer a destrezas humanas em coisas a que Sua Majestade parece
ter posto o limite e quis guardar para Si, o que não fez a outras muitas, que
podemos fazer com Sua ajuda, tanto de penitências, como de obras, e de oração,
até onde pode nossa miséria.
6. A segunda razão é que estas obras interiores são todas suaves e pacíficas, e fazer
coisa penosa mais prejudica que aproveita. Chamo coisa penosa a qualquer esforço
que se quisesse fazer, como seria o de conter o fôlego; e não é isso o que convém,
mas sim abandonar-se a alma nas mãos de Deus; faça dela o que Ele quiser, com o
maior desprendimento que puder de seu proveito e maior resignação à vontade de
Deus.
A terceira é que o mesmo cuidado que se põe em não pensar nada talvez despertará
o pensamento para pensar muito.
A quarta é, que o mais substancial e agradável a Deus é que nos lembremos de Sua
honra e glória e nos esqueçamos de nós mesmos e do nosso proveito, regalo e
gosto. Pois, como estará esquecido de si aquele que está com tanto cuidado, que
nem ousa bulir nem sequer deixa que seu entendimento e desejos se movam a
desejar a maior glória de Deus nem se alegrem por aquela que Deus tem? Quando
Sua Majestade quer que o entendimento cesse, ocupa-o de outra maneira e dá ao
conhecimento uma luz tão acima da que podemos alcançar, que o faz ficar absorto;
e então, sem saber como, fica muito melhor ensinado do que com todas as nossas
diligências que mais o deitariam a perder. Pois, se Deus nos deu as potências para
que com elas trabalhássemos e tudo tem o seu valor, não há para que tê-las
encantadas, mas deixá-las fazer seu ofício, até que Deus as ponha noutro maior.
7. O que entendo que mais convém à alma a quem o Senhor quis meter nesta
morada é fazer o que fica dito, e que, sem nenhum esforço nem ruído, procure
atalhar o discorrer do entendimento, mas não suspendê-lo, nem ao pensamento;
mas sim é bom que se lembre que está diante de Deus e Quem é este Deus. Se
aquilo mesmo que sente em si o embeber, tanto melhor; mas não procure entender
o que é, porque é dom feito à vontade. Deixe-a gozar sem nenhuma indústria, além
de algumas palavras amorosas porque, embora não procuremos estar aqui sem
pensar em nada, está-se assim muitas vezes, ainda que por muito breve tempo.
8. Mas, - como disse noutra parte -, a causa por que nesta maneira de oração (falo
naquela pela qual comecei esta morada, pois meti com esta oração a de
recolhimento de que devia ter falado primeiro, porque é muito menos que a dos
gostos de Deus de que falei mas que é princípio para chegar a ela; que na de
recolhimento não se há-de deixar a meditação, nem o trabalho do entendimento) ...
nesta fonte manancial, que não vem por alcatruzes, o entendimento se contém ou o
faz conter, ao ver que não entende o que quer, e assim anda de um lado para outro
como tonto que em nada toma assento. Quanto à vontade, ela está tão assente em
seu Deus, que lhe dá grande pesar o bulício do entendimento; e assim, não há que
fazer caso dele, pois a fará perder muito do que goza, mas deixá-lo e deixar-se a si
nos braços do amor que Sua Majestade lhe ensinará o que há-de fazer naquele
ponto, que quase tudo é achar-se indigna de tanto bem e empregar-se em acção de
graças.
9. Por tratar da oração de recolhimento, deixei os efeitos ou sinais que têm as
almas a quem Deus Nosso Senhor dá esta oração. Assim, entende-se claramente
urna dilatação ou alargamento na alma, tal como se a água, que mana duma fonte,
não tivesse para onde correr, mas a mesma fonte fosse duma coisa que, quanto
mais água manasse, maior ela se fizesse: assim parece acontecer nesta oração, e
outras muitas maravilhas que Deus faz na alma, que a habilita e vai dispondo para
que tudo caiba nela. Assim, esta suavidade e dilatação interior se vê na liberdade
que lhe fica para não estar tão atada como antes nas coisas do serviço de Deus, mas
sim com muito mais largueza de espírito. Assim, em não se tolher com temor do
inferno, porque embora lhe fique maior de ofender a Deus, o temor servil perde-se
aqui, fica com grande confiança que O há-de gozar. Já não tem o temor que
costumava ter de fazer penitência e de perder a saúde; já lhe parece que tudo
poderá em Deus, tem mais desejos de a fazer que até ali. O temor que costumava
ter aos trabalhos já vai mais moderado, porque está mais viva a fé e entende que, se
os passar por Deus, Sua Majestade lhe dará graça para os sofrer com paciência; e
até mesmo algumas vezes os deseja, porque fica também uma grande vontade de
fazer alguma coisa por Deus. Como vai conhecendo melhor Suas grandezas, temse
já por mais miserável; como já provou dos gostos de Deus, vê que os do mundo
são lixo, vai-se apartando deles, pouco a pouco, e é mais senhora de si para o fazer.
Enfim, em todas as virtudes fica melhorada e não deixará de ir crescendo, se não
volta atrás a ofender a Deus, porque então tudo se perde, por mais que uma alma
tenha subido ao cume. Tão-pouco se deve entender que, por uma vez ou duas que
Deus faça esta mercê a uma alma, fiquem feitas todas estas que dissemos, se ela
não vai perseverando em as receber, pois nesta perseverança está todo o nosso
bem.
10. De uma coisa aviso muito a quem se vir neste estado: que se guarde muito e
muito de se pôr em ocasião de ofender a Deus; porque aqui não está ainda a alma
criada, senão como menino que começa a mamar; se se aparta do peito de sua mãe,
que se pode esperar dele senão a morte? Eu temo muito que, a quem Deus tiver
feito esta mercê e se aparta da oração, acontecerá assim; não sendo por gravíssimo
motivo, ou se não voltar logo a ela, porque irá de mal a pior. Eu sei que há muito
que temer neste caso, e conheço algumas pessoas que me trazem muito pesarosa e
tenho visto o que digo, por se terem apartado de Quem, com tanto amor, se lhes
queria dar por Amigo, e o mostrar por obras. E assim aviso tanto que se não metam
em ocasiões, porque muito mais faz o demónio por uma alma destas do que por
muitas e muitas a quem o Senhor não fizer estas mercês; pois lhe podem fazer
grande dano com o levar outras consigo e fazer porventura grande proveito na
Igreja de Deus. E ainda que não haja outra coisa senão ver que Sua Majestade lhes
mostra amor particular, isto basta para que o demónio se desfaça para que se
percam; e assim são muito combatidas e ficam muito mais perdidas do que outras,
se se perdem.
Vós, irmãs, estais livres destes perigos, tanto quanto podemos entender. Deus vos
livre da soberba e vanglória; e de que o demónio queira contrafazer estas mercês,
conhecer-se-á porque não fará estes efeitos, mas sim tudo ao revés.
11. De um perigo vos quero avisar (ainda que vo-lo disse já noutra parte) em que vi
cair pessoas de oração, em especial mulheres, porque, como somos mais fracas, há
mais lugar para o que vou dizer. É que algumas, de muita penitência, oração e
vigílias e ainda sem isto, são fracas de compleição; em tendo algum consolo,
sujeita-as o natural; e, como sentem algum contento interior e quebrantamento
exterior e uma fraqueza, quando há um sono a que chamam espiritual, que é um
pouco mais do que fica dito,"parece-lhes que é igual ao outro e deixam-se
embevecer. E, quanto mais a isso se entregam, mais se embevecem, porque se
enfraquece mais a natureza e, a seu juízo, lhes parece arroubamento; e chamo-lhe
eu pasmaceira, pois não é outra coisa senão estar ali perdendo tempo e gastando a
saúde.
12. A uma lhe acontecia estar assim oito horas, que nem estão sem sentido nem
sentem coisa alguma de Deus. Com dormir e comer e não fazer tanta penitência,
tirou-se-lhe isto a esta pessoa, porque houve quem a entendesse; que a seu
confessor trazia enganado e a outras pessoas e a si mesma, ainda que ela não queria
enganar. Creio bem que o demónio fazia alguma diligência para tirar algum lucro e
não começava a tirar pouco.
13. Há-de-se entender que, quando é coisa verdadeiramente de Deus, embora haja
decaimento interior e exterior, não o há na alma; antes tem grandes sentimentos ao
ver-se tão junto de Deus, e também não dura tanto, mas sim muito pouco tempo,
bem que se torne a embevecer; mas nesta oração, se não é fraqueza - como disse -,
não chega a tanto que derrube o corpo nem faça nele algum sinal exterior. Por isso,
estejam de sobreaviso para que, quando isto sentirem em si, o digam à prelada e
distraiam-se quanto puderem, e ela faça com que não tenham tantas horas de
oração, senão muito pouco tempo, e procure que durmam bem e comam até que
lhes torne a vir a força natural, se se perdeu por isto. Se é de tão fraco natural que
não baste isto, creiam-me que não a quer Deus senão para a vida activa, pois de
tudo tem de haver nos mosteiros; ocupem-na em ofícios e sempre se tenha conta
em que não tenha muita soledade, porque virá a perder de todo a saúde. Grande
mortificação será para ela; o Senhor quer aqui provar o amor que ela Lhe tem, no
modo como sofre esta ausência e será servido de lhe tornar a dar as forças depois
de algum tempo e, se não, com oração vocal e com obedecer, ganhará e merecerá o
que deveria merecer por aqui, ou porventura mais.
14. Também poderia haver algumas tão fracas de cabeça e de imaginação, -como
eu conheci -, que lhes parece ver tudo quanto pensam; é muito perigoso. Como
talvez se venha a tratar disto mais adiante, não direi aqui mais nada, pois alongueime
muito nesta morada, porque é nela que creio entram mais almas. E, como
também entra o natural juntamente com os sobrenatural, o demónio pode fazer
mais dano; pois, nas moradas que estão por dizer, não lhe dá o Senhor tanto lugar.
Seja Ele para sempre louvado, amen.
QUINTAS MORADAS
CAPÍTULO 1. Começa a tratar como na oração se une a alma com Deus. Diz em que se
conhecerá não ser engano.
1. Ó irmãs! como vos poderei eu dizer a riqueza e tesouros e deleites que há nas
quintas moradas? Creio será melhor não dizer nada das que faltam, pois não se háde
saber dizer, nem o entendimento o sabe entender, nem as comparações podem
servir para o declarar; porque são muito baixas as coisas da terra para este fim.
Enviai do Céu, Senhor meu, a luz para que eu possa dar alguma a estas Vossas
servas, pois sois servido que gozem algumas delas tão habitualmente destes gozos,
para que não sejam enganadas, transfigurando-se o demónio em anjo de luz, pois
elas empregam todos os seus desejos em desejar contentar-Vos.
2. E ainda que disse "algumas", bem poucas há que não entrem nesta morada que
agora direi. Há mais e menos, e por isso digo que são mais as que entram nelas.
Em algumas coisas das que direi que há neste aposento, creio bem que são poucas
as que entram; mas, embora não seja senão chegar à porta, é grande a misericórdia
que Deus lhes faz; porque, ainda que são muitos os chamados, são poucos os
escolhidos. Assim digo agora que, embora todas as que trazemos este hábito
sagrado do Carmo somos chamadas à oração e contemplação (porque este foi
nosso princípio, desta casta vimos, daqueles nossos santos Padres do Monte
Carmelo, que em tão grande solidão e com tanto desprezo do mundo buscavam
este tesouro, esta preciosa margarita de que falamos), poucas nos dispomos para
que o Senhor no-la faça encontrar. Porque quanto ao exterior, vamos bem para
chegar ao que é preciso nas virtudes; mas para chegar aqui, temos muita
necessidade, e não nos descuidar nem pouco nem muito. Por isso, minhas irmãs,
agora é pedir ao Senhor, já que de alguma maneira podemos gozar do Céu na terra,
que nos dê Seu favor para que não falhe por nossa culpa e nos mostre o caminho e
dê forças na alma para cavar até achar este tesouro escondido, pois é verdade que
está em nós mesmas, e isto queria eu dar a entender, se o Senhor for servido que o
saiba fazer.
3. Disse «forças na alma», para que entendais que não fazem falta as do corpo a
quem Deus Nosso Senhor não as dá; não impossibilita ninguém de adquirir Suas
riquezas; contanto que cada um dê o que tiver, já se contenta. Bendito seja tão
grande Deus. Mas olhai, filhas, que, para isto de que tratamos, não quer que vos
fiqueis com nada: pouco ou muito, tudo o quer para Si, e conforme ao que
entenderdes que tendes dado, ser-vos-ão feitas maiores ou menores mercês. Não há
maior prova para entender se a nossa oração chega ou não à união. Não penseis
que é coisa sonhada, como a oração passada. Digo sonhada, porque assim parece
que está a alma como que adormecida, que nem parece que está bem a dormir nem
se sente desperta. Aqui, estão todas adormecidas e bem adormecidas às coisas do
mundo e a nós mesmas (porque, na verdade, fica-se como sem sentidos durante o
pouco tempo que dura, nem se pode pensar, ainda que se queira), aqui não é
preciso artifício para suspender o pensamento; [4] até o amar - se o faz -, não
entende como, nem o que é que ama, nem o que queria; enfim; como quem de todo
está morto ao mundo para viver mais em Deus. E assim é uma morte saborosa, um
arrancar de alma de todas as operações que pode ter, estando no corpo; deleitosa
porque, ainda que de verdade pareça que a alma se aparta dele, é para melhor estar
em Deus, e de tal maneira que até não sei se lhe fica vida para respirar (agora o
estava pensando e parece-me que não, ao menos se o faz não se entende que o faz),
todo o seu entendimento se quereria empregar em entender algo do que sente e,
como não chegam suas forças, fica-se espantado de maneira que, se não se perde
de todo, não meneia pé nem mão, como se costuma dizer duma pessoa que está tão
desmaiada, que nos parece morta.
Oh! segredos de Deus! Não me cansaria de procurar como vo-lo dar a entender, se
pensasse acertar em alguma coisa, e assim direi mil desatinos, para se alguma vez
atinar, louvemos muito ao Senhor.
5. Disse que não era coisa sonhada, porque na morada que fica dita, até que a
experiência seja muita, fica a alma duvidosa do que foi aquilo: se foi ilusão, se
estaria sonhando, se foi dado por Deus, ou se o demónio se transfigurou em anjo de
luz. Fica com mil suspeitas e é bem que as tenha; porque - como disse -, até a
própria natureza nos pode enganar ali alguma vez; pois, embora não haja tanto
lugar para entrarem as coisas peçonhentas, umas lagartixas sim, porque são
delgadas e por onde quer que seja se metem; e conquanto não façam dano, em
especial se não fazem caso delas - como disse -, porque são pensamentos que
procedem da imaginação e do que fica dito, importunam muitas vezes. Aqui, por
delgadas que sejam as lagartixas não podem entrar nesta morada; porque nem há
imaginação, nem memória nem entendimento que possa impedir este bem. E
ousarei afirmar que, se é verdadeiramente união de Deus, não pode entrar o
demónio nem fazer nenhum dano; porque está Sua Majestade tão junto e unido
com a essência da alma, que ele não ousará aproximar-se, nem mesmo deve
entender este segredo. E é claro; pois, se dizem que não entende o nosso
pensamento, menos entenderia coisa tão secreta, que Deus nem a fia do nosso
pensamento. Oh! grande bem, situação onde este maldito não nos faz mal! Assim
fica a alma com tão grandes lucros, por Deus trabalhar nela sem que ninguém O
estorve, nem nós mesmos! Que vos não dará Quem é tão amigo de dar e pode dar
tudo o que quer?
6. Parece que vos deixo confusas dizendo se é união de Deus e que há outras
uniões. E... se as há! Ainda que sejam em coisas vãs, quando cá se amam muito,
também os transportará o demónio; mas não da maneira que Deus o faz nem com o
deleite e satisfação e paz e gozo da alma. É sobre todos os gozos da terra, sobre
todos os deleites e sobre todos os contentos, e mais ainda; pois, considerando onde
se engendram, nada têm que ver estes contentos com os da terra, que é muito
diferente seu sentir, como o tereis experimentado. Disse eu uma vez que é como se
fosse nesta grosseria do corpo ou na medula e atinei bem, pois não sei como dizêlo
melhor.
7. Parece-me que ainda não vos vejo satisfeitas porque vos parecerá que vos podeis
enganar, que este interior é coisa difícil de examinar; e, ainda que, para quem tenha
passado por isto, basta o que fica dito, porque é grande a diferença, quero dar-vos
um sinal claro, pelo qual não vos podeis enganar nem duvidar se foi de Deus, que
Sua Majestade mo trouxe hoje à memória, e, a meu parecer, é o sinal certo. Sempre
em coisas dificultosas, ainda que me pareça que entendo e digo a verdade, uso esta
linguagem de que «me parece»; porque, se me enganar, estou bem preparada a
acreditar no que disseram os que têm muitas letras. Porque, ainda que não tenham
passado por estas coisas, têm um não sei quê, os grandes letrados, que, como Deus
os tem para luz da Sua Igreja, quando é uma verdade, dá-lhes luz para que as
admitam; e se não são dissipados, mas servos de Deus, nunca se espantam de Suas
grandezas, pois bem têm entendido que Ele pode muito e muito mais. E, enfim,
embora algumas coisas não sejam tão declaradas, outras devem achar escritas, por
onde vêem que estas também podem suceder.
8. Disto tenho grandíssima experiência, e também a tenho de uns meios letrados
espantadiços, que me custaram muito caro. Pelo menos, creio que, quem não crer
que Deus pode muito mais e que teve e tem por bem de o comunicar algumas
vezes às Suas criaturas, tem bem cerrada a porta para receber tais mercês. Por isso,
irmãs, nunca isto vos aconteça, mas crede de Deus muito mais e mais e não
ponhais os olhos em se são ruins ou bons aqueles a quem Deus as faz, pois Sua
Majestade o sabe, como vos disse. Não temos de nos meter nisso, senão com
simplicidade de coração e humildade servir a Sua Majestade e louvá-lO por suas
obras e maravilhas.
9. Pois, voltando ao sinal que digo ser o verdadeiro, já vedes esta alma a quem
Deus fez tonta de todo para melhor imprimir nela a verdadeira sabedoria, que nem
vê, nem ouve, nem entende o tempo em que está assim, que sempre é breve, e até
muito mais breve lhe parece a ela do que deve ser. Fixa-Se Deus a Si mesmo no
interior daquela alma de modo que, quando volta a si, de nenhuma maneira pode
duvidar que esteve em Deus e Deus nela. Com tanta firmeza lhe fica esta verdade,
que, ainda que passem anos sem Deus voltar e fazer-lhe aquela mercê, nem lhe
esquece nem pode duvidar que esteve assim. Isto, sem falar dos efeitos com que
fica, dos quais falarei depois; isto é o que faz muito ao caso.
10. Pois dir-me-eis: como viu e como entendeu isto, se não se vê nem se entende?
Não digo que o viu então, senão que o vê depois claramente; e não porque seja
visão, mas sim uma certeza que fica na alma, que só Deus a pode dar. Eu sei duma
pessoa que não tinha chegado ao conhecimento que Deus estava em todas as coisas
por presença e potência e essência e, por uma mercê que Deus lhe fez desta sorte, o
veio a crer de tal maneira, que embora um meio letrado dos que tenho dito, a quem
perguntou o modo como estava Deus em nós (ele sabia tão pouco como ela antes
de Deus lho dar a entender), lhe disse que estava somente pela graça, ela tinha já
tão fixa a verdade, que não acreditou e perguntou a outros que lhe disseram a
verdade, com o que se consolou muito.
11. Não vos haveis de enganar parecendo-vos que esta certeza fica em forma
corporal, como o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo está no Santíssimo
Sacramento, ainda que não O vejamos; porque aqui não fica assim, mas só a
Divindade. Pois, se o que não vimos, como nos fica com essa certeza? Isso não o
sei eu, são obras Suas; mas sei que digo a verdade, e quem não ficar com esta
certeza, não diria eu que é união de toda a alma com Deus, senão de alguma
potência, ou outras muitas maneiras de mercês que Deus faz à alma. Em todas
estas coisas não havemos de buscar razões para ver como foi; pois, se não chega o
nosso entendimento a entendê-lo, para que nos queremos desvanecer? Basta ver
que é todo poderoso Quem o faz, pois nada podemos, por mais diligências que
façamos para o alcançar, senão que é Deus que o faz, não o queiramos entender.
12. Agora me lembro, acerca disto que digo, de nada contribuirmos da nossa parte,
do que tendes ouvido que diz a Esposa nos Cantares: «Levou-me o Rei à adega do
vinho» ou «meteu-me», creio que diz. E não diz que foi ela. E diz também que
"andava buscando a seu Amado, por uma e outra parte". Esta, entendo eu é a adega
onde nos quer meter o Senhor, quando quer e como quer; mas, por mais diligências
que façamos, não podemos entrar. Sua Majestade é Quem nos há-de meter e entrar
Ele no centro da nossa alma; e, para melhor mostrar Suas maravilhas, não quer;
que nisto tenhamos mais parte do que a da vontade que de todo se Lhe rendeu, nem
que se Lhe abra a porta das potências e dos sentidos, pois todos estão adormecidos;
mas entrar no centro da alma sem porta alguma, como entrou onde estavam Seus
discípulos quando disse: « Pax vobis», e saiu do sepulcro sem levantar a pedra.
Adiante vereis como Sua Majestade quer que O goze a alma em seu mesmo centro,
e ainda muito mais do que aqui, na última morada.
13. Ó filhas! muito veremos se não quisermos ver mais que a nossa baixeza e
miséria, e entender que não somos dignas de ser servas de um Senhor tão grande,
que nem podemos alcançar Suas maravilhas! Seja Ele para sempre louvado, amen.
CAPÍTULO 2. Prossegue no mesmo. Declara a oração de união por uma comparação delicada.
Diz os efeitos com que fica a alma. É muito para ter em conta.
1. Parecer-vos-á que já está dito tudo o que há a ver nesta morada, mas falta muito,
porque - como disse - há mais e menos. Quanto ao que é união, não creio que
saberei dizer mais; mas quando a alma a quem Deus faz estas mercês se dispõe, há
muitas coisas a dizer do que o Senhor opera nelas. Algumas direi e do modo como
ela fica. Para melhor o dar a entender, quero aproveitar-me duma comparação que
é boa para este fim; e também para vermos como, embora nesta obra que faz o
Senhor não possamos fazer nada, podemos fazer muito, dispondo-nos z para que
Sua Majestade nos faça esta mercê.
2. Já tereis ouvido as maravilhas de Deus no modo corno se cria a seda, que só Ele
pode fazer semelhante invenção, e como, de uma semente, que é à maneira de
pequenos grãos de pimenta (que eu nunca vi, mas ouvi-o dizer, e assim, se algo for
torcido, não é minha a culpa), com o calor, em começando a haver folhas nas
amoreiras, começa esta semente a viver; até que haja este mantimento de que se
sustenta, está como morta. E com folhas de amoreira se criam, até que, depois de
grandes, lhes põem uns ramitos e aí, com as boquitas, vão por si mesmas fiando a
seda, e fazem uns casulos muito apertados onde se encerram e acabam esta larva,
que é grande e feia, e sai do mesmo casulo uma borboletazinha branca, muito
graciosa. Mas, se isto não se visse e no-lo contassem de outros tempos, quem o
poderia crer? E com que razões poderíamos concluir que uma coisa tão sem razão
como é uma lagarta ou uma abelha, seja tão diligente em trabalhar para nosso
proveito e com tanta indústria, e a pobre lagartixa perca a vida na demanda? Para
um pouco de meditação basta isto, irmãs, ainda que não vos diga mais, pois nisto
podeis considerar as maravilhas e sabedoria do nosso Deus.
Pois, que seria se conhecêssemos a propriedade de todas as coisas? De grande
proveito é ocuparmo-nos em pensar estas grandezas alegrarmo-nos em ser esposas
de Rei tão sábio e poderoso.
3. Tornemos ao que dizia. Então começa a ter vida esta lagarta quando, com o
calor do Espírito Santo, se começa a aproveitar do auxilio geral que Deus nos dá a
todas, e quando começa a aproveitar-se dos remédios que deixou na Sua Igreja,
assim de como continuar com as confissões, como também com boas leituras e
sermões, que são o remédio que pode ter uma alma que está morta em seu descuido
e pecados e metida em ocasiões. Então começa a viver e vai-se sustentando nisto e
em boas meditações, até estar crescida, que é o que a mim me faz ao caso, pois o
resto pouco importa.
4. Crescida, pois, esta lagarta - que é o que fica dito no principio disto que escrevi -
, começa a fabricar a seda e a edificar a casa onde há-de morrer. Esta casa quereria
eu dar a entender aqui, que é Cristo. Em qualquer parte me parece ter lido ou
ouvido que nossa vida está escondida em Cristo ou em Deus, o que é tudo um, ou
que nossa vida é Cristo. Que isto seja ou não, pouco faz ao meu propósito.
5. Pois vedes aqui, filhas, o que podemos fazer com o favor de Deus: que Sua
Majestade mesmo seja nossa morada, como o é na oração de união, edificando-a
nós mesmas! Parece que quero dizer que podemos tirar e pôr alguma coisa em
Deus, pois digo que Ele é a morada, e que a podemos fabricar para nos metermos
nela. Oh! se o podemos! Não tirar ou acrescentar em Deus, mas sim tirar e
acrescentar em nós, como fazem estas lagartixas; que não teremos ainda acabado
de fazer nisto tudo quanto podemos, quando este trabalhito que não é nada, junte
Deus com Sua grandeza, e lhe dê tão grande valor, que o mesmo Senhor seja o
prémio desta obra. E assim como foi Ele quem fez quase tudo à Sua custa, assim
também quer juntar nossos trabalhinhos com os grandes trabalhos que padeceu Sua
Majestade; e que tudo seja uma só coisa.
6. Eia, pois, minhas filhas! demo-nos pressa em fazer este trabalho e a tecer este
casulo, despojando-nos do nosso amor próprio e da nossa vontade, deixando de
estar presas a qualquer coisa da terra, fazendo obras de penitência, oração,
mortificação, obediência e tudo o mais que sabeis; assim fizéssemos como
sabemos e somos ensinadas naquilo que havemos de fazer! Morra, morra este
verme tal como o da seda em acabando de fazer aquilo para que foi criado, e vereis
como vemos a Deus, e nos vemos tão metidas em Sua grandeza como está esta
lagartita em seu casulo. Olhai que digo ver a Deus, assim como deixo dito que Ele
se dá a sentir nesta maneira de união.
7. Vejamos, pois, o que sucede a esta lagarta, pois para isto é que tenho dito tudo o
mais quando está nesta oração, bem morta está ao mundo, sai uma borboleta
branca. Oh! grandeza de Deus! E como sai daqui uma alma por haver estado um
pouquinho metida na grandeza de Deus e tão junta com Ele, que, a meu parecer,
nunca chega a meia hora! Eu vos digo de verdade, que a mesma alma não se
conhece a si mesma, porque a diferença que há de uma lagarta feia para uma
borboletazinha branca, a mesma diferença há aqui. Não sabe como pode merecer
tanto bem - de onde lhe pôde vir, quero dizer, que bem sabe que o não merece -;
vê-se com um desejo de louvar ao Senhor que queria desfazer-se e morrer por Ele
mil mortes. Logo começa a ter o de padecer grandes trabalhos, sem poder fazer
outra coisa. Os desejos de penitência grandíssimos, o de solidão, o de que todos
conheçam a Deus; e daqui lhe vem uma grande pena de ver que é ofendido. E,
ainda que na morada que segue se tratará mais destas coisas em particular, embora
o que há nesta morada e na que segue depois seja quase tudo um, é mui diferente a
força dos efeitos; porque - como disse -, se depois que Deus faz chegar uma alma
até aqui, ela se esforça a ir por diante, verá grandes coisas.
8. Oh! Ver o desassossego desta borboletazinha, apesar de nunca ter estado mais
quieta e sossegada em sua vida, é coisa para louvar a Deus! Não sabe onde poisar e
tomar assento. Depois de o ter tido tal, tudo, da terra a descontenta, em especial
quando são muitas as vezes que Deus lhe dá deste vinho; quase de cada vez fica
com novos. lucros. Já não tem em nada as obras que fazia sendo lagarta, que era
tecer a pouco e pouco o casulo; nasceram-lhe asas. Como se há-de contentar,
podendo voar, andando passo a passo? Tudo lhe parece pouco de quanto pode
fazer por Deus, segundo os seus desejos. Não tem por muito o que passaram os
santos, entendendo já por experiência como ajuda o Senhor e transforma uma alma
que já não parece ela, nem ainda sua figura. Pois a fraqueza que antes parecia ter
para fazer penitência, já a encontra forte; o apego que tinha aos parentes, amigos
ou fazenda (que nem lhe bastavam actos, nem determinações, nem o querer
apartar-se, pois antes lhe parecia então que se achava mais presa), já é de maneira
que lhe pesa ver-se obrigada àquilo que, para não ir contra Deus, é preciso fazer.
Tudo a cansa, porque provou que o verdadeiro descanso não o podem dar as
criaturas.
9. Parece que me alongo, e muito mais poderia dizer, e a quem Deus tiver feito esta
mercê verá que fico aquém; e assim não é de admirar que esta borboleta busque
novo assento, assim como se acha nova e estranha às coisas da terra. Mas, aonde
irá a pobrezita? Voltar a donde saiu, não pode, que - como está dito -, não está na
nossa mão, por mais que façamos, até que Deus seja servido de nos tornar a fazer
esta mercê. Oh! Senhor, e que novos trabalhos começam para esta alma! Quem
dissera tal, depois de mercê tão subida? Enfim, de uma maneira ou de outra, há-de
haver cruz enquanto vivemos. E quem disser que, depois que chegou aqui, sempre
está com descanso e regalo, diria eu que nunca chegou, e não foi senão algum
gosto, se é que entrou na morada anterior, e ajudado pela fraqueza natural; e até,
talvez, pelo demônio, que lhe dá paz para lhe fazer depois muito maior guerra.
10. Não quero dizer que não tenham paz os que chegam aqui, que atêm, e muito
grande; porque os mesmos trabalhos são de tanto valor e de tão boa raiz, que,
embora muito grandes, deles mesmos sai a paz e o contentamento. Do mesmo
descontentamento que dão as coisas do mundo, nasce um desejo tão penoso de sair
dele, que, se algum alívio tem, é pensar que Deus quer que viva neste desterro; e
não basta, porque ainda a alma, com todos os lucros, não está tão rendida à vontade
de Deus, como se verá adiante, conquanto não deixe de se conformar; mas é com
um grande sentimento, porque não pode mais, pois mais não lhe foi dado, e com
muitas lágrimas. Cada vez que tem oração é esta a sua pena, que procede, talvez
em certo modo, da bem grande pena que lhe dá o ver que é Deus ofendido e pouco
estimado neste mundo e as muitas almas que se perdem, tanto de hereges, como de
mouros. Conquanto as que mais a lastimam sejam as dos cristãos, pois ainda que
vê que é grande a misericórdia de Deus, e por mal que vivam se podem emendar e
salvar, teme todavia que se condenem muitos.
11. Oh! grandeza de Deus! Poucos anos antes, e ainda talvez há dias, estava esta
alma que não se lembrava senão de si! Quem a meteu em tão penosos cuidados?
Embora queiramos ter sobre isto muitos anos de meditação, tão penosamente como
o sente agora esta alma, não o poderemos sentir. Mas, valha-me Deus! se muitos
dias e anos eu procuro exercitar-me a pensar no grande mal que é o ser Deus
ofendido e que estes que se condenam são filhos Seus e irmãos meus, e os perigos
em que vivemos, e quão bem nos vai sair desta miserável vida, não bastará? Ai
não, filhas; pois não é a pena que se sente aqui como as de cá da terra. Esta bem a
poderíamos ter com o favor do Senhor, pensando muito nisto; mas não chega ao
íntimo das entranhas, como aqui, que parece despedaça uma alma e o mói, sem ela
o procurar, e ainda às vezes sem o querer. Pois que é isto? Donde procede? Eu volo
direi.
12. Não tendes ouvido -pois já o disse aqui de outra vez, embora não a este
propósito - da Esposa, que «a meteu Deus na adega do vinho, e ordenou nela a
caridade?». Pois assim é isto: como aquela alma já se entrega em Suas mãos, e o
grande amor a tem tão rendida, não sabe nem quer mais senão que Deus faça dela o
que quiser (que jamais fará Deus esta mercê, penso eu, a não ser à alma a quem já
toma por muito Sua), e quer que, sem que ela entenda como, saia dali marcada com
o Seu selo. Porque verdadeiramente a alma ali não faz mais do que a cera quando
alguém lhe imprime o selo, pois a cera não o imprime em si mesma; somente está
disposta, digo, branda; e ainda, para esta disposição, tão-pouco é ela que se
abranda, mas fica quieta e o consente. Oh! bondade de Deus, que tudo há-de ser à
Vossa custa! Só quereis a nossa vontade e que não haja impedimento na cera.
13. Pois vede, irmãs, o que o nosso Deus faz aqui para que esta alma já se conheça
por Sua; dá-lhe do que tem, que é o que teve Seu Filho nesta vida: não nos pode
fazer maior mercê. Quem, mais do que Ele, devia querer sair desta vida? E assim o
disse Sua Majestade na Ceia: «Com desejo desejei». - Pois como, Senhor, não se
Vos pôs diante a trabalhosa morte de que havíeis de morrer, tão penosa e
espantosa? - Não, porque o grande amor que tenho e o desejo de que se salvem as
almas sobrepuja, sem comparação, essas penas; e as grandíssimas que padeci e
padeço, desde que estou no mundo, são bastantes para ter as outras em nada, em
sua comparação.
14. É assim que muitas vezes tenho meditado nisto, e sabendo eu o tormento que
passa e tem passado certa alma que conheço de ver ofender a Nosso Senhor,
tormento que lhe é tão insofrível, que muito mais quisera ela morrer que sofrê-lo, e
pensa, se uma alma com tão pouquíssima caridade, comparada com a de Cristo,
que se podia dizer quase nenhuma em comparação, sentia este tormento tão
insofrível, qual não seria o sentimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que vida
não deveria Ele passar, pois todas as coisas Lhe eram presentes e estava sempre
vendo as grandes ofensas que se faziam a Seu Pai? Sem dúvida alguma, eu creio
que foram muito maiores que as da Sua Sacratíssima Paixão, porque então já via o
fim destes trabalhos, e com isto, e com o contento de ver o nosso remédio com Sua
morte e mostrar o amor que tinha a Seu Pai em padecer tanto por Ele; se
moderariam as dores, tal como acontece cá na terra aos que, com a força do amor,
fazem grandes penitências, que quase não as sentem, antes quereriam fazer mais e
mais, e tudo lhes parece pouco. Pois, que seria este sentimento em Sua Majestade,
vendo-se em tão grande ocasião de mostrar a Seu Pai quão perfeitamente cumpria
em obedecer-Lhe, e com o amor do próximo? Oh! grande deleite, padecer em fazer
a vontade de Deus! Mas, o ver tão de contínuo tantas ofensas feitas a Sua
Majestade, e tantas almas irem ao inferno, tenho-o por coisa tão dura que, creio, se
não fora mais que homem, um dia daquela pena bastava para acabar muitas vidas,
quanto mais uma.
CAPÍTULO 3. Continua a mesma matéria. Fala de outra maneira de união que pode alcançar a
alma com o favor de Deus e quanto importa para isto o amor do próximo. É muito proveitoso.
1. Pois voltemos à nossa pombinha e vejamos alguma coisa do que Deus dá neste
estado. Sempre se entende que há-de procurar ir adiante no serviço de Nosso
Senhor e no conhecimento próprio; porque, se não faz mais do que receber esta
mercê e, como coisa já segura, se descuida em sua vida e torce o caminho do Céu,
que são os Mandamentos, acontecer-lhe-á como à borboleta que sai do bicho da
seda: que deita a semente para que se produzam outras e ela fica morta para
sempre. Digo que deita a semente, porque tenho para mim que Deus quer que uma
mercê tão grande não seja dada debalde; mas, já que a alma não se aproveita dela
para si, aproveite a outros. Porque, como fica com estes desejos e virtudes todo o
tempo em que perdura no bem, faz aproveitar a outras almas e de seu calor lhes
comunica calor; e ainda quando o tem já perdido, acontece ficar com essa ânsia de
que aproveitem outros, e gosta de dar a entender as mercês que Deus faz a quem O
ama e serve.
2. Eu conheci uma pessoa a quem lhe acontecia assim; que estando muito perdida,
gostava de que se aproveitassem outras com as mercês que Deus lhe tinha feito e
mostrar o caminho de oração às que não o entendiam, e fez-lhes muito e muito
proveito. Depois voltou o Senhor a dar luz. Verdade é que ainda não tinha os
efeitos que ficam ditos. Mas, quantos deve haver, que os chama o Senhor ao
apostolado, como a Judas, comunicando com eles, e os chama para os fazer reis,
como a Saul e depois, por sua culpa se perdem! Donde tiraremos, irmãs, que, para
ir merecendo mais e mais e não nos perdermos como estes, a segurança que
podemos ter é a obediência e não se desviar da lei de Deus; digo, aqueles a quem
Ele fizer semelhantes mercês, e mesmo a todos.
3. Parece-me que fica um tanto obscuro, apesar de tudo quanto tenho dito desta
morada. Pois há tanto lucro em entrar nela, bom será que não pareça ficarem sem
esperança aqueles a quem o Senhor não dá coisas tão sobrenaturais; pois a
verdadeira união se pode muito bem alcançar, com o favor de Nosso Senhor, se
nós nos esforçamos em procurá-la, não tendo a vontade senão atada com o que for
a vontade de Deus. Oh! Quantos haverá que digamos isto e nos pareça que não
queremos outra coisa e morreríamos por esta verdade, como creio já ter dito! Pois,
eu vos digo e di-lo-ei muitas vezes, que, quando assim for, haveis alcançado esta
mercê do Senhor e nada se vos dê desta outra união regalada que fica dita; pois o
que há de maior preço nela, é o proceder desta que agora digo; nem tenhais pena
por não poder chegar à que fica dita, se não é muito certa a união da nossa vontade
estar resignada na de Deus. Oh! que união esta para desejar! Venturosa a alma que
a tiver alcançado, pois viverá nesta vida com descanso e na outra também; porque
nenhuma coisa dos sucessos da terra a afligirá, a não ser que se veja em algum
perigo de perder a Deus ou ver que Ele é ofendido: nem enfermidade, nem
pobreza, nem mortes, a não ser de quem há-de fazer falta na Igreja de Deus, pois
bem vê esta alma que Ele sabe melhor o que faz, do que ela o deseja.
4. Deveis notar que há penas e penas; porque há algumas penas produzidas de
súbito pela natureza, e do mesmo modo os contentamentos, e até da caridade
apiedando-se dos próximos, como fez Nosso Senhor quando ressuscitou a Lázaro;
e estas não impedem a união com a vontade de Deus, nem tão-pouco perturbam a
alma com uma paixão inquieta, desassossegada, que dura muito. Estas penas
passam depressa; pois, como disse dos gozos na oração, parece que não chegam ao
fundo da alma, senão a estes sentidos e potências. Andam por estas moradas
anteriores, mas não entram na que está por dizer em último lugar, pois, para isto é
preciso o que fica dito A da suspensão das potências. Poderoso é o Senhor para
enriquecer as almas por muitos caminhos e trazê-las a estas moradas, e sem ser
pelo atalho que fica dito.
5. Mas adverti bem nisto, filhas: é necessário que morra a lagarta, e mais à vossa
custa; porque ali ajuda muito para morrer o ver-se em vida tão nova; aqui é mister
que, vivendo nesta, a matemos nós mesmas. Eu vos confesso que será com muito
mais trabalho, mas tem-se o seu preço, e assim será maior o galardão, se sairdes
com vitória; quanto a ser possível, não há que duvidar, logo que haja união
verdadeira com a vontade de Deus.
Esta é a união que toda a minha vida tenho desejado; esta é a que peço sempre a
Nosso Senhor e a mais clara e segura.
6. Mas, ai de nós, que poucos devemos chegar a ela!, embora quem se guarda de
ofender ao Senhor e entrou em religião lhe pareça que tudo está feito. Oh! ainda
ficam umas lagartas que não se dão a conhecer, até que, como a que roeu a hera de
Jonas, nos roam as virtudes com um amor próprio, uma própria estimação, um
julgar os próximos, embora seja em poucas coisas, uma falta de caridade com eles
não lhes querendo como a nós mesmos: ainda que, arrastando-nos, cumprimos com
a obrigação, para não ser pecado, não chegamos nem de longe ao que deve ser para
estarmos de todo unidas com a vontade de Deus.
7. O que pensais, filhas, que é a Sua vontade? Que sejamos perfeitas, para sermos
um com Ele e com o Pai, como Sua Majestade o pediu. Olhai quanto nos falta para
chegarmos a isto! Digo-vos que estou escrevendo isto com grande pena de me ver
tão longe e tudo por minha culpa. E não é preciso o Senhor fazer-nos grandes
regalos para isso; basta o que nos deu, dando-nos o Seu Filho, para nos ensinar o
caminho. Não penseis que está a coisa em que, se morre meu pai ou irmão, eu me
conforme tanto com a vontade de Deus que o não sinta; e se me vierem trabalhos e
enfermidades, sofrê-los com contentamento. Bom é, e às vezes consiste em
discrição, Iporque mais não podemos e fazemos da necessidade virtude. Quantas
coisas destas faziam os filósofos, ou ainda que não seja destas, outras, por terem
muito saber! Aqui, só estas duas nos pede o Senhor: amor de Sua Majestade e do
próximo; é no que temos de trabalhar. Guardando-as com perfeição, fazemos a Sua
vontade, e assim estaremos unidas com Ele. Mas, quão longe estamos de fazer
como devemos a tão grande Deus estas duas coisas, como disse! Praza a Sua
Majestade nos dê graça, para que mereçamos chegar a este estado, que em nossa
mão está, se quisermos.
8. O sinal mais certo que há, a meu parecer, para ver se guardamos estas duas
coisas, é guardar bem a do amor ao próximo; porque, se amamos a Deus não se
pode saber, embora haja grandes indícios para entender que O amamos, mas o
amor do próximo, sim. E estai certas que, quanto mais neste vos virdes
aproveitadas, mais o estais no amor de Deus; porque é tão grande o que Sua
Majestade nos tem, que em paga do que temos ao próximo, fará crescer o que
temos a Sua Majestade por mil maneiras. Disto não posso eu duvidar.
9. Importa-nos muito andar com grande advertência, vendo como andamos nisto,
que, se é com muita perfeição, temos tudo feito; porque eu creio que, segundo é
mau o nosso natural, não chegaremos a ter com perfeição o amor do próximo, se
não nascer de raiz do amor de Deus. Pois tanto nos importa isto, irmãs, procuremos
ir entendendo como vamos neste ponto, mesmo em coisas pequenas, não fazendo
caso de umas muito grandes, que assim por junto nos vêm na oração, parecendonos
que faremos e aconteceremos por amor dos próximos e por uma só alma que se
salve; porque, se as obras não correspondem, não é de crer que o faremos. Assim
digo também da humildade e de todas as virtudes. São grandes os ardis do demónio
que, para nos fazer crer que temos alguma, não a tendo, dará mil voltas ao inferno.
E tem razão, porque fará muito dano, pois estas virtudes fingidas nunca vêm sem
alguma vanglória, como são de tal raiz; assim como as que Deus dá, estão livres
dela e de soberba.
10. Eu gosto, algumas vezes, de ver umas almas que, quando estão em oração, lhes
parece que quereriam ser abatidas e publicamente afrontadas por Deus, e depois
encobririam uma falta pequena, se pudessem, ou, se não a fizeram, lha atribuem;
Deus nos livre! Pois veja bem quem isto não sofre, para não fazer caso do que.a
sós determinou a seu parecer; que de verdade não foi determinação de vontade,
pois quando esta é verdadeira, é outra coisa; mas sim alguma imaginação, pois
nesta faz o demónio seus assaltos e enganos; e a mulheres, ou gente sem letras,
poderá fazer muitos, porque não sabemos entender as diferenças entre as potências
e a imaginação e outras mil coisas que há interiores. Ó irmãs, como se vê
claramente onde está deveras o amor do próximo, em algumas de vós, e naquelas
em que não está com esta perfeição! Se entendêsseis o que nos importa esta
virtude, não faríeis outro estudo.
11. Quando vejo algumas muito diligentes em entender a oração que têm e muito
encapotadas quando estão nela, que parece não ousam bulir nem menear o
pensamento, para que não se lhes vá um pouquito do gosto e devoção que tiveram,
faz-me ver quão pouco entendem do caminho por onde se alcança a união. E
pensam que ali está todo o negócio. Mas não, irmãs, não; obras quer o Senhor; e,
se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não se te dê nada de perder
essa devoção e te compadeças dela; e se tem alguma dor, te doa a ti também; e se
for preciso, jejua, para que ela coma, não tanto por ela, mas porque sabes que teu
Senhor quer isso. Esta é a verdadeira união com Sua vontade; e se vires louvar
muito a uma pessoa, te alegres muito mais do que se te louvassem a ti. Isto, na
verdade, fácil é; pois se há humildade, antes terá pena de se ver louvada. E esta
alegria por se conhecerem as virtudes das irmãs é grande coisa, e quando virmos
alguma falta em alguma, senti-la como se fosse em nós e encobri-la.
12. Muito disse noutras partes sobre isto, porque vejo, irmãs, que, se nisto houver
quebra, estamos perdidas. Praza ao Senhor nunca a haja; logo que assim seja, eu
vos digo que não deixareis de alcançar de Sua Majestade a união que fica dita.
Quanto vos virdes carecidas nisto, ainda que tenhais devoção e regalos e alguma
suspensãozita na oração de quietude, e vos pareça que já haveis chegado (que a
algumas logo lhes parecerá que está tudo feito), crede-me que não chegastes à
união e pedi a Nosso Senhor que vos dê com perfeição este amor do próximo e
deixai fazer a Sua Majestade, que Ele vos dará mais do que sabeis desejar, desde
que vos esforceis e procureis isto em tudo o que puderdes; e forçar vossa vontade
para que se faça em tudo a das irmãs, embora percais do vosso direito, ou esquecer
o vosso bem pelo delas, por mais contradições que vos faça o vosso natural; e
procurar tomar para vós o trabalho para o tirar ao próximo, quando se oferecer.
Não penseis que isto não vos há-de custar e que o haveis de achar já feito. Olhai o
que custou a nosso Esposo o amor que nos teve: para nos livrar da morte, a
padeceu tão penosa como a morte na Cruz.
CAPÍTULO 4. Prossegue o mesmo, declarando mais esta maneira de oração. Diz o muito que
importa andar de sobreaviso, pois o demónio anda bem avisado para fazer voltar atrás no
caminho começado.
1. Parece-me que estais com o desejo de ver o que faz esta pombinha e onde poisa,
pois fica entendido que não é em gostos espirituais, nem em contentos da terra;
mais alto é o seu voo. E não vos posso satisfazer este desejo até à última morada e
praza a Deus me lembre ou tenha ocasião de o escrever; porque já passaram quase
cinco meses desde que comecei até agora; e, como a cabeça não está para o tornar
a ler, tudo deve ir desconcertado, e talvez diga algumas coisas duas vezes. Como é
para minhas irmãs, pouco vai nisso.
2. Todavia quero declarar-vos melhor o que me parece que é esta oração de união.
Conforme ao meu engenho, farei uma comparação. Depois, diremos ainda mais
desta borboletazinha, que não pára (ainda que sempre frutifica fazendo bem a si e a
outras almas), porque não acha o seu verdadeiro repouso.
3. Já tereis ouvido dizer muitas vezes que se desposa Deus com as almas
espiritualmente. Bendita seja Sua misericórdia que tanto se quer humilhar! E ainda
que seja comparação grosseira, eu não acho outra que melhor possa dar a entender
o que pretendo, que o sacramento do matrimónio. Conquanto seja de diferente
maneira, porque nisto que tratamos jamais há coisa que não seja espiritual (e o que
é corpóreo fica muito aquém, e os contentos espirituais que dá o Senhor,
comparados com os gostos que devem ter os que se desposam, vão mil léguas de
uns a outros), porque tudo é amor com amor, e suas operações limpidíssimas e tão
delicadas e suaves, que não há palavras para as dizer; mas sabe o Senhor dá-las
muito bem a sentir.
4. Parece-me a mim que esta união ainda não chega a desposório espiritual; mas,
tal como aqui no mundo, quando dois se hão de desposar, trata-se de saber se são
conformes e que um e outro o queiram, e até que se vejam, para que mais se
satisfaçam um do outro, assim aqui. Pressupondo que o contrato está já feito e esta
alma muito bem informada, quão bem lhe vai e determinada a fazer em tudo a
vontade de seu Esposo, de tantas quantas maneiras ela vir que Lhe dará gosto, e
Sua Majestade, como quem bem entende se de facto é assim, está contente com
ela, e faz-lhe esta misericórdia de querer que O conheça melhor e que - como
dizem -, venham à fala, e a junta consigo. Podemos dizer que isto é assim, ,porque
assim se passa, ainda que em brevíssimo tempo. Ali já não há dar e tomar, mas sim
o ver a alma, de uma maneira secreta, quem é Este a quem há-de tomar por
Esposo; porque, pelos sentidos e potências, de nenhuma.maneira poderia
entenderem mil anos o que entende aqui em brevíssimo tempo. Mas, como é tal o
Esposo, só com aquela vista a deixa mais digna de que se venham a dar as mãos,
como dizem; porque fica a alma tão enamorada, que faz da sua parte o que pode
para que não se desconcerte este divino desposório. Mas, se esta alma se descuida
e coloca sua afeição em coisa que não seja Ele, perderá tudo; e é tão grandíssima a
perda, como o são ás mercês que Ele vai fazendo, e muito maior do que se pode
encarecer.
5. Por isso, almas cristãs, aquelas a quem o Senhor fez chegar a estes termos, por
amor d'Ele vos peço que não vos descuideis, mas que vos aparteis das ocasiões,
que ainda mesmo neste estado não está a alma tão, forte que se possa meter nelas,
como o está depois de feito o desposório,. que é na morada que diremos após esta.
Porque, a comunicação não foi mais do que uma vista de olhos, - como dizem -, e
o demónio andará com grande cuidado a combatê-la e a desviar este desposório.
Depois, como já a vê de todo rendida ao Esposo, não ousa tanto, porque lhe tem
medo, e tem experiência que, se alguma vez o faz, fica ele com grande perda e ela
com maior lucro.
6. Eu vos digo, filhas, que tenho conhecido pessoas muito alevantadas e chegarem
a este estado e o demónio, com a sua grande subtileza e ardil, as tornar a ganhar
para si. Deve juntar-se todo o inferno para isso, pois, como digo muitas vezes, não
perdem só a uma alma, mas uma grande multidão. Já ele tem experiência neste
caso; porque, se olharmos à multidão de almas que Deus traz a Si por meio de
uma, é para Loa muito pelos milhares que convertiam os mártires, por exemplo
uma donzela como Santa Úrsula! Pois, quantas terão sido arrancadas ao demónio
por S. Domingos e S. Francisco e outros fundadores de Ordens, e perde agora por
causa do padre Inácio, o que fundou a Companhia! que todos, está claro, segundo
lemos, recebiam mercês semelhantes de Deus! Que foi isto, senão que se
esforçaram em não perder, por sua culpa, tão divino desposório? Oh! minhas
filhas!, que tão disposto está este Senhor a fazer-nos mercês agora como então, e
até em parte mais necessitado de que as queiramos receber, porque há poucos que
olhem por Sua honra, como então havia. Queremo-nos muito; há muita prudência
para não perder nada dos nossos direitos. Oh! que engano tão grande! O Senhor
nos ilumine para não cairmos em semelhantes trevas, por Sua misericórdia.
7. Podereis perguntar-me ou estar em dúvida sobre duas coisas: A primeira, se a
alma está tão unida com a vontade de Deus, como fica dito, como se pode enganar,
pois ela em nada quer fazer a sua vontade? A segunda, por que vias pode entrar o
demónio tão perigosamente, que se perca vossa alma, estando tão apartadas do
mundo e tão chegadas aos sacramentos e em companhia - podemos dizer - de
anjos? Pois, pela bondade do Senhor, todas elas não trazem outros desejos senão de
O servir e de Lhe agradarem tudo; que, para os que estão metidos nas ocasiões do
mundo, já não é muito de admirar que se percam. Eu digo que nisto tendes razão,
pois grande misericórdia nos fez Deus; mas, quando vejo - como já disse - que
estava Judas em companhia dos Apóstolos, e tratando sempre com o mesmo Deus,
e ouvindo Suas palavras, entendo que nisto não há segurança. Respondendo ao
primeiro, digo que, se esta alma estivesse sempre unida à vontade de Deus, está
claro que não se perderia; mas vem o demónio com umas subtilezas grandes, e
debaixo da cor do bem vai-a apartando da vontade divina em coisitas de nada e
metendo-a em algumas que ele lhe faz entender que não são más e, pouco a pouco,
vai-lhe obscurecendo o entendimento e entibiando a vontade e fazendo crescer nela
o amor pró- prio, até que, de uma em outra coisa, a vai apartando da vontade de
Deus e chegando-a à sua.
Com isto fica respondido ao segundo; porque não há encerramento tão encerrado
aonde ele não possa entrar, nem deserto tão apartado aonde deixe de ir. E ainda
outra coisa vos digo, que talvez o permita o Senhor para ver como se porta aquela
alma a quem escolheu para que seja luz de outras, que, se há-de ser ruim, mais vale
que o seja nos princípios do que depois, quando possa causar dano a muitas.
9. Depois de pedir sempre a Deus na oração que nos tenha de Sua mão e
pensarmos muito de contínuo que, se Ele nos deixa, cairemos logo no abismo,
como é verdade, e nunca estarmos confiadas em nós mesmas, pois seria desatino, a
diligência que a mim se me oferece por mais certa é andar com particular cuidado e
atenção, olhando como vamos nas virtudes: se vamos melhorando ou diminuindo
em alguma delas, em especial no amor de umas para com as outras e no desejo de
sermos tidas cada uma pela menor, e em coisas normais. Se olhamos bem a isso e
pedimos ao Senhor que nos ilumine, logo veremos o lucro ou a perda. E não
penseis que a alma, a quem Deus fez chegar a tanto, Ele a deixe tão depressa de
Sua mão, que o demónio não tenha muito a trabalhar; e Sua Majestade sente tanto
que ela se Lhe venha a perder, que lhe dá mil avisos interiores de muitas maneiras;
assim ela não poderá esconder o dano a si própria.
10. Enfim, seja a conclusão disto: que procuremos ir sempre adiante. Se não há
isto, andemos com grande temor porque, sem dúvida, algum assalto nos quer fazer
o demónio; pois não é possível que, tendo chegado a tanto, deixe de ir crescendo,
porque o amor jamais está ocioso e assim será muito mau sinal o não ir adiante.
Uma alma que pretendeu ser esposa do próprio Deus, e tem tratado já com Sua
Majestade, e chegou ao termo que fica dito, rnão se há-de deitar a dormir. E para
que vejais, filhas, o que Ele faz com as que já tem por esposas, comecemos a tratar
das sextas moradas, e vereis como é pouco tudo em que poderemos servir e
padecer e fazer para nos dispormos a tão grandes mercês. E poderá ser que Nosso
Senhor tenha ordenado que mo mandassem escrever para que, postos os olhos no
prémio e vendo quão sem medida é Sua misericórdia, pois com uns vermes assim
se quer comunicar e mostrar, esqueçamos nossos contentozinhos da terra e, postos
os olhos em Sua grandeza, corramos inflamadas em Seu amor.
11. Praza a Deus que eu acerte a declarar um pouco de coisas tão dificultosas;
porque, se Sua Majestade e o Espírito Santo não moverem a minha pena, bem sei
que será impossível. E se não há-de ser para vosso proveito, suplico-Lhe que não
acerte a dizer nada; pois sabe Sua Majestade que não é outro o meu desejo, tanto
quanto posso entender de mim mesma, senão que seja louvado Seu nome, e que
nos esforcemos a servir a um Senhor que assim paga ainda cá na terra. Por aqui
podemos entender alguma coisa do que nos há-de dar no Céu, sem os intervalos,
trabalhos e perigos que há neste mar de tempestades. Porque, se não fora o perigo
de O perder e ofender, seria um descanso que não se acabasse a vida até ao fim do
mundo, a fim de trabalhar por tão grande Deus e Senhor e Esposo. Praza a Sua
Majestade mereçamos fazer-Lhe algum serviço sem tantas faltas como sempre
temos, ainda mesmo nas obras boas, amen.
SEXTAS MORADAS
CAPÍTULO 1. Trata de como, em começando o Senhor afazer maiores mercês, há maiores
trabalhos. Diz alguns e como se comportam neles os que estão nesta morada. É bom para quem
tem trabalhos interiores.
1. Venhamos, pois, com o favor do Espírito Santo, a falar das sextas moradas, onde
a alma já fica ferida do amor do Esposo e procura mais ocasiões para estar a sós e
deixar tudo quanto pode, conforme a seu estado, e a pode estorvar nesta soledade.
Está tão esculpida na alma aquela vista, que todo o seu desejo é torna-la a gozar. Já
disse que, nesta oração, não se vê nada, que se possa dizer ver, nem com a
imaginação; digo vista, pela comparação que usei. A alma já está bem determinada
a não tomar outro esposo; mas o Esposo não, olha aos grandes desejos que ela tem
de que se façam já os desposórios,. pois ainda quer que o deseje mais e lhe custe
alguma coisa um bem que é o, maior dos bens. E, embora tudo seja pouco para tão
grandíssimo lucro digo-vos desde já, filhas, que não deixa de ser necessária aquela
amostra e sinal que já se tem dele, para se poder levar esse trabalho. Oh! valha-me.
Deus! e quantos não são os trabalhos interiores e exteriores que padece até entrar
nas sétimas moradas!
2. Certo é que penso nisto algumas vezes e temo que, se o entendessem antes, seria
dificultosíssimo determinar-se a fraqueza natural para o poder sofrer, nem se
resolvesse a passar por isso, por maiores bens que se lhe representassem, salvo se
tivesse chegado à sétima morada; pois aí já nada se teme que seja de molde a
impedir a alma de se arrojar deveras a sofrer tudo por Deus. E a causa é porque
está quase sempre tão junto a Sua Majestade, que daí lhe vem a fortaleza. Creio
que será bom contar-vos alguns dos trabalhos que eu sei passarem-se com certeza.
Nem todas as almas serão, talvez, levadas por este caminho, ainda que duvido que
vivam livres de trabalhos cá da terra, de uma maneira ou doutra, as almas que, de
tempos a tempos, gozam tão deveras de coisas do céu.
3. Embora eu por mim não tivesse em vista tratar disto, pensei que a alguma alma,
que se veja nestes trabalhos, lhe será grande consolo saber o que se passa nas
almas a quem Deus faz semelhantes mercês, porque então parece verdadeiramente
estar tudo perdido. Não os levarei pela ordem como sucedem, mas sim como se me
oferecerem à memória. E quero começar pelos mais pequenos, que é uma gritaria
das pessoas com quem se trata, e até mesmo daquelas com quem não se trata, e que
nunca na vida pareceu que se podiam vir a lembrar dela: «que se faz santa», «que
faz extremos para enganar o mundo, e para fazer aos outros ruins, que são
melhores cristãos sem essas cerimónias». E deve-se notar que não há aqui
cerimónia nenhuma, a não ser procurar guardar bem o seu estado. Os que tinha por
amigos, apartam-se dela e são os que lhe dão pior bocado, e são dos que muito se
sentem: «que anda perdida aquela alma» dizem, «e notavelmente enganada»; «que
são coisas de demónio», «que há-de ser como aquela e aqueloutra pessoa que se
perdeu, e ocasião de que decaia a virtude»; «que traz enganados os confessores», e
vão ter com eles a dizer-lho, trazendo-lhes exemplos do que acontece a alguns que
por aqui se perdem; mil maneiras de mofas e ditos deste teor.
4. Sei duma pessoa que teve muito medo de não haver quem a confessasse,
segundo andavam as coisas; mas, por serem muitas, não há para que deter-me. E o
pior é não passarem depressa, mas ser toda a vida, e o avisarem-se uns aos outros
que se guardem de tratar com pessoas semelhantes.
Dir-me-eis que também há quem diga bem. Oh! filhas, e como são poucos os que
acreditam nesse bem, em comparação dos muitos que abominam isso! Tanto mais
que esse é outro trabalho maior que os ditos! Porque, como a alma vê claramente
que, se tem algum bem, é dado por Deus e não seu de maneira nenhuma, pois
pouco antes se viu muito pobre e metida em grandes pecados, é-lhe isto um
tormento intolerável, pelo menos ao princípio; que depois não é tanto, por algumas
razões. A primeira, porque a experiência lhe faz ver claramente que tão depressa
dizem bem como mal, e assim não faz mais caso de uma coisa que de outra. A
segunda, porque o Senhor lhe tem dado maior entendimento para ver que nenhuma
coisa boa é sua, mas dada por Sua Majestade; e assim, como se a visse em terceira
pessoa, esquecida de que tem aí alguma parte, volve-se a Deus para O louvar. A
terceira, se já tem visto algumas almas aproveitadas por verem as mercês que Deus
lhe faz, pensa que Sua Majestade tomou este meio de a terem por boa, não o sendo,
para que, a elas, lhes adviesse bem. A quarta, porque, como tem diante de si a
honra e a glória de Deus mais de que a sua, já não lhe vem uma tentação que dá
nos princípios, de que esses louvores hão-de servir para a sua ruína, como tem
visto em algumas, e pouco se lhe dá de ser desacreditada, a troco de que, sequer
uma vez, seja Deus louvado, por seu intermédio; venha depois o que vier!
5. Estas razões e outras aplacam a muita pena que dão estes louvores, embora,
quase sempre, se sinta alguma; a não ser quando não se adverte nisso nem pouco
nem muito. Mas maior trabalho que os ditos é, sem comparação, o ver-se assim em
público tida por boa, sem razão. E quando chega a já não ter muito trabalho com os
louvores, muitíssimo menos o tem com os ditos; antes folga e é para ela como uma
música muito suave. Isto é grande verdade, e antes fortalece a alma que a
acobarda; porque já a experiência lhe tem ensinado o grande ganho que lhe advém
por este caminho, e parece-lhe que não ofendem a Deus os que a perseguem; antes
o permite Sua Majestade para seu maior lucro; e como sente isto claramente, ganha
por eles um particular amor muito terno, pois lhe parece que aqueles são mais seus
amigos e lhe dão mais a ganhar que os que dizem bem.
6. Também costuma o Senhor dar enfermidades grandíssimas. Este é muito maior
trabalho, em especial quando são dores agudas, porque, se são violentas, parece-me
de certo modo o maior trabalho que há na terra - digo exterior -embora entrem na
conta quantos quiserem; se é de muito fortes dores, digo, porque descompõe o
interior e o exterior, e aperta uma alma de tal maneira, que ela não sabe que fazer
de si, e de muito boa vontade tomaria qualquer martírio rápido, de preferência a
estas dores; ainda que em grandíssimo extremo não duram tanto, que, enfim, Deus
não dá mais do que se pode sofrer, e Sua Majestade dá primeiro a paciência; mas
ter outras grandes dores é o costume, e enfermidades de muitos géneros; [7] eu
conheço uma pessoa que, desde que o Senhor lhe começou a fazer esta mercê que
fica dita, há uns quarenta anos, não pode dizer com verdade que tenha estado um
dia sem ter dores e outras maneiras de padecer, de falta de saúde corporal, digo,
sem falar de outros grandes trabalhos. Verdade é que tinha sido muito ruim, e, para
o inferno que merecia, tudo lhe parece pouco. Outras, que não tenham ofendido
tanto a Nosso Senhor, Ele as levará por outro caminho; mas eu sempre escolheria o
de padecer, ao menos para imitar a Nosso Senhor Jesus Cristo, ainda que não
houvesse outro lucro; em especial, porque sempre há muitos.
Oh! e se tratamos dos sofrimentos interiores!... Estoutros pareceriam pequenos se
se acertasse em dizer estes, pois é impossível dar a entender de que maneira se
passam.
8. Comecemos pelo tormento que é encontrar um confessor tão prudente e pouco
experimentado, que não há coisa que tenha por segura: tudo teme, em tudo põe
dúvida, pois vê coisas não habituais. Em especial, se na alma que as tem, vê
alguma imperfeição (pois lhe parece que devem ser anjos aqueles a quem Deus
fizer estas mercês, e é impossível enquanto estiverem neste corpo), logo tudo é
condenado à conta do demónio ou da melancolia. E desta está o mundo tão cheio,
que não me espanto; pois há tanta agora no mundo, e faz o demónio tantos males
por este caminho, que têm muitíssima razão os confessores de o temer e de olhar a
isto muito bem. Mas a pobre alma que anda com o mesmo temor e vai ao confessor
como a juiz e este a condena, não pode deixar de receber tão grande tormento e
perturbação, que só entenderá como é grande este trabalho quem tiver passado por
ele. Porque este é outro dos grandes trabalhos que estas almas padecem, em
especial se foram ruins: pensar que, por seus pecados, há-de permitir Deus que
sejam enganadas; e ainda que, quando Sua Majestade lhes faz a mercê, estão
seguras e não podem crer ser aquilo de outro espírito senão de Deus, como é coisa
que passa depressa e a lembrança dos pecados está sempre viva, e vêem em si
faltas - porquanto estas nunca faltam -, logo vem este tormento. Quando o
confessor lhe dá segurança, aplaca-se o tormento, ainda que volta depois. Mas,
quando ele ajuda com mais temor, é coisa quase insofrível, em especial quando,
atrás disto, vem uma tal aridez, que parece que nunca se lembrou de Deus nem se
há-de lembrar e, quando ouve falar de Sua Majestade, é como quem ouve falar de
uma pessoa que está longe.
9. Tudo é nada se, além disto, não lhe vem a parecer que não sabe informar bem os
confessores e que os traz enganados; e, por mais que pense e veja que não há
primeiro movimento que não o diga, não lhe aproveita; porque está o entendimento
tão obscuro que não é capaz de ver a verdade, e só crê o que lhe representa a
imaginação (que então é ela a senhora), e os desatinos que o demónio lhe quer
apresentar, ao qual Nosso Senhor deve ter dado licença para que prove a alma, e
até para lhe fazer crer que está reprovada por Deus. Porque são muitas as coisas
que a combatem com um aperto interior, de maneira tão sensível e intolerável, que
eu não sei a que se possa comparar, se não é aos tormentos que se padecem no
inferno; porque não se admite nenhum consolo nesta tempestade. Se o quer tomar
do confessor, parece que acodem a ele todos os demónios para que mais a
atormente. E assim, tratando um confessor com uma alma que estava neste
tormento (que parece perigoso aperto por ser de tantas coisas juntas), depois de
passado, ele dizia-lhe que o avisasse quando assim estivesse atribulada; mas
sempre era muito pior até que ele veio a entender que o remédio já não estava em
sua mão. Pois, se quisesse tomar um livro em língua vulgar, e é pessoa que sabia
ler muito bem, acontecia-lhe não entender mais do que se não conhecesse uma
letra, porque o entendimento não estava capaz de entender.
10. Enfim, nenhum remédio há nesta tempestade, senão aguardar a misericórdia de
Deus que, em hora não esperada, só com uma palavra Sua, ou por meio de uma
ocasião que se proporciona, tira tudo tão depressa, que nem parece ter havido uma
névoa naquela alma pois fica cheia de sol e de muito maior consolação. E, como
quem escapou duma batalha perigosa e tenha ganho a vitória, fica louvando a
Nosso Senhor, pois foi Ele quem pelejou para o triunfo, e a alma reconhece muito
claramente não ter pelejado. Pois todas as armas com que se podia defender,
parece-lhe que as vê nas mãos de seu contrário, e assim conhece claramente a sua
miséria e o pouquíssimo que podemos por nós mesmos, se o Senhor nos
desamparar.
11. Parece que já não tem necessidade de consideração para entendê-lo, porque a
experiência de ter passado por isto, tendo-se visto de todo incapacitada, fez-lhe
entender o nosso nada, e quão miseráveis somos; porque a graça (conquanto não
deve estar sem ela, pois em toda esta tormenta não ofende a Deus, nem O ofenderia
por coisa nenhuma da terra), está tão !escondida, que nem mesmo lhe parece ver
em si uma centelha muito pequena de amor de Deus, nem mesmo que o teve algum
dia; porque, se fez algum bem, ou se Sua Majestade lhe fez alguma mercê, tudo lhe
parece coisa sonhada e que foi uma fantasia. Os pecados, esses, sim, vê com
certeza que os fez.
12. Ó Jesus, o que é ver uma alma desamparada desta sorte, e - como disse - quão
pouco lhe aproveita qualquer consolação da terra! Por isso, irmãs, se alguma de
vós se vir assim, não penseis que os ricos e os que estão com liberdade terão para
estes momentos melhor remédio. Não, não; pois me parece a mim seria como se
aos condenados lhes pusessem na frente quantos deleites há no mundo, nada disso
bastaria para lhes dar alívio, antes lhes acrescentaria o tormento. Assim aqui, tudo
isto vem do alto, e não valem nada as coisas da terra. Quer este grande Deus que O
conheçamos a Ele como Rei e a nossa miséria; e isto importa muito para o que
adiante se dirá.
13. Pois, que fará esta pobre alma, quando isto lhe durar assim muitos dias?
Porque, se reza, é como se não rezasse, para sua consolação, digo; porque não
penetra no interior, nem ela mesma entende o que reza para si, embora seja
vocalmente, pois, para oração mental, não é este o tempo de maneira alguma,
porque as potências não estão para isso; antes causa maior dano a solidão, ainda
que seja outro tormento o estar com alguém ou que lhe falem. E assim, por muito
que se esforce, anda com um desabrimento e má disposição exterior que muito se
deixa ver.
E saberá ela na verdade dizer o que tem? É indizível porque são aflições e penas
espirituais a que não se sabe dar nome. O melhor remédio - não digo para tirar este
tormento, que eu não o encontro, mas para que se possa sofrer - é atender a obras
de caridade e exteriores, e esperar na misericórdia de Deus, que nunca falta aos que
n'Ele esperam. Seja para sempre bendito, amen.
14. Outros trabalhos exteriores que dão os demónios, não devem ser tão habituais,
e assim não há para que falar neles, nem são tão penosos em grande parte; porque,
por muito que os demónios façam, não chegam a inabilitar assim as potências, a
meu parecer, nem a perturbar a alma desta maneira; porque, enfim, fica ainda a
razão para pensar que eles não podem fazer mais do que o Senhor lhes der licença;
e, quando esta não está perdida, tudo é pouco em comparação do que fica dito.
15. Outras penas interiores iremos dizendo nestas moradas, tratando das diferenças
que há na oração e nas mercês do Senhor. Porque, ainda que algumas são ainda de
mais duro padecer que o já dito, como se verá pelo estado em que deixam o corpo,
não merecem, no entanto, o nome de trabalhos, nem é razão que lho ponhamos, por
serem tão grandes mercês do Senhor, e, porque, no meio deles, a alma bem entende
serem mercês e muito acima de seus merecimentos. Esta pena tão grande vem já
para entrar na sétima morada, com outros muitos trabalhos, dos quais direi alguns,
porque todos seria impossível, nem mesmo declarar como são, porque vêm de
outra linhagem muito mais alta que os outros que disse; e se destes, sendo de casta
mais baixa, não pude declarar mais que o dito, menos poderei ainda nestes outros.
O Senhor nos dê para tudo o Seu favor, pelos méritos de Seu Filho, amen.
CAPÍTULO 2. Trata de algumas maneiras com que Nosso Senhor desperta a alma, nas quais
parece não há que temer, embora seja coisa muito subida, e sejam grandes mercês.
1. Parece que temos deixado muito a pombazita, mas não; porque estes trabalhos
são os que a fazem levantar ainda mais alto voo.
Comecemos, pois, agora a tratar da maneira como se avém com ela o Esposo, e
como, antes que de todo o seja, lho faz bem desejar, por uns meios tão delicados,
que a própria alma não os entende, nem eu creio acertarei a dizê-lo de modo a que
o entenda, a não ser as que passaram por isto; porque são uns impulsos tão
delicados e subtis, que procedem do mais interior da alma, que não sei que
comparação dar e que lhes quadre.
2. É bem diferente de tudo o que cá na terra podemos procurar, e até mesmo dos
gostos que ficam ditos, pois muitas vezes, estando a própria pessoa descuidada e
sem ter a memória em Deus, Sua Majestade a desperta, à maneira de um cometa
que passa depressa, ou de um trovão, ainda que não se ouça ruído; mas entende
muito bem a alma que foi chamamento de Deus, e tão bem entendido, que algumas
vezes, em especial ao princípio, a faz estremecer e até queixar-se, sem ser coisa
que lhe doa. Sente-se ferida saborosissimamente, mas não atina como nem quem a
feriu; mas bem conhece ser coisa preciosa e jamais quereria sarar daquela ferida.
Queixa-se a seu Esposo com palavras de amor, mesmo exteriores, sem poder fazer
outra coisa; porque entende que Ele está presente, mas não Se quer manifestar de
maneira a deixar-Se gozar. E é grande pena, ainda que saborosa e doce; e embora
não a queira ter, não pode; mas isto não o quereria jamais. Esta pena muito mais a
satisfaz que o embevecimento saboroso, que carece de pena, da oração de quietude.
3. Estou-me desfazendo, irmãs, para vos dar a entender esta operação de amor, e
não sei como o fazer. Porque parece coisa contraditória dar o Amado claramente a
entender que está com a alma e, ao mesmo tempo, parecer que a chama com um
sinal tão certo, que não se pode duvidar, e com um silvo tão penetrante para a alma
o entender, que não pode deixar de o ouvir; pois não parece senão que, em falando
o Esposo, que está na sétima morada, por este modo (que não é fala formada), toda
a gente que está nas outras moradas não ousa mexer-se: nem sentidos nem imagi,
nações, nem potências.
Oh! meu poderoso Deus, como são grandes os Vossos segredos, e que diferentes
são as coisas do Espírito de tudo quanto por cá se pode ver e entender, pois com
nenhuma coisa se pode declarar esta tão pequena, para as muito grandes que
operais com as almas!
4. Faz nela tão grande operação, que se está desfazendo em desejos, e não sabe. o
que pedir, porque claramente lhe parece que está com ela o seu Deus.
Dir-me-eis: Pois, se isto entende, que deseja ela, ou que é que lhe dá pena? e que
maior bem quer? Não sei; sei que lhe parece chegar às entranhas esta pena, e
quando delas lhe arranca a seta Aquele que a fere, verdadeiramente parece que lhas
leva atrás de si, tal é o sentimento de amor que sente. Estava eu pensando agora se
seria que deste fogo do braseiro incendido, que é o meu Deus, saltava alguma
centelha e dava na alma, de maneira a deixar-lhe sentir aquele incendido fogo, e
como ainda não era bastante para a queimar, e é tão deleitoso, ficava com aquela
pena e ao tocar nela fazia aquela operação; parece-me ser a melhor comparação
que acertei a dizer. Porque esta dor saborosa - e não é dor - não está em um ser;
ainda que, às vezes, dura um grande bocado, outras depressa se acaba: é como o
Senhor o quer comunicar, pois não é coisa que se possa procurar por nenhuma via
humana. Mas, ainda que está algumas vezes um bom bocado, desaparece e torna de
novo; enfim, esta dor nunca está fixa, e por isso não acaba de abrasar a alma, pois
mal se vai a acender, morre a centelha e a alma fica com o desejo de tornar a
padecer aquela dor amorosa que ela lhe causa.
5. Aqui não há que pensar se é coisa movida pelo mesmo natural, ou causada pela
melancolia, nem tão-pouco se é engano do demónio, ou se é coisa que se lhe
afigurou; porque se deixa muito bem entender vir este movimento de onde está o
Senhor que é imutável; e as operações não são como as de outras devoções, nas
quais o muito embevecimento do gosto nos pode fazer duvidar. Aqui estão todos
os sentidos e potências sem embevecimento, olhando ao que poderá ser, sem
estorvar em nada, nem poderem acrescentar aquela pena deleitosa, nem tirá-la, a
meu parecer.
A quem Nosso Senhor fizer esta mercê (que, se lha tem feito, em lendo isto o
entenderá), dê-Lhe muitas e muitas graças, pois não tem que temer se é ou não
engano; tema muito se há-de vir a ser ingrato a tão grande mercê, e procure
esforçar-se em servir e a melhorar em tudo a sua vida, e verá no que pára, e como
recebe mais e mais. Uma pessoa que teve isto, passou alguns anos assim, e só com
aquela mercê estava bem satisfeita, pois, se servisse ao Senhor uma multidão de
anos, com grandes trabalhos, ficava com ela muito bem paga. Bendito seja Ele para
sempre, amen.
6. Poderá ser que repareis como nisto há mais segurança do que noutras coisas. A
meu parecer, é por estas razões: a primeira, porque jamais o demónio pode dar uma
pena saborosa como esta. Poderá dar sabor e deleite que pareça espiritual; mas
juntar pena, e tanta, com quietude e gosto da alma, não é da sua faculdade, pois
todos os seus poderes estão por fora, e as suas penas, quando ele as dá, nunca são,
a meu parecer, saborosas nem com paz, senão inquietas e com guerra. A segunda
razão é porque esta tempestade saborosa vem de outra região, sem ser das que ele
pode senhorear. A terceira, pelos grandes proveitos que ficam na alma, os quais
são, muito habitualmente, determinar-se a padecer por Deus e desejar ter muitos
trabalhos e ficar muito mais determinada a apartar-se dos contentos e conversações
da terra, e outras coisas semelhantes.
7. O não ser ilusão, está muito claro; porque, ainda que outras vezes o procure, não
poderá contra-fazer aquilo. E é coisa tão notória, que de nenhuma maneira isso se
pode afigurar, digo parecer que é, não sendo, nem duvidar de que é verdade; e se
alguma dúvida ficar, saibam que esses ímpetos não são verdadeiros; digo, se
duvidar se os teve ou não; porque assim se dá a sentir, como aos ouvidos uma
grande voz. E ser melancolia não leva nenhum caminho, pois a melancolia não faz
nem fabrica seus antolhos senão na imaginação; isto, ao contrário, procede do
interior da alma.
Bem pode ser que eu me engane, mas até ouvir outras razões a quem o entenda,
sempre estarei nesta opinião; assim sei de uma pessoa muito cheia de temor destes
enganos, que desta oração nunca o pode ter.
8. Também costuma Nosso Senhor ter outras maneiras de despertar a alma: a
qualquer hora, estando a rezar vocalmente e descuidada de coisa interior, parece
que lhe vem uma inflamação deleitosa, como se de repente viesse um olor tão
grande, que se comunicasse por todos os sentidos (não digo que é olor, mas ponho
esta comparação), ou coisa de este género, só para dar a sentir que está ali o
Esposo; e move um desejo saboroso de a alma gozar d'Ele, e com isto fica disposta
para fazer grandes actos e louvores a Nosso Senhor. Esta mercê nasce de onde já
ficou dito; mas aqui não há coisa que dê pena, nem mesmo os desejos de gozar de
Deus são penosos: isto é o mais habitual senti-lo a alma. Tão-pouco me parece
haver que temer, por algumas das razões já ditas, senão procurar admitir esta mercê
com acção de graças.
CAPÍTULO 3. Trata da mesma matéria e diz a maneira como Deus fala à alma, quando é
servido, e avisa como se hão-de haver nisto, e não seguir o seu próprio parecer. Dá alguns
sinais para se conhecer quando não é engano, e quando o é. É muito proveitoso.
1. Outra maneira tem Deus de despertar a alma; embora, de algum modo, pareça
maior mercê que as já ditas, poderá ser mais perigosa e por isso me deterei um
tanto nela. São umas falas com a alma, de muitas maneiras: umas, parece que vêm
de fora; outras, do muito interior da alma; outras, da parte superior dela e outras,
tão do exterior, que se ouvem com os ouvidos, porque parece que é voz formada.
Algumas vezes, e muitas, pode ser ilusão, em especial em pessoas de imaginação
fraca ou melancólicas, digo de melancolia notável.
2. Destas duas maneiras de ser das pessoas não há que fazer caso, a meu parecer,
ainda que digam que vêem e ouvem e entendem, nem inquietá-las com dizer-lhes
que é demónio; mas ouvi-las como pessoas enfermas, dizendo a prioresa ou o
confessor, a quem lho disser, que não faça caso disso; não está aí o essencial para
servir a Deus e que muitos têm sido enganados pelo demónio, ainda que não será
talvez assim com ela, e isto para não a afligir mais do que já está com o seu humor
doentio; porque, se lhe dizem que é melancolia, é um não acabar: jurará que o vê e
ouve, porque assim lhe parece.
3. Verdade é que é preciso ter cuidado de lhes tirar a oração, e procurar o mais que
se puder que não façam caso disso; porque o demónio costuma aproveitar-se destas
almas assim enfermas, embora não seja para seu dano, mas para o de outros; e
tanto em enfermas como em sãs, sempre há que temer destas coisas, até ir
entendendo o espírito que é. E digo que o melhor é sempre desfazer-lho nos
princípios; porque, se é de Deus, é maior ajuda para ir adiante, e antes cresce
quando é contrariado. Isto é assim, mas que não seja apertando muito a alma e
inquietando-a, porque verdadeiramente ela não pode mais.
4. Pois, voltando ao que dizia das falas com a alma, de todas as maneiras que disse,
podem ser de Deus e também do demónio e da própria imaginação. Direi, se
acertar, com o favor do Senhor, os sinais que há nestas diferenças e quando estas
falas serão perigosas. Porque há muitas almas que as ouvem entre gente de oração,
e eu não quereria, irmãs, que pensásseis que fazeis mal em não lhes dar crédito,
nem tão-pouco em dar-lho, quando são somente para vós mesmas, isto é: de
consolação, ou aviso de faltas vossas; diga-as quem as disser, ou seja ilusão ou
não, pouco vai nisso. De uma coisa vos aviso: não penseis, embora sejam de Deus,
que por isso sereis melhores pois muito falou Ele aos fariseus, e todo o bem está
em como se aproveitam destas palavras. E de nenhuma que não vá muito conforme
à Sagrada Escritura não façais mais caso delas do que se as ouvísseis ao mesmo
demónio; porque, ainda mesmo que sejam só da vossa fraca imaginação, é preciso
tomarem-se como sendo uma tentação contra. coisas de fé, e assim resistir-lhes
sempre, para que se vão afastando; e; de. facto, virão a desaparecer porque trazem
consigo pouca força.
5. Pois, voltando ao primeiro, quer venha do interior, quer da parte superior, quer
do exterior, isso não importa para deixar de ser de Deus. Os sinais mais certos que
se podem ter, a meu parecer, são estes: o primeiro e mais verdadeiro, é o poderio e
senhorio que trazem consigo, que é falando e operando. Declaro mais. Está uma
alma em toda a tribulação e alvoroto interior que fica dito, e escuridão do
entendimento e aridez. E, com uma palavra destas, que diga somente: «não tenhas
pena», fica sossegada e sem nenhuma pena, e com grande luz, desaparecendo toda
aquela pena, em que lhe parecia que, se todo o mundo e os letrados se juntassem a
dar-lhe razões para que não a tivesse, não poderiam, por muito que trabalhassem,
tirá-la daquela aflição. Está aflita por lhe ter dito o seu confessor, ou outros, que é
espírito do demónio o que ela tem, e toda ela está cheia de temor; e, com uma só
palavra destas que se lhe diga: «Sou Eu, não tenhas medo», desaparece todo o
medo e fica consoladíssima, parecendo-lhe que ninguém conseguirá fazer-lhe crer
outra coisa. Está com muita pena de alguns negócios graves, pois não sabe que
resultado irão ter. Mas, entendendo que lhe dizem que «sossegue, que tudo
sucederá bem», fica com uma grande certeza e sem pena. E deste modo, outras
muitas coisas.
6. A segunda razão ou sinal é uma grande quietude que fica na alma, e um
recolhimento devoto e pacífico, ficando ela assim disposta para os louvores de
Deus. Oh! Senhor, se uma palavra mandada dizer por meio de um Vosso pajem
(pois segundo dizem, estas ao menos nesta morada, não as diz o mesmo Senhor,
mas sim algum anjo), tem tanta força, a que ponto a deixareis na alma que está
ligada por amor conVosco, e Vós com ela?
7. O terceiro sinal é não se apagarem estas palavras da memória durante muito
tempo, e algumas nunca, como se apagam as que ouvimos cá na terra, digo as que
ouvimos aos homens; pois, ainda que sejam muito graves e letrados, não nos ficam
tão esculpidas na memória, nem mesmo se são de coisas por vir, as acreditamos
como a estas; é que fica uma grandíssima certeza, embora algumas vezes em coisas
muito impossíveis ao parecer, não deixe de lhe vir a dúvida se será ou não será, e o
entendimento ande com algumas vacilações, na mesma alma há, no entanto, uma
segurança que não se pode render, ainda mesmo que lhe pareça que vai tudo ao
contrário do que entendeu; e passam anos, e não se lhe tira aquele pensar que Deus
buscará outros meios que os homens não entendem, mas que, enfim, se há-de fazer
e assim se faz por fim; ainda que, como digo, não se deixa de padecer quando se
vêem muitos desvios, porque, como já há tempos que o entendeu, e os sinais e a
certeza que ao presente ficam de ser aquilo de Deus é já de coisas do passado, dá
lugar a estas hesitações, pensando se foi do demónio, se foi da imaginação;
contudo nenhuma destas dúvidas lhe fica ao presente, e até morreria por aquela
verdade. Mas, como digo, com todas estas imaginações que o demónio levanta
para perturbar e acobardar a alma, em especial se é em negócio que em fazer-se tal
qual se entendeu há de advir muito bem às almas, e são obras de grande honra e
serviço de Deus, e nelas há grande dificuldade, o que não fará ele? Ao menos
enfraquece a fé, pois é grande dano não crer que Deus é poderoso para fazer obras
que não alcançam os nossos entendimentos.
8. Apesar de todos estes combates, ainda que haja quem diga à mesma pessoa que
são disparates (digo os confessores com quem se tratam estas coisas), e apesar dos
maus sucessos que pode haver para dar a entender que essas coisas não se podem
cumprir, sempre fica - não sei onde -, uma centelha tão viva, de que assim será
que, embora todas as demais esperanças estejam mortas, não poderia, ainda mesmo
que quisesse, deixar de estar viva aquela centelha de segurança. E por fim - como
já disse -, cumpre-se a palavra do Senhor e a alma fica tão contente e alegre, que
não quereria senão louvar sempre a Sua Majestade, por ver cumprido o que se lhe
tinha dito, muito mais do que pela própria obra, ainda que nela se empenhasse
muito, muito.
9. Não sei de que vem isto, que a alma tenha em tanto apreço que saiam
verdadeiras estas palavras de Deus, pois, se a mesma pessoa fosse apanhada em
algumas mentiras, creio que não o sentiria tanto; como se ela nisto pudesse mais do
que dizer o que lhe dizem. Infinitas vezes se lembrava acerca disto certa pessoa do
profeta Jonas, quando temia que não se houvesse de perder Nínive. Enfim; como é
espírito de Deus, é razão que se lhe tenha esta fidelidade em desejar que não O
tenham por falso, pois é a suma Verdade. E assim é grande a alegria quando,
depois de mil rodeios, e em coisas dificultosíssimas, vê aquilo cumprido; e ainda
que daí hajam de sobrevir grandes trabalhos à mesma pessoa, ela antes os quer
sofrer, do que deixar-se de cumprir o que tem por certo ter-lhe dito o Senhor.
Talvez nem todas as pessoas terão esta fraqueza, se o é, que eu isto não posso
condenar por mau.
10. Se são da imaginação, não há nenhum destes sinais, nem certeza, nem paz e
gosto interior; salvo que poderia acontecer, e até eu sei de algumas pessoas a quem
tem acontecido, estando muito embebidas em oração de quietude e sono espiritual,
pois algumas são fracas de compleição ou imaginação, ou não sei a causa, neste
grande recolhimento estão verdadeiramente tão fora de si, que não se sentem no
exterior e ficam tão adormentados todos os sentidos, que, como uma pessoa que
dorme e até talvez seja assim e estejam adormecidas, a modo de sonho lhes parece
que lhes falam, e até vêem coisas e pensam que é de Deus, e que deixam na alma
seus efeitos, enfim, como de sonho. E também poderia ser, pedindo uma coisa
afectuosamente a Nosso Senhor, parecer-lhes que lhes dizem o que querem e isto
acontece algumas vezes. Mas quem tiver muita experiência das falas de Deus, não
se poderá enganar - a meu parecer - nisto da imaginação.
11. Do demónio há mais que temer. Mas, se há os sinais que ficam ditos, muito se
pode assegurar ser de Deus, embora não de maneira que, se é coisa grave o que se
lhe diz, e se se há-de pôr por obra em coisa sua ou em negócios de terceiras
pessoas, nunca faça nada, nem lhe passe pelo pensamento fazê-lo sem a opinião de
confessor letrado e avisado e servo de Deus; e isto, ainda mesmo que o entenda
muito bem e lhe pareça claramente ser coisa de Deus, porque é o que Sua
Majestade quer, e não é deixar de fazer o que Ele manda, pois nos tem dito que
tenhamos ao confessor em Seu lugar, e aqui não se pode duvidar serem palavras
Suas; e estas ajudam a ter ânimo, se é negócio dificultoso, e Nosso Senhor o dará
ao confessor e fará que ele creia que é espírito Seu, quando Ele o quiser, e se não,
não estão a mais obrigados. E fazer outra coisa sem ser o que fica dito, e alguém
guiar-se nisto pelo seu próprio parecer, tenho-o por coisa muito perigosa; e assim
admoesto-vos, irmãs, da parte de Nosso Senhor, que nunca isto vos aconteça.
12. Tem o Senhor outra maneira de falar à alma, que eu tenho para mim por muito
certo ser de Sua parte: por meio de alguma visão intelectual, que adiante direi
como é. É tão no íntimo da alma, e parece-lhe ouvir tão claro do mesmo Senhor
aquelas palavras com os ouvidos da alma, e tão em segredo, que a mesma maneira
de as entender, com as operações que produz a mesma visão, assegura e dá certeza
de que ali o demónio não pode ter parte. Deixa grandes efeitos para se crer isto;
pelo menos, há segurança de que não procede da imaginação, e também, se há
advertência, sempre disto a pode ter, por estas razões: A primeira, porque deve ser
diferente na clareza da fala, que é tão clara que, se falta uma silaba daquilo que
entendeu, se lembra, e se foi dito por um estilo ou por outro, embora seja tudo a
mesma sentença; e naquilo que se afigure pela imaginação, não será fala tão clara,
nem palavras tão distintas, senão como coisa meio sonhada.
13. A segunda é porque não se pensava aqui muitas vezes no que se entendeu -digo
que é a desoras e até algumas vezes estando em conversação -, embora em muitas
se responda ao que passa num pronto pelo pensamento ou ao que antes se tinha
pensado; mas muitas vezes é em coisas que nunca teve ideia de que poderiam ser
nem seriam; e assim não as poderia ter fabricado a imaginação para que a alma se
enganasse em se lhe afigurar o que não tinha desejado, nem querido, nem tinha
vindo ao seu conhecimento.
14. A terceira razão é porque isto é como quem ouve; e o da imaginação é como
quem vai compondo, pouco a pouco, o que ele mesmo quer que lhe digam.
15. A quarta, porque as palavras são muito diferentes, e com uma só se
compreende muito, o que o nosso entendimento não poderia compor tão depressa.
16. A quinta, porque muitas vezes, juntamente com as palavras, por um modo que
eu não saberei dizer, dá-se a entender, sem palavras, muito mais do que elas soam.
Deste modo de entender, falarei mais noutra parte, pois é coisa muito delicada e
para louvar a Nosso Senhor. É que, nesta maneira e nestas diferenças tem havido
pessoas que ficam muito duvidosas, (em especial uma por quem isto passou, e
assim haverá outras) que não chegam a entender-se. Sei, pois, que essa pessoa tem
olhado a isto com muito cuidado, porque têm sido muitas as vezes que o Senhor
lhe faz esta mercê, e a maior dúvida que tinha a princípio era nisto: se era ilusão. O
ser do demónio, mais depressa se pode entender, ainda que são tantas as suas
subtilezas que bem sabe contrafazer o espírito de luz; mas será - a meu parecer -só
nas palavras, dizendo-as muito claras, para que também não fique dúvida se se
entenderam tal como quando são do Espírito de Verdade; mas não poderá
contrafazer os efeitos que ficam ditos, nem deixar essa paz e essa claridade na
alma; antes, inquietação e alvoroto. Mas pode fazer pouco dano, ou nenhum, se a
alma é humilde e faz o que tenho dito de não se mover a fazer nada, por mais
coisas que oiça.
17. Se são favores e regalos do Senhor, veja com atenção se, por causa disto, se
tem por melhor; c se, quando for maior a palavra de regalo, não ficar mais
confundida, creia que não é espírito de Deus. Porque é coisa muito certa que,
quando o é, quanto maior mercê lhe faz, em tanto menos se tem a mesma alma, e
maior lembrança lhe traz de seus pecados, e mais olvidada anda de seu próprio
lucro, e mais emprega sua vontade e memória em só querer a honra de Deus; nem
se recorda do seu próprio proveito, e anda com maior temor de torcer em alguma
coisa a Sua divina vontade, e com maior certeza de nunca ter merecido aquelas
mercês, mas sim o inferno. Logo que façam estes efeitos todas as coisas e mercês
que tiver na oração, não ande a alma assustada, mas confiada na misericórdia do
Senhor, que é fiel, e não deixará que o demónio a engane, ainda que é bom andar
sempre com temor.
18. Poderá ser que, àquelas que o Senhor não leva por este caminho, lhes pareça
que estas almas poderiam não escutar estas palavras que lhes dizem e, se são falas
interiores, distrair-se de maneira a não as admitirem, e com isto andariam sem estes
perigos.
A isto respondo que é impossível: não falo das que se lhes afigura que ouvem, pois
não estando a apetecer tanto alguma coisa, nem querendo fazer caso das
imaginações, têm remédio. Aqui não há nenhum, porque o mesmo espírito que
fala, de tal maneira faz parar todos os outros pensamentos e advertir ao que se diz
que, em certo modo, seria mais possível, me parece e creio ser assim, uma pessoa
que ouvisse muito bem não entender a outra que falasse em altas vozes. Poderia
não advertir, e pôr o pensamento e o entendimento em outra coisa. Mas nisto de
que tratamos não se pode fazer assim. Não há ouvidos que se tapem, nem poder
para pensar, a não ser no que se lhe diz; porque O que fez parar o sol - a pedido de
Josué creio que era - pode fazer parar as potências e todo o interior.
De maneira que a alma vê bem que outro maior Senhor do que ela governa aquele
castelo, e isto faz-lhe muita devoção e ter muita humildade. Assim é que, para se
escusar a isto, não há nenhum remédio. No-lo dê a divina Majestade para pormos
os olhos só em O contentar e nos esqueçamos de nós mesmos, como tenho dito,
amen. Praza-Lhe que eu tenha acertado em dar a entender o que nisto .pretendia, e
seja um aviso para quem tiver estas coisas.
CAPÍTULO 4. Trata de quando Deus suspende a alma na oração com arroubamento, ou êxtase,
ou rapto, que tudo é uma mesma coisa, a meu parecer e como é mister grande. ânimo para
receber grandes mercês de Sua Majestade.
1. Com estas ditas coisas de trabalhos e as demais, que sossego pode trazer a pobre
borboletazinha? Tudo é para mais desejar gozar do Esposo; e Sua Majestade, como
quem conhece a nossa fraqueza, vai-a habilitando com estas coisas e outras muitas,
para que tenha ânimo de se unir a tão grande Senhor e tomá-Lo por Esposo?
2. Rir-vos-eis de que diga isto, e parecer-vos-á desatino; porque a qualquer de vós
vos parecerá que não é preciso tê-lo e não haverá nenhuma mulher de tão humilde
condição, que o não tenha para desposar-se com o rei. Assim o creio eu comum da
terra; mas com O do Céu, eu vos digo ser preciso mais ânimo do que pensais;
porque o nosso natural é muito tímido e baixo para tão grande coisa, e tenho por
certo que, se Deus não lho desse, apesar de quanto vedes e de quanto nos convém,
seria impossível tê-lo. E assim vereis o que faz Sua Majestade para concluir este
desposório, que eu entendo deve ser quando dá arroubamentos, que a tira de seus
sentidos; porque se estando neles se visse tão perto desta grande Majestade, não
seria possível porventura ficar com vida.. Entende-se arroubamentos que o sejam, e
não fraquezas de mulheres, como por cá temos, que tudo nos parece arroubamento
e êxtase, e, - como creio já ter dito -, há compleições tão fracas que, com uma
oração de quietude, quase que morrem.
Quero deixar aqui algumas maneiras que tenho entendido haver de arroubamentos
(por ter trato com tantas pessoas espirituais) embora não sei se acertarei a dizê-lo
como disse em outra parte onde escrevi sobre isto e algumas coisas das que vão
aqui que, por algumas razões, me pareceu que nada se perde em as tornar a dizer,
ainda mesmo quando não seja senão para que as moradas fiquem todas aqui por
junto.
3. Uma das maneiras é que, estando a alma, ainda mesmo que não seja em oração,
tocada de alguma palavra de que se lembrou, ou que então ouve de Deus, parece
que Sua Majestade desde o interior da alma faz crescer a centelha que já dissemos,
movido de piedade de a ter visto padecer tanto tempo com desejo d'Ele e, abrasada
toda ela como uma ave Fénix, fica renovada e, piedosamente se pode crer,
perdoadas as suas culpas (há-de-se entender, com a disposição e os meios que esta
alma terá tido, como a Igreja o ensina). E assim limpa, o Senhor a une consigo,
sem ainda ninguém o entender, a não ser os dois, nem ainda a mesma alma o
entende de modo a podê-lo depois dizer, conquanto não esteja sem sentidos
interiores; porque não é como quem é tomado de desmaio ou paroxismo em que
não entende nenhuma coisa interior nem exterior.
4. O que eu entendo neste caso é que a alma nunca esteve tão desperta para as
coisas de Deus, nem com tão grande luz e conhecimento de Sua Majestade.
Parecerá impossível, porque, se as potências estão tão absortas, que podemos até
dizer que estão mortas, e os sentidos na mesma, como se pode entender que
entende esse segredo? Eu não sei, nem talvez nenhuma criatura, senão o mesmo
Criador, assim como outras muitas coisas que se passam neste estado, digo nestas
duas moradas; pois esta e a última poder-se-iam juntar muito bem, porque, de uma
à outra, não há porta cerrada. Mas, porque na última há coisas que ainda se não
manifestaram aos que não chegaram a ela, pareceu-me bem separá-las.
5. Quando, estando a alma nesta suspensão, o Senhor tem por bem mostrar-lhe
alguns segredos, como de coisas do Céu e visões imaginárias, isto sabe dizê-lo
depois e de tal maneira fica impresso na memória, que nunca jamais se esquece;
mas, quando são visões intelectuais, estas tão-pouco as sabe dizer; porque deve
haver a este tempo algumas tão subidas, que não convém que as entendam os que
vivem nesta terra para as poderem dizer, embora estando a alma sã e em seus
sentidos, se possam por cá dizer muitas destas visões intelectuais. Poderá ser que
algumas de vós não entendais que coisa sejam visões, em especial intelectuais. Eu
o direi a seu tempo, porque mo mandou quem pode; e, ainda que, pareça coisa
impertinente, talvez para algumas almas seja de proveito.
6. Mas dir-me-eis: se depois não há-de haver lembrança dessas mercês tão subidas
que o Senhor aí faz à alma, que proveito lhe trazem? Oh! filhas, é tão grande que
nem se pode encarecer; porque, embora não se saibam dizer, lá no muito interior
da alma ficam bem escritas e jamais se esquecem.
Pois, se não têm imagem, nem as entendem as potências, como se podem lembrar?
Tão-pouco entendo eu isso; mas entendo que ficam nesta alma umas verdades tão
fixas da grandeza de Deus, que, ainda que não tivera fé que lhe diga quem Ele é, e
que está obrigada a tê-Lo por Deus, adorá-Lo-ia como tal, desde aquele momento,
como fez Jacob, quando viu a escada; porque com ela devia ter entendido outros
segredos que não soube dizer, pois só com ver uma escada por onde desciam e
subiam anjos, se não tivesse tido mais luz interior, não teria entendido tão grandes
mistérios.
7. Não sei se atino no que digo, porque embora o tenha ouvido, não sei se me
recordo bem. Nem tão-pouco Moisés soube dizer tudo o que viu na sarça, senão o
que Deus quis que dissesse: Mas, se Deus não mostrasse à alma alguns segredos,
certamente para que visse e cresse que era Deus, não se meteria em tantos e tão
grandes trabalhos. Mas deve ter entendido tão grandes coisas dentro dos espinhos
daquela sarça, que lhe deram ânimo para fazer o que fez pelo povo de Israel.
Assim, irmãs, nas coisas ocultas de Deus não havemos de buscar razões para as
entender, mas, assim como cremos que é poderoso, está claro que havemos de crer
que um vermezinho de tão limitado poder como nós, não pode entender Suas
grandezas. Louvemo-l'O muito, porque é servido que entendamos algumas.
8. Estou desejando acertar com uma comparação para ver se posso dar a entender
alguma coisa disto que vou dizendo e creio não haver nenhuma que quadre, mas
digamos esta: entrais num aposento de um rei ou grande senhor, creio lhe chamam
câmara, onde tem infinitos géneros de vidros e loiças e muitas coisas, postas em tal
ordem, que quase todas se vêem logo ao entrar. Uma vez me levaram a um destes
aposentos em casa da duquesa de Alba (onde, vindo de caminho, me mandou estar
a obediência, por esta senhora ter importunado os superiores com pedidos), e fiquei
espantada logo ao entrar e considerava para que podia aproveitar aquela barafunda
de coisas, e via que se podia louvar ao Senhor ao ver tamanha diversidade. Agora
acho graça como me aproveita para isto que digo. E, ainda que estive ali algum
tempo, era tanto o que havia para ver, que logo me esqueci de tudo, de maneira que
de nenhuma daquelas peças, me ficou mais memória como se nunca as tivesse
visto, nem saberia dizer de que feitura eram; (mas, assim em conjunto, lembro-me
de o ter visto). Assim aqui; está a alma tão unida com Deus, metida neste aposento
do céu empíreo, que devemos ter no interior das nossa almas (porque está claro
que, visto Deus estar nelas, está nalguma destas moradas); e ainda que, quando a
alma está assim em êxtase, nem sempre o Senhor deve querer que veja estes
segredos (porque está tão embebida em gozá-Lo, que lhe basta tão grande bem),
algumas vezes gosta, no entanto, que ela se desembeveça e veja de repente o que
está naquele aposento; e assim fica, depois de voltar a si, com aquela representação
das grandezas que viu; mas não pode dizer nenhuma, nem o seu natural chega a
mais do que ao sobrenatural que Deus quis que ela visse.
9. Logo já confesso o que foi ver, e o que é visão imaginária. Não quero dizer tal,
pois não é disto que trato, senão de visão intelectual; mas, como não tenho letras, a
minha rudeza não sabe dizer nada; pois, o que tenho dito até aqui, nesta oração,
entendo claramente que, se vai bem, não fui eu que o disse.
Eu tenho para mim que, se algumas vezes a alma, a quem Deus deu arroubamento,
não entende neles destes segredos; não são arroubamentos, senão alguma fraqueza
natural, que pode dar a pessoas de fraca compleição, como somos nós as mulheres,
juntamente com alguma força de espírito que sobrepuje o natural, e ficam-se assim
embevecidas, como creio ter dito na oração de quietude. Isto nada tem a ver com
arroubamentos, porque, quando é arroubamento, crede que Deus rouba toda a alma
para Si, e que, como a coisa própria Sua e já Sua esposa, lhe vai mostrando alguma
partezinha do reino que já ganhou por ser Sua esposa; e, por pouco que seja, é tudo
muito o que há neste grande Deus, e não quer estorvo de ninguém, nem das
potências, nem dos sentidos; senão, depressa manda fechar as portas de todas estas
moradas, e só aquela em que Ele está fica aberta, para nós entrarmos. Bendita seja
tão grande misericórdia; e com razão serão malditos os que não quiserem
aproveitar-se dela, e perderem este Senhor.
10. Oh! irmãs minhas, que não é nada o que deixámos, nem nada o que fazemos,
nem quanto pudermos fazer por um Deus que assim se comunica a um
vermezinho! E, se temos esperança de ainda nesta vida gozar deste bem, que
fazemos e em que nos detemos? Que coisa é bastante para que deixemos um só
momento de buscar a este Senhor, como o fazia a Esposa, por bairros e praças?
Oh! e que farsa é tudo o que há no mundo, se não nos leva e ajuda a isto, ainda
mesmo que durassem para sempre os seus deleites, riquezas e gozos, todos quantos
se puderem imaginar, que tudo é asco e lixo, comparado a estes tesouros que se
hão-de gozar sem fim! Mesmo estes são nada em comparação de ter por nosso ao
Senhor de todos os tesouros do Céu e da terra.
11. Oh cegueira humana! Até quando, até quando estaremos até que nos caia esta
terra de nossos olhos? Pois, embora entre nós não parece ser tanta que nos cegue
de todo, vejo uns argueirinhos, umas manchazinhas que, se os deixamos crescer,
bastarão para nos fazer grande dano; senão que, por amor de Deus, irmãs,
aproveitemo-nos destas faltas para conhecer a nossa miséria e elas nos dêem
melhor vista, como a deu o lodo ao cego a quem sarou o nosso Esposo. E assim,
vendo-nos tão imperfeitas, cresça mais em nós o suplicar-Lhe que tire bens das
nossas misérias, para em tudo contentarmos a Sua Majestade.
12. Muito me tenho desviado do assunto sem o perceber. Perdoai-me, irmãs, e
crede que, chegada a estas grandezas de Deus, digo a falar delas, não pode deixar
de me dar muita lástima ver o que perdemos por nossa culpa. Porque, embora seja
verdade que são coisas que o Senhor dá a quem Ele quer, se quiséssemos a Sua
Majestade como Ele nos quer, dá-las-ia a todos. Não está desejando outra coisa
senão ter a quem dar, que por isso não se diminuem Suas riquezas.
13. Tornando, pois, ao que dizia, manda o Esposo cerrar as portas das moradas e
até as do castelo e da cerca; porque, em querendo arrebatar a esta alma, tira-se-lhe
o fôlego de maneira que, embora dure algumas vezes um pouquinho mais na posse
dos outros sentidos, de nenhum modo pode falar; ainda que de outras vezes tudo se
lhe tira de repente e resfriam-se as mãos e o corpo, de modo que não parece ter
alma, nem se percebe algumas vezes se respira. Isto dura pouco tempo, digo, para
estar num mesmo ser; porque, atenuando-se um pouco esta grande suspensão,
parece que o corpo volta um tanto a si e toma alento para tornar a morrer e dar
maior vida à alma, e, no entanto, isto não dura muito neste tão grande êxtase; [14]
mas, ainda que se tira a suspensão, acontece ficar a vontade tão embevecida e o
entendimento tão alheio, que dura assim o dia e até dias, que parece não é capaz de
atender a coisa que não seja para despertar a vontade a amar e ela ali se fica muito
desperta para isto e adormecida para se lançar a apegar-se a alguma criatura.
15. Oh! quando a alma torna já de todo a si, quanta não é a confusão que lhe fica, e
que desejos tão grandes de se empregar em Deus, de todas as maneiras que Ele se
quiser servir dela! Se das orações passadas já ficam tais efeitos como os que ficam
ditos, que será de uma mercê tão grande corno esta? Quereria ter mil vidas para as
empregar todas em Deus, e que todas quantas coisas há na terra fossem línguas
para O louvar por ela. Desejos de fazer penitência, grandíssimos; e não faz muito
em a fazer, porque, com a força do amor, sente pouco quanto faz, e vê claramente
que os mártires não faziam muito nos tormentos que padeciam, porque, com esta
ajuda da parte de Nosso Senhor, é fácil, e assim se queixam estas almas a Sua
Majestade quando não se lhes oferece em que padecer.
16. Quando esta mercê lhes é feita em segredo, têm-na por muito grande; porque,
quando é diante de algumas pessoas, é tão grande a vergonha e afronta que lhes
fica, que de algum modo embevece a alma do, que gozou, com a pena e cuidado
que lhe dá o pensar no que pensarão os que isto viram. Porque conhecem a malícia
do mundo, e entendem que não o lançarão porventura à conta do que é, mas antes
aquilo por que haviam de louvar ao Senhor, talvez seja ocasião para eles fazerem
maus juízos. Esta pena e vergonha parece-me de certo modo falta de humildade;
mas isto já não está em sua mão; porque, se esta pessoa deseja ser vituperada, que
lhe importa? Como entendeu alguém, que estava nesta aflição, da parte de Nosso
Senhor: «Não tenhas pena, porque, ou eles Me hão-de louvar a Mim, ou murmurar
de ti; e em qualquer destas coisas ganhas tu». Soube depois que esta pessoa se
tinha animado muito e consolado com estas palavras; e assim, para o caso de
alguma se vir nesta aflição, as deixo aqui. Parece que Nosso Senhor quer que todos
entendam que aquela alma é já Sua, e que ninguém há-de tocar nela; no corpo, na
honra, na fazenda, seja em muito boa hora, pois de tudo se tirará honra para Sua
Majestade; mas na alma, isso não; pois se ela, com muito culpável atrevimento,
não se aparta de Seu Esposo, Ele lhe será amparo contra todo o mundo e até contra
todo o, inferno.
17. Não sei se fica dado a entender algo do que seja o arroubamento, porque tudo é
impossível, como disse; e creio não se ter perdido nada em o dizer, para se poder
entender o que é, porque há efeitos muito diferentes nos fingidos arroubamentos.
Não digo fingidos, porque quem os tem queira enganar, mas porque o está ela
própria; e como os sinais e efeitos não são conformes a tão grande mercê, fica
desacreditada de tal maneira que, com razão, não se dá depois crédito a quem o
Senhor fizer esta mercê. Seja Ele para sempre bendito e louvado, amen, amen.
CAPÍTULO 5. Prossegue no mesmo assunto, e declara uma maneira como Deus levanta a alma
com um voo de espírito, de modo diferente ao que fica dito. Diz algumas das razões porque é
mister ânimo. Declara alguma coisa desta mercê que o Senhor faz por saborosa maneira. É
muito proveitoso
1. Há outra maneira de arroubamento, voo de espírito lhe chamo eu; pois, ainda
que tudo seja um na substância, no interior sente-se muito diferentemente; porque,
algumas vezes, sente-se muito repentinamente um movimento tão acelerado da
alma, que parece que o espírito é arrebatado com uma velocidade que deixa grande
temor, em especial nos princípios. Por isso vos dizia que é preciso ânimo grande z
a quem Deus há-de fazer estas mercês, e ainda grande fé e confiança e resignação
para que Nosso Senhor faça da alma o que quiser. Pensais que é pouca turbação
estar uma pessoa muito em seus sentidos e ver-se arrebatar a alma? E até de alguns
temos lido que o corpo vai com ela, sem saber para onde, ou, quem a leva ou
como; porque no princípio deste momentâneo movimento não há tanta certeza de
que é Deus.
2. Haverá, pois, algum remédio para se poder resistir? De nenhum modo; antes é
pior. E eu sei isto por uma pessoa, que parece querer Deus dar a entender à alma,
pois já tantas vezes e tão deveras se tem colocado em Suas mãos, e com tão inteira
vontade se Lhe ofereceu toda para que entenda que já não tem parte em si mesma e
com um movimento notavelmente mais impetuoso, é arrebatada; e por si tomava a
resolução de não fazer mais do que faz uma palha, quando a levanta o âmbar, se já
o tendes visto, e deixar-se ir nas mãos de Quem tão poderoso é, pois vê que o mais
acertado é fazer da necessidade virtude. E, como falei da palha, é certo que é
mesmo assim, pois com a facilidade com que um grande mocetão pode arrebatar
uma palha, este nosso grande e poderoso gigante arrebata o espírito.
3. Não parece senão que aquele tanque de água que dissemos - creio na quarta
morada, pois não me recordo bem ? que com tanta suavidade e mansidão, digo sem
nenhum movimento, se enchia, aqui, este grande Deus, que detém os mananciais
das águas e não deixa sair o mar de seus limites, abriu os mananciais donde vinha a
água a este tanque; e com um grande ímpeto se levanta uma onda tão poderosa,
que sobe ao alto esta barquinha da nossa alma. E assim, como uma nau não pode
conservar-se quieta nem o piloto, nem todos os que a governam têm poder para que
as ondas, se vêm com fúria; a deixem estar onde eles querem, muito menos pode o
interior da alma deter-se onde quer, nem fazer com que seus sentidos e potências
façam mais do que lhes têm mandado, porque do exterior aqui não se faz caso dele.
4. É certo, irmãs, que só de o ir escrevendo, me vou enchendo de espanto ao ver
como se mostra aqui o grande poder deste grande Rei e Imperador; o que fará pois
quem passa por isso! Tenho para mim que, se aos que andam muito perdidos pelo
mundo, se lhes descobrisse Sua Majestade como o faz a estas almas, ainda que não
fosse por amor, por medo não O ousariam ofender. Oh! quão obrigadas estarão,
pois, as que foram avisadas, por caminho tão subido, a procurar com todas as suas
forças não desgostar a este Senhor! Por Ele vos suplico, irmãs, àquelas a quem Sua
Majestade tiver feito estas mercês ou outras semelhantes, que não vos descuideis
com não fazer mais do que receber; olhai que, quem muito deve, muito há-de
pagar.
5. Para isto também é preciso grande ânimo, pois é uma coisa que acobarda de
grande modo; e se Nosso Senhor não lho desse, andaria sempre com grande
aflição; porque, olhando ao que Sua Majestade faz com ela, e tornando a olhar para
si, vê quão pouco serve para o que está obrigada, e esse poucochinho que faz, tão
cheio de faltas e quebras e frouxidão, tem por melhor, a fim de não se lembrar de
quão imperfeitamente faz qualquer obra, se a faz, procurar que ela se lhe esqueça e
trazer diante dos olhos seus pecados e esconder-se na misericórdia de Deus, pois,
já que não tem com que pagar, supra a piedade e misericórdia que Ele sempre tem
com os pecadores.
6. Talvez o Senhor lhe responda como a uma pessoa que estava muito aflita neste
ponto diante de um crucifixo, considerando que nunca tinha tido nada que dar a
Deus, nem que deixar por Ele. Disse-lhe o mesmo Crucificado consolando-a: que
Ele lhe dava todas as dores e trabalhos que tinha passado em Sua Paixão, que os
tivesse por próprios para os oferecer a Seu Pai. Ficou aquela alma tão consolada e
tão rica, segundo entendi dela mesma, que não o pôde esquecer; antes, cada vez
que se vê tão miserável, recordando-se disto, fica animada e consolada.
Algumas coisas destas poderia eu dizer aqui, porque, como tenho tratado com
tantas pessoas santas e de oração, sei muitas; para que não penseis que sou eu, não
o faço. Esta parece-me de grande proveito, para que entendais como se contenta o
Senhor em nos conhecermos, e procuremos sempre mirar e remirar a nossa pobreza
e miséria, e que não temos nada que não o tenhamos recebido." Assim, pois,
minhas irmãs, para isto e outras muitas coisas que se oferecem a uma alma a quem
o Senhor já trouxe a este ponto, é preciso ânimo; e a meu parecer, para esta última
mais ainda que para tudo o mais, se há humildade. O Senhor no-la dê por quem é.
7. Pois, voltando a este apressurado arrebatamento do espírito, é de tal maneira,
que verdadeiramente parece que sai do corpo, e, por outro lado, é claro que esta
pessoa não fica morta; pelo menos ela não pode dizer se está no corpo ou não, por
uns instantes. Parece-lhe que toda inteira esteve em outra região muito diferente
desta em que vivemos, onde se lhe mostra outra luz tão diferente desta de cá, que,
se toda a sua vida a estivesse a fabricar, juntamente com outras coisas que então
vê, seria impossível alcançá-las. E acontece ensinarem-lhe num instante tantas
coisas juntas, que em muitos anos que trabalhasse em as ordenar com a imaginação
e o pensamento, de mil partes não poderia ordenar uma só. Isto não é visão
intelectual, senão imaginária vê-se com os olhos da alma muito melhor do que
vemos aqui com os do corpo, e sem palavras se lhe dão a entender algumas coisas;
digo, como se vê alguns santos, conhece-os, como se tivesse tratado muito com
eles.
8. Outras vezes, juntamente com as coisas que vê com os olhos da alma,
representam-se-lhe outras por visão intelectual, em especial multidões de anjos
com o Senhor deles, e sem ver nada com os olhos do corpo nem da alma. Por um
conhecimento admirável que eu não saberia dizer, representa-se-lhe o que digo e
outras muitas coisas que não são para dizer. Quem passar por elas, e tenha mais
habilidade do que eu, talvez as saiba dar a entender, ainda que me parece bem
dificultoso. Se tudo isto se passa, estando a alma no corpo ou não, eu não o sei
dizer; pelo menos não juraria que está no corpo, nem tão-pouco que está o corpo
sem alma.
9. Muitas vezes tenho pensado, se assim como o sol estando no céu, seus raios têm
tanta força que, não se mudando ele de ali, num pronto chegam até nós, assim a
alma e o espírito, que são uma mesma coisa, como o é o sol e os seus raios, ficando
ela no seu posto, com a força do calor que lhe vem do verdadeiro Sol de Justiça,
pode alguma parte superior sair sobre si mesma. Enfim, eu não sei o que digo. O
que é verdade é que, com a mesma presteza com que sai a bala dum arcabuz
quando lhe põem fogo, levanta-se no interior um voo (eu não sei que outro nome
lhe dê), o qual, ainda que não faça ruído, faz um movimento tão claro que não pode
ser imaginação de maneira alguma; e já muito fora de si mesma, para tudo quanto
ela pode entender, se lhe mostram grandes coisas; e, quando torna a sentir-se em si,
é com tão grandes lucros e tendo em tão pouco todas as coisas da terra, que, em
comparação das que viu, lhe parecem lixo; e de aí em diante vive nela com muita
pena, e não vê coisa das que lhe costumavam parecer bem, que delas agora já nada
se lhe dê. Parece que o Senhor quis mostrar-lhe algo da terra aonde há-de ir, tal
como levaram sinais da terra de Promissão os que lá enviaram do povo de Israel,`
para que passe os trabalhos deste caminho tão trabalhoso, sabendo onde há-de ir
descansar. Embora coisa que passa tão depressa não vos pareça de muito proveito,
são tão grandes os que deixa na alma que, a não ser quem por isto passa, ninguém
saberá entender o seu valor.
10. Por aqui se vê bem não ser coisa do demónio; pois da própria imaginação é
impossível, nem o demónio poderia representar coisa que tanto efeito, paz, sossego
e aproveitamento deixe na alma, em especial três coisas em muito subido grau: o
conhecimento da grandeza de Deus, porque, quantas mais coisas virmos dela, mais
se nos dá a conhecer. Segunda razão: o próprio conhecimento e humildade, ao ver
como coisa tão baixa, em comparação do Criador de tantas grandezas, tem ousado
ofendê-l'O, nem como ousa olhar para Ele; terceira, terem muito pouco todas as
coisas da terra, se não forem das que pode aplicar ao serviço de tão grande Deus.
11. Estas são as jóias que o Esposo começa a dar à Sua Esposa, e são de tanto valor
que não as porá em mau recato; porque ficam tão esculpidas na memória estas
vistas, que creio é impossível esquecê-las até que as goze para sempre e, se assim
não fora, seria para seu grandíssimo mal; mas o Esposo que lhas dá, é poderoso
para lhe dar graças a fim de que não as perca.
12. Pois, voltando ao ânimo que é preciso, parecer-vos-á que é tão leve coisa? É
que verdadeiramente parece que a alma se aparta do corpo, porque se vê a perder
os sentidos, e não entende para quê. Mister é, pois, que lho dê Aquele que dá tudo
o mais. Direis que bem pago vai este temor; assim digo eu também. Seja para
sempre louvado Aquele que tanto pode dar. Praza a Sua Majestade que nos dê com
que possamos servi-1'O, amen.
CAPÍTULO 6. Diz um efeito da oração que fica dita no capítulo passado, com o qual se
entendera que é verdadeira e não engano. Trata de outra mercê que o Senhor faz à alma para a
empregar em seus louvores.
1. Destas mercês tão grandes fica a alma tão desejosa de gozar de todo de Quem
lhas faz, que vive com grande tormento, embora saboroso; umas ânsias
grandíssimas de morrer, e assim, com lágrimas constantes, pede a Deus que a tire
deste desterro. Tudo, quanto vê nele, a cansa; em vendo-se a sós, tem algum alívio,
mas logo surge esta pena e, em estando sem ela, já não se acostuma. Enfim, não
acaba esta borboletazinha por achar assento que perdure; antes, como anda a alma
tão terna de amor, qualquer ocasião que sirva para mais incender este fogo, a faz
voar. E assim, nesta morada, são muito contínuos os arroubamentos, sem haver
meio de os evitar, ainda que seja em público; e logo são as perseguições e
murmurações, que ainda que ela queira estar sem temores, não a deixam, porque
são muitas as pessoas que lhos metem, em especial os confessores.
2. E, ainda que no interior da alma parece que tem, por um lado, grande segurança,
em especial quando está a sós com Deus, por outro anda muito aflita, porque teme
ser enganada pelo demónio de maneira que ofenda a Quem tanto ama, que das
murmurações sente pouca pena, a não ser quando o próprio confessor aperta com
ela, como se ela pudesse mais. Não faz senão pedir orações a todos, e suplicar a
Sua Majestade que a leve por outro caminho, porque lhe dizem que o faça, que este
é muito perigoso; mas, como ela achou por ele tão grande aproveitamento, que não
pode deixar de ver que o tem, como lê e ouve e sabe pelos mandamentos de Deus o
que leva ao Céu, não consegue desejar outro, embora queira, mas entrega-se em
Suas mãos. E até o não poder desejar isto lhe dá pena, por lhe parecer que não
obedece ao confessor; pois em obedecer e não ofender a Nosso Senhor lhe parece
estar todo o seu remédio para não ser enganada; e assim não faria um pecado
venial com advertência, segundo lhe parece, ainda que a fizessem em pedaços; e
aflige-se muito de ver que não pode deixar de fazer muitos sem dar por isso.
3. Dá Deus a estas almas um desejo tão imensamente grande de não O descontentar
em coisa alguma, por pouquito que seja, nem fazer uma imperfeição, se pudesse,
que só por isto, embora não fosse por mais nada, quereria fugir das gentes e tem
grande inveja dos que vivem e têm vivido nos desertos. Por outro lado, quereria
meter-se no meio do mundo, para ver se pode contribuir para que uma alma louve
mais a Deus; e, se é mulher, aflige-se de se ver atada pelo seu natural, porque não
pode fazer isto, e tem grande inveja dos que têm liberdade para dar vozes,
publicando quem é este grande Deus dos Exércitos.
4. Oh! pobre borboletazinha, atada com tantas cadeias, que não te deixam voar
como quererias! Tende compaixão dela, meu Deus; ordenai já de modo a ela poder
cumprir em alguma coisa os desejos para Vossa honra e glória. Não vos recordeis
do pouco que merece e da baixeza do seu natural. Poderoso sois Vós, Senhor, para
que se retire o grande mar e o grande Jordão, e deixem passar os filhos de Israel.
Não lhe tenhais lástima, que, ajudada com a Vossa fortaleza, pode passar muitos
trabalhos; está determinada a isso e deseja-os padecer. Estendei, Senhor, o Vosso
poderoso braço; não se lhe passe a vida em coisas tão baixas. Resplandeça a Vossa
grandeza em coisa tão feminil e baixa, para que, entendendo o mundo que nada é
dela, Vos louvem a Vós, custe-lhe o que lhe custar, pois isso quer, e dar mil vidas,
se tantas tivera, para que uma só alma, por meio dela, Vos louve um poucochinho
mais; dá-as por muito bem empregadas e entende com toda a verdade que nem
merece padecer por Vós um trabalho muito pequeno, quanto mais morrer.
5. Não sei a que propósito disse isto, irmãs, nem para quê, que não me entendi a
mim mesma. Entendamos que são estes os efeitos que ficam destas suspensões ou
êxtases, sem dúvida nenhuma; porque não são desejos que passam, mas que estão
em um ser, e quando se oferece alguma coisa em que o mostrar, vê-se que não
eram fingidos. Para que digo que permanecem em um ser? Algumas vezes se sente
a alma cobarde, até nas coisas mais baixas, e atemorizada com tão pouco ânimo
que nem lhe parece possível tê-lo para coisa alguma. Entendo eu que o Senhor a
deixa então ao seu natural, para muito maior bem seu; porque vê então que, se teve
ânimo para alguma coisa, foi dado por Sua Majestade, e isto com uma claridade
que a deixa aniquilada a si mesma e com maior conhecimento da glória de Deus e
da Sua grandeza, pois, em coisa tão baixa, a quis mostrar. Mas o mais habitual é
estar como antes dissemos.
6. Mas adverti uma coisa, irmãs, nestes grandes desejos de ver a Nosso Senhor:
oprimem tanto algumas vezes, que é mister não ajudar a isso, senão distrair-vos, se
podeis, digo; porque em outros casos, que direi adiante, não se pode, de maneira
nenhuma, como vereis. Nestes prin- cípios, alguma vez sim se poderá, porque a
razão está inteira para se conformar com a vontade de Deus, e dizer o que dizia S.
Martinho, e poder-se-á volver o pensamento a considerar outra coisa se muito
apertam estes desejos; porque, como a nosso parecer, é desejo que já parece de
pessoas muito aproveitadas, bem o poderia mover o demónio para que
pensássemos que o estamos, e sempre é bem andar com temor. Mas tenho para
mim que ele nunca poderá dar a quietude e a paz que esta pena dá à alma, mas será
movendo com isso alguma paixão, tal como se tem quando, por coisas do século,
sentimos alguma pena. Mas, quem não tiver experiência de uma e outra coisa, não
o entenderá; e pensando que é uma grande coisa, ajudará esses desejos quanto
puder, e far-lhe-á muito dano à saúde; porque é contínua esta pena ou pelo menos
muito frequente.
7.Adverti também que a compleição fraca costuma causar destas penas, em
especial se é em pessoas ternas, que choram por qualquer coisita: mil vezes lhes
fará pensar que choram por Deus, não sendo assim. E até mesmo pode acontecer,
(quando vêm lágrimas por atacado digo, que em certas ocasiões, a cada palavrinha
que oiçam ou pensem de Deus, já lhes não podem resistir), ter-se achegado algum
humor ao coração, o qual ajuda mais a isto do que o amor que se tem a Deus, e
parece que não hão-de acabar de chorar; e, como já entenderam que as lágrimas
são boas, não se vão à mão, nem quereriam fazer outra coisa, e ajudam quanto
podem a elas. Pretende aqui o demónio que se enfraqueçam de tal maneira, que
depois nem possam ter oração nem guardar a Regra.
8.Parece-me que vos estou vendo perguntar que devereis fazer, se em tudo vejo
perigo, pois numa coisa tão boa como as lágrimas, me parece poder haver engano;
que sou eu a enganada; e, bem pode ser, mas crede que não falo sem ter visto que o
pode haver em algumas pessoas, embora não em mim; porque não sou nada terna,
antes tenho um coração tão duro, que algumas vezes me dá pena; ainda que,
quando o fogo lá dentro é grande, por duro que seja o coração, destila como faz um
alambique; e bem entendereis quando vêm daqui as lágrimas, pois são muito
confortadoras e pacificam, e não alvorotadoras, e poucas vezes fazem mal. O bem
é que neste engano, - quando o for -, será dano do corpo (digo, se há humildade) e
não dano da alma; e mesmo quando não há engano, não será mau ter esta suspeita.
9. Não pensemos que está tudo feito em chorando muito, mas deitemos mão ao
trabalhar muito, e adquirir virtudes, porque é o que nos há-de fazer ao caso, e
venham as lágrimas quando Deus as enviar, não fazendo nós diligências para as
ter. Estas deixarão regada esta terra seca, e são uma grande ajuda para ela dar fruto;
e tanto mais, quanto menos caso delas fizermos, porque é água que cai do céu; a
que tiramos, cansando-nos a cavar para a tirar, nada tem que ver com esta, pois
muitas vezes cavaremos e ficaremos moídas, e não acharemos nem uma poça de
água, quanto mais um poço manancial. Por isso, irmãs, tenho por melhor que nos
ponhamos diante do Senhor e olhemos à Sua misericórdia e grandeza e à nossa
baixeza, e dê-nos Ele o que quiser, quer seja água, quer seja secura: Ele sabe
melhor o que nos convém. E com isto andaremos descansadas e o demónio não
terá tanta ocasião para nos enganar.
10. Entre estas coisas, a um tempo penosas e saborosas, dá Nosso Senhor algumas
vezes uns júbilos e oração estranha, que a alma não sabe entender o que é. Para
que, se vos fizer esta mercê, O louveis muito e saibais que é coisa que pode dar-se,
a deixo aqui. É, a meu parecer, uma grande união das potências, mas deixa-as
Nosso Senhor com liberdade para gozarem deste gozo, e os sentidos na mesma,
sem entenderem o que é que gozam e como o gozam. Parece isto uma algaravia,
mas certo é passarem-se assim as coisas, e é um gozo tão excessivo da alma, que
ela não quereria gozá-lo a sós, senão dizê-lo a todos, a fim de a ajudarem a louvar a
Nosso Senhor, pois para isto vai todo o ímpeto. Oh! que festas e que
demonstrações faria se, pudesse, para que todos entendessem o seu gozo! Parece
que se achou a si mesma, e como o pai do filho pródigo, quereria convidar a todos
e fazer grandes festins, por ver a sua alma em estado que não pode duvidar que está
em segurança, ao menos por então. E tenho para mim que é com razão; porque
tanto gozo interior do mais íntimo da alma, e com tanta paz, e todo o seu contento
que só incita aos louvores de Deus, não é possível dar-lho o demónio.
11. E muito é, estando com este grande ímpeto de alegria, que possa calar e
dissimular, o que não é pouco penoso. Isto devia sentir São Francisco, quando o
encontraram os ladrões, pois andava pelo campo gritando e lhes disse que era
pregoeiro do grande Rei; e outros santos, que se vão para os desertos para poder
apregoar, como São Francisco, estes louvores de Deus. Eu conheci um, chamado
Frei Pedro de Alcântara, - pois creio que o é, segundo foi a sua vida -, o qual fazia
isto mesmo, e o tinham por louco os que alguma vez o ouviram.` Oh! que boa
loucura, irmãs, se Deus no-la desse a todas! E quanta mercê vos fez em vos ter
num lugar onde, ainda mesmo que o Senhor vos faça esta, e deis mostra disso,
antes será para vos ajudar e não para murmuração, como fora se estivésseis no
mundo, onde se usa tão pouco este pregão, que não é de admirar que dele
murmurem.
12. Oh! desventurados tempos e miserável vida, na qual agora vivemos, e ditosas
aquelas a quem coube tão boa sorte, que estão fora do mundo! Algumas vezes é
para mim gozo particular, quando; estando juntas, vejo estas irmãs tê-lo
interiormente tão grande que, a que mais pode, mais louvores dá a Nosso Senhor
de se ver neste mosteiro; porque se vê muito claramente que saem aqueles louvores
do interior da alma. Muitas vezes quereria, irmãs, que fizéssemos isto, porque uma
que começa, desperta as demais. E, em que melhor se pode empregar a vossa
língua quando estais juntas, do que em louvores de Deus, pois temos tanto por que
Lhos dar?
13. Praza a Sua Majestade dar-nos muitas vezes esta oração, pois é tão segura e de
tantos lucros. Adquiri-la, não poderemos, porque é muito sobrenatural; e acontece
durar um dia, e anda a alma como alguém que bebeu muito, mas não a ponto de
ficar alienado dos sentidos; ou como um melancólico, que de todo não tenha
perdido o siso, mas não sai duma coisa que se lhe pôs na imaginação, nem há quem
lha tire.
Muito grosseiras comparações são estas para coisa tão preciosa, mas não alcança
outras o meu engenho, porque isto é assim: pois este gozo traz a alma tão olvidada
de si e de todas as coisas, que não adverte nem acerta a falar, a não ser no que
procede do seu gozo, que são louvores de Deus. Ajudemos todas a esta alma, filhas
minhas. Para que queremos ter mais siso? Que nos pode dar maior contento? E
ajudem-nos todas as criaturas, por todos os séculos dos séculos, amen, amen,
amen.
CAPÍTULO 7. Trata de como é a pena que sentem de seus pecados as almas a quem Deus faz as
ditas mercês. Diz quão grande erro é não se exercitar, por espiritual que se seja, em trazer
presente a humanidade de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e sua sacratíssima paixão e
vida, e a Sua gloriosa Mãe e os santos. É muito proveitoso.
1. Parecer-vos-á, irmãs, que estas almas, a quem o Senhor se comunica tão
particularmente (em especial não poderão pensar isto que direi as que não tiverem
chegado a estas mercês, porque se o tiverem gozado, e se é de Deus, verão o que
eu direi), estarão já tão seguras de que hão-de gozá-l'O para sempre, que não terão
que temer nem que chorar seus pecados; e será um engano muito grande, porque a
dor dos pecados cresce tanto mais quanto mais se recebe de nosso Deus. E tenho
para mim que esta pena não nos deixará, até que estejamos onde nenhuma coisa
no-la possa dar.
2. É verdade que umas vezes aperta mais que outras, e também é de diferente
maneira; porque não se lembra da pena que há-de ter por eles, mas sim de como foi
tão ingrata a Quem tanto deve, e a Quem tanto merece ser servido; porque, nestas
grandezas que se lhe comunicam, entende muito mais a de Deus. Espanta-se de
como foi tão atrevida; chora o seu pouco respeito; parece-lhe coisa tão desatinada o
seu desatino, que não acaba nunca de o lastimar, quando se lembra das coisas tão
baixas pelas quais deixava uma tão grande Majestade. Muito mais se lembra disto
do que das mercês recebidas, sendo elas tão grandes como as ditas e as que estão
por dizer; parece que as leva um rio caudaloso e as traz a seu tempo; mas isto dos
pecados estão como lodo, pois sempre parece que se avivam na memória e é bem
grande cruz.
3. Sei de uma pessoa que, deixando de querer morrer para ver a Deus, o desejava
para não sentir tão habitualmente a pena de quão desagradecida tinha sido a Quem
tanto deveu sempre e havia de continuar a dever; e assim lhe parecia não poder
haver ninguém cujas maldades pudessem chegar às suas, porque entendia que não
haveria a quem Deus tanto tivesse sofrido e tantas mercês tivesse feito. No que
toca a medo do inferno, nenhum têm. O de poderem vir a perder a Deus, às vezes
aflige muito; mas é poucas vezes. Todo o seu temor é que não as deixe Deus de
Sua mão e O venham a ofender, e se vejam em estado tão miserável como se viram
em outros tempos, pois de sua própria pena ou glória não têm cuidado; e, se
desejam não estar muito tempo no purgatório, é mais para não estarem ausentes de
Deus, enquanto ali estiverem, do que pelas penas que hão-de passar.
4. Eu não teria por seguro, por favorecida que uma alma esteja de Deus, que ela se
esquecesse de que nalgum tempo se viu em miserável estado; porque, embora seja
coisa penosa, aproveita para muitas coisas. Talvez que, como eu tenho sido tão
ruim, me pareça isto, e esta é a causa de o trazer sempre na memória; as que têm
sido boas, não terão que sentir; embora sempre haja quebras enquanto vivemos
neste corpo mortal. Para esta pena não é alivio nenhum pensar que Nosso Senhor já
tem perdoados e esquecidos os pecados; antes acresce à pena ver tanta bondade e
fazerem-se mercês a quem não merecia senão o inferno. Penso que foi este um
grande martírio em São Pedro e na Madalena; porque, como tinham o amor tão
acrescido e tinham recebido tantas mercês e tinham entendida a grandeza e
majestade de Deus, seria bem duro de sofrer, e com muito terno sentimento.
5. Também vos parecerá que quem goza de coisas tão sublimes, não terá meditação
nos mistérios da sacratíssima Humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque já
se exercitará toda em amor. Isto é uma coisa que escrevi largamente em outra
parte, e conquanto nisso me tenham con tradito e dito que não o entendo, porque
são caminhos por onde leva Nosso Senhor e quando as almas já passaram dos
princípios, é melhor tratar em coisas da Divindade e fugir das corpóreas, a mim
não me farão confessar que é bom caminho. Bem pode ser que me engane, e que
digamos todos a mesma coisa; mas eu vi que o demónio me queria enganar por aí,
e assim estou tão escarmentada, que penso, embora o tenha dito mais vezes, dizervo-
lo outra vez aqui, para que andeis nisto com muita advertência; e olhai que ouso
dizer que não acrediteis a quem vos disser outra coisa. E procurarei dar-me a
entender melhor do que o fiz em outra parte; porque, porventura, se alguém que o
escrever, como ele o disse, mais se alargasse em o declarar, dizia bem; mas dizê-lo
assim por junto às que não entendemos tanto, pode fazer muito mal.
6. Também lhes parecerá a algumas que não podem pensar na Paixão; pois menos
poderão pensar na Santíssima Virgem, nem na vida dos Santos, que tão grande
proveito e alento nos dá a sua memória. Eu não posso pensarem que pensam;
porque, apartados de tudo o que é corpóreo, é para espíritos angélicos o estar
sempre abrasados em amor, não para os que vivemos em corpo mortal, que é
preciso tratar, pensar e se acompanhar dos que, tendo corpo, fizeram tão grandes
façanhas por Deus; quanto mais apartar-se propositadamente de todo o nosso bem
e remédio, que é a Sacratíssima Humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu não
posso crer que o façam, mas não se entendem, e assim farão dano a si e aos outros.
Pelo menos eu lhes asseguro que não entram nestas duas últimas moradas porque,
se perdem o guia, que é o bom Jesus, não acertarão com o caminho: muito já será,
se ficam nas outras moradas com segurança. Porque o mesmo Senhor nos disse que
é caminho e também disse o Senhor que é luz, e que ninguém pode ir ao Pai senão
por Ele; e «quem Me vê a Mim, vê a Meu Pai». Dirão que se dá outro sentido a
estas palavras. Eu não sei esses outros sentidos; com este, que sempre a minha
alma sente ser verdade, me tem ido muito bem.
7. Há algumas almas - e são muitas as que o têm tratado comigo - que, mal Nosso
Senhor lhes chega a dar contemplação perfeita, quereriam sempre ficar-se ali, e
não pode ser; mas ficam, com esta mercê do Senhor de tal maneira, que depois não
podem, como antes, discorrer nos mistérios da Paixão e da vida de Cristo. E não
sei qual a causa, mas isto é muito frequente: o entendimento fica mais inabilitado
para a meditação. Creio que a causa deve ser esta: como na meditação tudo é
buscar a Deus, uma vez que O encontra e a alma se acostuma a torna-1'O a buscar
por obra de vontade, já não se quer cansar com o trabalho do entendimento.
Também me parece que, como a vontade já está encendida, não quer esta potência
generosa aproveitar-se daqueloutra, se puder; e não faz mal, mas será impossível,
em especial até que chegue a estas últimas moradas, e perderá tempo, porque
muitas vezes precisa de ser ajudada do entendimento para encender a vontade.
8. E notai, irmãs, este ponto, que é importante e assim o quero declarar melhor.
Está a alma desejando empregar-se toda em amar e não quereria atender a outra
coisa, mas não poderá ainda que queira; porque, ainda que a vontade não esteja
morta, está amortecido o fogo que a costuma fazer arder, e é preciso quem o sopre
para de si lançar calor. Seria bom que a alma se ficasse para ali com esta aridez,
esperando fogo do céu que queime este sacrifício que está fazendo de si a Deus,
como fez Elias, nosso Pai? Não, por certo; nem é bem esperar milagres. O Senhor
os faz, quando é servido, por amor desta alma, como fica dito e se dirá adiante;
mas Sua Majestade quer que nos tenhamos por tão ruins que pensemos não
merecer que no-los faça, mas que nos ajudemos a nós mesmos em tudo o que
pudermos. E tenho para mim que, até que morramos, por subida que seja a oração,
isto é necessário.
9. Verdade é que, a quem o Senhor mete já na sétima morada, é muito poucas
vezes, ou quase nunca, as que precisa de fazer esta diligência, pela razão que nela
direi, se me lembrar; mas é muito contínuo o não se apartar de andar com Cristo
Nosso Senhor, por um modo admirável, em que divino e humano juntamente é
sempre sua companhia. Assim, pois, quando não se acendeu na vontade o fogo que
fica dito, nem se sente a presença de Deus, é preciso que a busquemos; que isto
quer Sua Majestade como o fazia a Esposa nos Cantares, e que perguntemos às
criaturas quem as fez -, como diz Santo Agostinho, creio que nas suas Meditações
ou Confissões -, e não nos fiquemos pasmados, perdendo tempo, a esperar o que
uma vez nos deu porque nos princípios poderá ser que não no-lo dê o Senhor em
um ano, e até em muitos; Sua Majestade sabe o porquê; nós não havemos de querer
sabê-lo, nem há para quê. Visto que sabemos o caminho e como nele havemos de
contentar a Deus pelos mandamentos e conselhos, e em pensar na Sua vida e
morte, e no muito que Lhe devemos, andemos nisto muito diligentes; o demais,
venha quando o Senhor quiser.
10. Aqui vem o responderem que não podem deter-se nestas coisas; e, pelo que
fica dito, talvez tenham razão em certo modo. Já sabeis que discorrer com o
entendimento é uma coisa, e representar a memória verdades ao entendimento, é
outra. Direis, talvez, que não me entendeis, e verdadeiramente poderá ser que não o
entenda eu para sabê-lo dizer; mas di-lo-ei como souber. Chamo eu meditação ao
discorrer muito com o entendimento desta maneira: começamos a pensar na mercê
que Deus nos fez em nos dar o Seu único Filho, e não paramos ali, mas vamos
adiante aos mistérios de toda a Sua gloriosa vida; ou começamos na oração do
Horto, e não pára o entendimento até estar pregado na Cruz; ou tomamos um passo
da Paixão, digamos tal como a prisão, e andamos neste mistério considerando, por
miúdo, as coisas que há que pensar nele e que sentir, assim da traição de Judas,
como da fuga dos Apóstolos, e tudo o mais; e é admirável e muito meritória
oração.
11. Esta é a oração que eu digo que terá razão para dizer que não a pode fazer
quem chegou a ser levado por Deus a coisas sobrenaturais e à perfeita
contemplação; porque, - como disse -, não sei a causa, mas o mais normal é não
poder. Mas não a terá, digo razão, se diz que não se detém nestes mistérios, nem os
traz presentes muitas vezes, em especial quando os celebra a Igreja Católica; nem é
possível que perca assim a memória a alma que recebeu tanto de Deus em mostras
de amor tão preciosas, porque são vivas centelhas para a inflamar mais no amor
que tem a Nosso Senhor; senão que a alma se não entende com a meditação porque
já entende estes mistérios por um modo mais perfeito. É porque lhos representa o
entendimento, e gravam-se-lhe na memória de tal maneira, que só de ver o Senhor
caído por terra com aquele espantoso suor no Horto, lhe basta não só para uma
hora, senão para muitos dias, vendo numa simples vista de olhos quem Ele é, e
quão ingratos temos sido a tão grande pena. Mas logo acode a vontade, ainda que
não seja com ternura, desejar servir em alguma coisa tão grande mercê e a desejar
padecer alguma coisa por Quem tanto padeceu e a outras coisas semelhantes, em
que ocupa a memória e o entendimento. E creio que, por esta razão, não pode
passar a discorrer mais largamente sobre a Paixão, e isto lhe faz parecer que não
pode pensar nela.
12. E se não faz isto, é bem que o procure fazer, porque sei que não lho impedirá a
muita subida oração, e não tenho por bem que não se exercite nisto muitas vezes.
Se daqui a suspender o Senhor, que seja muito em boa hora, pois ainda que não
queira, a fará deixar aquilo em que está. E tenho por muito certo que não é estorvo
esta maneira de proceder, senão grande ajuda para todo o bem; o que seria estorvo
é se trabalhasse muito no discorrer que disse ao princípio, e tenho para mim que
não poderá quem chegou a mais. Bem pode ser que sim, pois, por muitos caminhos
leva Deus as almas; mas não se condenem por isso as que não puderem ir por ele;
nem as julguem inabilitadas para gozar de tão grandes bens como estão encerrados
nos mistérios do nosso Bem, Jesus Cristo; nem ninguém me fará entender, seja tão
espiritual quanto quiser, que irá bem por aqui.
13. Há uns princípios, e até meios, que têm algumas almas: logo que começam a
chegar à oração de quietude e a gostar dos regalos e gostos que dá o Senhor,
parece-lhes que é muito grande coisa estarem ali sempre gostando. Mas creiam-me,
e não se embeveçam tanto - como já disse em outra parte - que a vida é longa, há
nela muitos trabalhos, termos necessidade de olhar e ver como o nosso modelo
Jesus Cristo os passou, e até Seus Apóstolos e Santos, para levarmos os nossos
com perfeição. É muito boa companhia o bom Jesus para que nos apartemos dela e
de Sua Sacratíssima Mãe e gosta muito de que nos condoamos de Suas penas,
embora deixemos o nosso contentamento e gosto algumas vezes. Tanto mais,
filhas, que não é tão frequente o regalo na oração, que não haja tempo para tudo; e
a que disser que está sempre no mesmo ser, eu o teria por suspeitoso; digo, que
nunca poderá fazer o que fica dito; e assim, tendo-vos também por tal, e procurai
sair desse engano, e desembevecei-vos com todas as vossas forças; e, se não
bastarem, digam-no à prioresa, para que vos dê um ofício de tanto cuidado, que tire
esse perigo; ao menos para o juízo e para a cabeça seria bem grande se durasse
muito tempo.
14. Creio que fica dado a entender quanto convém, por espirituais que sejam, não
fugir tanto de coisas corpóreas, que lhes pareça até fazer dano a Humanidade
sacratíssima. Alegam o que o Senhor disse a Seus discípulos, que convinha que Ele
se fosse. Eu não posso sofrer isto. Por certo que não o disse à Sua Mãe
Sacratíssima, porque Ela estava firme na fé, sabia que era Deus e homem; e
embora O amasse mais que eles, era com tanta perfeição, que isso antes A ajudava.
Não deviam estar então os Apóstolos tão firmes na fé como depois estiveram, e nós
temos razão para estarmos agora. Eu vos digo, filhas, que o tenho por caminho
perigoso, e que o demónio poderia vir por aqui a fazer perder a devoção para com
o Santíssimo Sacramento.
15. O engano que me pareceu a mim que eu levava, não chegou a tanto como isto,
mas sim a não gostar de pensar tanto em Nosso Senhor Jesus Cristo, e a ficar-me
naquele embevecimento, aguardando aquele regalo. E vi claramente que ia mal;
porque, como não o podia ter sempre, andava o pensamento daqui para ali, e a
alma, me parece, como uma ave revoando, a qual não acha onde pousar, e
perdendo muito tempo, e não aproveitando nas virtudes nem medrando na oração.
E não entendia a causa, nem a entenderia, a meu parecer, porque me parecia que
era aquilo muito acertado; até que, tratando da oração que trazia com uma pessoa
serva de Deus, ela me avisou. Depois vi claramente como ia errada, e nunca se me
acaba o pesar de ter havido algum tempo em que eu não entendesse que mal se
podia ganhar com tão grande perda; e, mesmo quando pudesse, nenhum bem
quero, senão adquirido por Quem nos vieram todos os bens. Seja Ele para sempre
louvado, amen.
CAPÍTULO 8. Trata de como se comunica Deus a alma por visão intelectual e dá alguns avisos.
Diz os efeitos que faz quando é verdadeira. Recomenda o segredo destas mercês.
1. Para que vejais mais claramente, irmãs, que é assim o que vos disse, e que
quanto mais adiante vai uma alma mais acompanhada é deste bom Jesus, será bem
que tratemos de como, quando Sua Majestade o quer, não podemos mais senão
andar sempre com Ele, como se vê claramente pelas maneiras e modos com que
Sua Majestade se nos comunica, e nos mostra o amor que nos tem, por meio de
algumas aparições e visões tão admiráveis. E para que não fiqueis espantadas, se
Ele vos fizer algumas destas mercês, quero dizer-vos em suma - se o Senhor for
servido que acerte - alguma coisa destas, ainda que não no-las faça a nós, a fim de
que O louvemos muito por assim se querer comunicar a uma criatura, sendo Ele de
tanta majestade e poder.
2. Acontece, estando a alma descuidada de que se lhe haja de fazer esta mercê,
nem ter jamais pensado merecê-la, que sente junto a si Jesus Cristo Nosso Senhor,
embora não O veja, nem com os olhos do corpo nem da alma. Chamam a isto visão
intelectual, não sei porquê. Vi esta pessoa, a quem Deus lhe fez esta mercê, com
outras que adiante direi, muito fatigada nos princípios, porque não podia entender
que coisa era aquela, pois não O via e entendia tão certo ser Jesus Cristo Nosso
Senhor quem se lhe mostrava daquela sorte, que não podia duvidar, digo, que
estava ali aquela visão; se era de Deus ou não, conquanto trouxesse consigo
grandes efeitos para julgar que era, todavia andava com medo, pois nunca tinha
ouvido nada a respeito de visão intelectual, nem pensou que a houvesse de tal
sorte. Entendia, porém, muito claramente que era o Senhor quem lhe falava muitas
vezes da maneira que fica ditada porque, até que lhe fez esta mercê que digo,
nunca sabia quem lhe falava, embora entendesse as palavras.
3. Sei que, estando temerosa desta visão (porque não é como as imaginárias que
passam depressa, antes dura muitos dias, e até mais de um ano alguma vez), foi ter
com o seu confessor muito aflita. Ele lhe disse que, se não via nada, como sabia
que era Nosso Senhor; que lhe dissesse que rosto tinha? Ela disse-lhe que não
sabia, nem via rosto, nem podia dizer mais do que tinha dito; o que sabia era, que
era Ele quem lhe falava, e que não era ilusão. E ainda que lhe punham grandes
temores muitas vezes no entanto, não podia duvidar, em especial quando lhe dizia:
«Não tenhas medo, que sou Eu». Tinham tanta força estas palavras, que não o
podia duvidar por então, e ficava muito esforçada e alegre com tão boa companhia.
Via claramente ser-lhe isso de grande ajuda para andar com uma habitual memória
de Deus, e um grande cuidado de não fazer coisa que Lhe desagradasse, porque lhe
parecia que Ele a estava sempre olhando. E cada vez que queria tratar com Sua
Majestade na oração, e mesmo fora dela, parecia-lhe estar tão perto que não O
podia deixar de ouvir; quanto a entender as palavras, não era quando ela queria,
mas sim em qualquer altura, quando era mister. Sentia que Ele andava a seu lado
direito, mas não com esses sentidos com que podemos sentir que está junto de nós
uma pessoa; porque é por outra via mais delicada, que não se saberá dizer; mas é
tão certo e com tanta certeza e até muito mais, porque bem se nos poderia afigurar,
mas nisto não, vem com grandes lucros e efeitos interiores, e não os poderia haver
se fosse melancolia, nem tão-pouco o demónio faria tanto bem, nem a alma andaria
com tanta paz e com tão contínuos desejos de contentar a Deus, e com tanto
desprezo de tudo o que não a chega mais a Ele. E depois entendeu-se claramente
não ser demónio, porque mais e mais se ia dando a entender.
4. Contudo sei que, por momentos, andava muito temerosa; outros com
grandíssima confusão, pois não sabia por onde lhe tinha vindo tanto bem. Éramos,
ela e eu, de tal maneira uma só coisa, que não se passava coisa alguma em sua
alma que eu o ignorasse, e assim posso ser boa testemunha, e podeis crer ser
verdade tudo o que nisto disser.
É mercê do Senhor, que traz consigo grandíssima confusão e humildade. A ser do
demónio, tudo seria ao contrário. E, como é coisa que notavelmente se entende ser
dada por Deus, e não bastaria indústria humana para assim se poder sentir, de
nenhum modo pode pensar quem isto tem, que este bem é seu, mas sim dado pela
mão de Deus. E embora, a meu parecer, sejam maiores mercês algumas das que
ficam ditas, esta traz consigo um particular conhecimento de Deus, e desta
companhia tão contínua nasce um amor terníssimo para com Sua Majestade, e uns
desejos ainda maiores que os que ficam ditos, de se entregar toda a Seu serviço, e
uma limpeza de consciência; porque em tudo faz advertir a presença que traz junto
a si. Porque, ainda que já saibamos que Deus está presente a tudo que fazemos, o
nosso natural é tal, que se descuida de o pensar: o que não se pode descuidar aqui,
pois a desperta o Senhor, que está junto dela. E mesmo as mercês que ficam ditas,
como a alma anda quase de contínuo com amor actual Àquele a quem vê ou
entende estar junto a si, são muito mais frequentes.
5. Enfim, no ganho da alma vê-se que é grandíssima mercê e muito, muito de
apreciar e agradecer ao Senhor, que lha dá; sem ela a poder merecer, e por nenhum
tesouro nem deleite da terra a trocaria. E assim, quando o Senhor é servido tirarlha,
fica em muita soledade; mas todas as diligências possíveis que fizesse para
tornar a ter aquela companhia, aproveitam pouco; que isto dá o Senhor quando
quer, e não se pode adquirir. Algumas vezes, é também a presença de algum santo,
e é também de grande proveito.
6. Direis que, se não se vê, como se entende que é Cristo, ou quando é a Sua Mãe
gloriosíssima ou um santo? Isto não o saberá dizer a alma, nem pode entender
como o entende, senão que o sabe com uma grandíssima certeza. Ainda quando o
Senhor fala, mais fácil parece; mas conhecer ao santo que não fala, senão que
parece que o coloca ali o Senhor para ajuda daquela alma e para sua companhia, é
mais para maravilhar. Assim são outras coisas espirituais que não se sabem dizer,
mas entende-se por elas quão baixo é o nosso natural para entender as imensas
grandezas de Deus; pois estas mesmas não somos capazes de atingir, senão que as
receba com admiração e louvores a Sua Majestade a alma a quem Deus der. estas
mercês. E dê-Lhe assim particulares graças por elas, pois, já que não é mercê. que
se faz a todos, há-de-se estimar muito, e procurar fazer maiores serviços, pois por
tantas maneiras a ajuda Deus para isso. Daqui lhe vem não se ter por isso em maior
conta, e parecer-lhe-á que é a que menos serve a Deus de quantos há na terra;
porque lhe parece,que, está mais obrigada a isso do que ninguém, e qualquer falta
que faz lhe trespassa as entranhas e com grandíssima razão.
7. Estes efeitos, que ficam ditos e com que anda a alma, qualquer de vós os poderá
advertir para entender que não é engano nem tão-pouco ilusão; porque - como
disse -, não julgo possível durar tanto tempo sendo coisa do demónio, fazendo tão
notável proveito à alma e trazendo-a com tanta paz interior, pois não é do seu
costume, nem pode, ainda mesmo que queira, coisa tão má como é o demónio fazer
tanto bem; porque logo haveria uns fumos de própria estimação, e pensar ser
melhor de que os outros. Mas este andar sempre a alma tão unida a Deus e com o
pensamento tão ocupado n'Ele, daria tanta raiva ao demónio que, ainda que o
intentasse, não voltaria muitas vezes; e é Deus tão fiel, que não permitirá dar-lhe
tanta entrada numa alma que não pretende outra coisa senão agradar a Sua
Majestade, e dar a vida por Sua honra e glória, mas sim ordenará de modo a que
seja logo desenganada.
8. No que eu teimo é e será que, se a alma andar da maneira como aqui se disse que
a deixam estas mercês de Deus, Sua Majestade a fará sair com vantagem, se
permitir alguma vez que o demónio se atreva a tentá-la enganar, e este ficará
corrido. Por isso, filhas, se alguma de vós for por este caminho - como disse - não
andeis assombradas. Bom é que haja temor e andemos com mais cuidado; nem tãopouco
andeis confiadas em que, por serdes tão favorecidas, vos podeis descuidar
mais, pois isto será sinal de não ser de Deus, se não vos virdes com os efeitos que
ficam ditos. É bom que aos princípios o comuniqueis debaixo de confissão com um
muito bom letrado, que são os que nos hão-de esclarecer, ou, com alguma pessoa
muito espiritual, se a houver; se não o for, melhor é um muito letrado; e se o
houver, com um e com outro. E, se vos disserem que é ilusão, não se vos dê nada
disso: esta ilusão, pouco mal ou bem pode fazer à vossa alma; encomendai-vos à
Divina Majestade, para que não consinta que sejais enganadas. Se vos disserem
que é o demónio, será maior o trabalho; ainda que não o dirá se é bom letrado e
houver os efeitos ditos; mas, quando o disser, eu sei que o mesmo Senhor que anda
convosco, vos consolará e assegurará, e a ele lhe irá dando luz para que vo-la dê a
vós.
9. Se é pessoa que, embora tenha oração, não a tem levado o Senhor por esse
caminho, logo se espantará e o condenará. Por isso vos aconselho que seja muito
letrado, e se se achar, também espiritual; e a prioresa dê licença para isso, porque
ainda que a alma vá segura por ver a sua boa vida, a prioresa está obrigada a deixar
que se comunique, para que ambas andem com segurança. E, tratando com estas
pessoas, aquiete-se e não ande mais a dar parte destas coisas; porque algumas
vezes, sem haver de que temer, põe o demónio uns temores tão excessivos, que
forçam a alma a não se contentar por uma vez; em especial se o confessor é de
pouca experiência, e ela o vê medroso, e ele mesmo a faz andar comunicando,
vem-se a publicar o que de razão devia estar muito secreto, e a alma a ser
perseguida e atormentada. Porque, quando pensa que tudo está secreto, o vê
público; daqui sucedem muitas coisas trabalhosas para ela, e poderiam suceder
para a Ordem, segundo andam estes tempos. Assim, é preciso grande aviso nisto, e
o encomendo muito às prioresas.
10. E não pense que, por uma irmã ter coisas semelhantes, é melhor dó que as
outras: leva o Senhor a cada uma como vê ser mister. Boa preparação é para vir a
ser muito serva de Deus, se se ajuda; mas, às vezes, leva Deus por este caminho às
mais fracas. E, assim, não há nisto que aprovar nem condenar, senão olhar às
virtudes, e a quem serve a Nosso Senhor com mais mortificação e humildade e
limpeza de consciência; essa será a mais santa, ainda que, de certeza, pouco se
pode aqui saber, até que o verdadeiro juiz dê a cada um o que merece. Lá nos
espantaremos de ver quão diferente é o Seu juízo do que podemos aqui entender.
Seja Ele para sempre louvado, amen.
CAPÍTULO 9. Trata de como o Senhor se comunica à alma por visão imaginária, e avisa
muito que se guardem de desejar ir por este caminho. Dá para isso razões. É muito proveitoso.
1. Venhamos agora às visões imaginárias, que dizem ser aquelas em que o
demónio se pode meter mais do que nas já ditas, e assim deve ser; mas, quando são
de Nosso Senhor, de algum modo me parecem mais proveitosas, porque são mais
conformes ao nosso natural; salvo das que o Senhor dá a entender na última
morada, que a estas nenhuma chega.
2. Pois vejamos agora, como vos disse no capítulo anterior, como está presente este
Senhor: é como se, num estojo de oiro, tivéssemos uma pedra preciosa de
grandíssimo valor e virtude. Sabemos de certeza que está ali, ainda que nunca a
tenhamos visto; mas a virtude da pedra não deixa de nos aproveitar, se a trazemos
connosco. E, conquanto nunca a víssemos, nem por isso a deixamos de apreciar,
porque, por experiência, temos visto que nos tem sarado de algumas enfermidades
para as quais é apropriada; mas não ousamos olhar para ela, nem abrir o relicário,
nem podemos; porque a maneira de o abrir só a sabe a pessoa de quem é a jóia e,
ainda que no-la tenha emprestado para que nos aproveitássemos dela, ficou-se com
a chave e, como coisa sua, a abrirá quando no-la quiser mostrar, e até a retomará,
quando lhe parecer, como faz por vezes.
3. Pois digamos agora que, algumas vezes a quer abrir por instantes para fazer bem
a quem a emprestou. Claro está que depois ser-lhe-á de muito maior
contentamento, quando se lembrar do admirável resplendor da pedra, e assim ela
lhe ficará mais esculpida na memória. Pois, assim acontece aqui: quando Nosso
Senhor é servido regalar mais a esta alma, mostra-lhe claramente a Sua
Sacratíssima Humanidade da maneira que Ele quer; ou como andava no mundo, ou
depois de ressuscitado. E, embora seja com tanta presteza, que a poderíamos
comparar à de um relâmpago, fica tão esculpida na imaginação esta imagem
gloriosíssima, que tenho por impossível que se lhe tire até que a veja onde sempre
a possa gozar.
4. Ainda que digo imagem, entende-se que não parece pintada a quem a vê, mas
sim verdadeiramente viva, e algumas vezes está falando com a alma, e até
mostrando-lhe grandes segredos. Mas haveis de entender que, embora nisto se
detenha algum espaço de tempo, não se pode estar olhando para ela mais do que se
está fitando o sol, e assim esta vista passa sempre muito depressa; e, não porque o
seu resplendor, como o do sol, faça sofrer a vista interior, que é a que vê tudo isto
(pois quando é com a vista exterior, não saberei dizer coisa nenhuma sobre isso,
porque esta pessoa que digo, de quem tão particularmente posso falar, não tinha
passado por isso; e do que não há experiência, mal se pode dar razão certa), que
seu resplendor é como uma luz infusa, e de um sol coberto de uma coisa tão
transparente como um diamante, se se pudera lavrar; como uma holanda parecem
as vestes, e quase detodas as vezes que Deus faz esta mercê à alma, fica-se em
arroubamento, que não pode sua baixeza sofrer tão espantosa vista.
5. Digo espantosa, porque, com ser a mais formosa e de maior deleite que uma
pessoa possa imaginar (embora vivesse mil anos e trabalhasse em o pensar, porque
vai muito além de quanto cabe em nossa imaginação e entendimento), a sua
presença é de tão grandíssima majestade que causa grande espanto à alma. A
ousadas, não é preciso aqui perguntar como a alma sabe quem é, sem que lho
tenham dito, pois se dá bem a conhecer que é o Senhor do céu e da terra; o que não
se dá com os reis cá deste mundo que, por si mesmos, em bem pouco serão tidos,
se não vai junto deles o seu acompanhamento, ou se não dizem quem são.
6. Oh! Senhor, como Vos desconhecemos os cristãos! Que será aquele dia quando
nos vierdes julgar? Pois vindo aqui, tão de amizade, a tratar com Vossa esposa,
infunde tanto temor o olhar para Vós!... Oh! filhas, que será quando, com tão
rigorosa voz, disser: «Ide, malditos de meu Pai?».
7. Fique-nos agora isto na memória, desta mercê que Deus faz à alma, o que não
será para nós pouco bem, pois São Jerónimo, ainda que santo, não a apartava da
sua memória e assim não nos parecerá nada quanto aqui padecermos no rigor da
religião que guardamos; pois mesmo quando durar muito, é um momento,
comparado com aquela eternidade. Eu vos digo de verdade que, com ser tão ruim
como sou, nunca tive tanto medo dos tormentos do inferno, que não fosse menos
que nada em comparação do que tinha quando me lembrava que os condenados
haviam de ver irados estes olhos tão formosos e mansos e benignos do Senhor,
porque parece que não o podia sofrer meu coração: isto tem sido toda a minha
vida. Quanto mais o temerá a pessoa a quem assim se tem representado, pois é
tanto o sentimento, que a deixa sem sentir! Esta deve ser a causa de ficarem
suspensão; porque o Senhor ajuda à sua fraqueza para que se junte com Sua
grandeza nesta tão subida comunicação com Deus.
8. Quando a alma puder estar com muito vagar olhando este Senhor, eu não creio
que será visão, mas sim alguma veemente consideração, alguma figura fabricada
na imaginação; será como coisa morta em comparação com esta outra.
9. Acontece a algumas pessoas (e sei que é verdade, pois que o têm tratado
comigo, e não três ou quatro, senão muitas) serem de tão fraca imaginação, ou de
entendimento tão eficaz, ou não sei o que é, que se embevecem na imaginação de
modo que tudo o que pensam, lhes parece claramente que o vêem; se, porém,
tivessem visto a verdadeira, entenderiam, sem lhes ficar dúvida alguma, o engano;
porque elas mesmas é que vão compondo o que vêem com a sua imaginação, e
depois não faz isso nenhum efeito, mas ficam frias, muito mais do que se vissem
uma imagem devota. É coisa que bem se entende que não é para fazer caso, e
assim esquece-se muito mais do que uma coisa sonhada.
10. Na visão de que tratamos não é assim, senão que, estando a alma muito longe
de cuidar que há-de ver alguma coisa, nem lhe passa pelo pensamento; de repente
se lhe representa muito por junto, e revolve todas as potências e sentidos com um
grande temor e alvoroto, para os pôr logo naquela ditosa paz. Assim como, quando
foi derrubado São Paulo, veio aquela tempestade e alvoroto do céu, assim aqui,
neste mundo interior, se faz também grande movimento, e num instante - como já
disse - fica tudo sossegado e esta alma tão ensinada em umas verdades tão grandes,
que não precisa de outro mestre. A verdadeira Sabedoria, sem trabalho seu, tiroulhe
a ignorância, e durante algum tempo a alma fica com uma certeza de que esta
mercê é de Deus, que, por mais que lhe dissessem o contrário, nunca lhe poderiam,
por então, meter o temor de que ali possa haver engano. Depois, metendo-lho o
confessor, deixa-a Deus, para que ande vacilando se, por seus pecados, seria
possível; mas não o acreditando - como eu disse nestas outras coisas - senão à
maneira de tentações em coisas de fé, nas quais o demónio pode alvorotar, mas não
pode fazer com que a alma deixe de estar firme; antes, quanto mais a combate,
mais ela fica com a certeza de que o demónio não a poderia deixar com tantos
bens, e assim é, pois não pode tanto no interior da alma; poderá, sim, representarlho,
mas não com esta verdade e majestade e operações.
11. Como isto não pode ser visto pelos confessores, nem, porventura, aqueles a
quem Deus faz esta mercê lho saberão dizer, temem e com muita razão. E assim é
mister ir com cuidado, até aguardar o tempo do fruto que dão estas aparições e ir,
pouco a pouco, olhando à humildade em que deixam a alma, e à fortaleza na
virtude; que, se é demónio, depressa dará sinal e o apanharão em mil mentiras. Se
o confessor tem experiência e passou por estas coisas, pouco tempo precisa para o
entender, pois logo verá na relação se é Deus ou imaginação ou demónio; em
especial, se Sua Majestade lhe deu o dom de conhecer os espíritos, que, se o tem e
se teta letras, embora não tenha experiência, o conhecerá muito bem.
12. O que é muito preciso, irmãs, é que andeis com grande lhaneza e verdade com
o confessor; não digo já em dizer os pecados, que isso claro está, senão em contar a
vossa oração. Porque, se não há isto, não vos asseguro que ides bem, nem que é
Deus quem vos ensina; porque Ele é muito amigo de que, ao que está em Seu
lugar, se trate com a mesma verdade e claridade como a Ele mesmo, desejando que
o confessor entenda todos os nossos pensamentos, quanto mais as obras, por
pequenas que sejam. E com isto não andeis depois perturbadas nem inquietas, que,
ainda mesmo que não fosse de Deus, se tendes humildade e boa consciência, não
vos danificará. Sua Majestade sabe tirar bens dos males e, pelo caminho por onde o
demónio vos queria fazer perder, ganhareis mais. Pensando que Deus vos faz tão
grandes mercês, esforçar-vos-eis em contentá-l'O melhor e andar sempre com a
memória ocupada na Sua imagem; porque, como dizia um grande letrado, o
demónio é grande pintor, e se lhe mostrasse, muito ao vivo, uma imagem do
Senhor, que não lhe pesaria avivar com ela a sua devoção e para fazer guerra ao
demónio com suas mesmas maldades; porque, ainda que um pintor seja muito mau,
nem por isso se há-de deixar de reverenciar a imagem que ele faz, se essa imagem
é a de todo o nosso Bem.
13. Parecia-lhe muito mal o que alguns aconselham, que façam figas quando assim
virem alguma visão; porque dizia que, onde quer que vejamos pintado o nosso Rei,
O devemos reverenciar; e vejo que tinha razão, porque até mesmo aqui se sentiria.
Se uma pessoa que quer bem a outra, soubesse que ela lhe fazia semelhantes
vitupérios ao seu retrato, não gostaria disso. Quanta maior razão não é, pois, que
sempre se tenha respeito onde quer que vejamos um crucifixo, ou qualquer retrato
do nosso Imperador. Ainda que tenha escrito isto em outra parte, folgo de o pôr
aqui, porque vi uma pessoa andar aflita por lhe mandarem servir-se deste remédio.
Não sei quem o inventou para tanto atormentar a quem não pode fazer menos do
que obedecer, se o confessor lhe dá este conselho, parecendo-lhe que vai perdida se
o não faz. O meu conselho é que, embora vo-lo dê, lhe digais esta razão com
humildade, e não o aceiteis. Em extremo me quadraram muito as boas razões que
me deu quem mo disse neste caso.
14. Grande lucro tira a alma desta mercê do Senhor, pois, quando pensa n'Ele ou
em Sua Vida ou Paixão, recorda-se de seu mansíssimo e formoso rosto, o que é
grandíssimo consolo, tal como aqui no-lo daria maior o ter visto uma pessoa que
nos faz muito bem, do que se nunca a tivéssemos conhecido. Eu vos digo que dá
grande consolação e proveito tão saborosa memória.
Outros muitos bens traz consigo, mas como já tanto fica dito dos efeitos que fazem
estas coisas, e se há-de dizer mais ainda, não me quero cansar nem cansar-vos, mas
só avisar-vos muito que, quando souberdes ou ouvirdes que Deus faz estas mercês
às almas, nunca Lhe supliqueis nem desejeis que vos leve por este caminho; [15]
embora vos pareça muito bom, e se haja de ter em muito e reverenciar, não convém
fazê-lo, por algumas razões: a primeira, porque é falta de humildade querer que se
vos dê o que nunca haveis merecido, e assim creio que não terá muita quem o
desejar; porque, assim como um pequeno lavrador está longe de desejar ser rei,
parecendo-lhe impossível, porque não o merece, assim também o está o humilde de
coisas semelhantes; e creio eu que estas coisas nunca se darão, porque, primeiro
que faça estas mercês, dá o Senhor um grande conhecimento próprio. Pois, como
entenderá, com verdade, que se lhe faz uma muito grande mercê em não estar já no
inferno, quem tem tais pensamentos? A segunda, porque é muito certo ser
enganado, ou estar muito em perigo de o ser; porque o demónio não precisa mais
do que ver uma pequena porta aberta para fazer mil trapalhices. A terceira; é que a
mesma imaginação, quando há um grande desejo, faz entender à própria pessoa
que ela vê e ouve aquilo que deseja, tal como os que andam com vontade de uma
coisa durante o dia e pensando muito nela, lhes acontece virem a sonhar com ela de
noite. A quarta, é muito grande atrevimento querer eu escolher caminho, não
sabendo qual o melhor, mas sim deixar ao Senhor, que me conhece, que me leve
por aquele que me convém, para que em tudo faça a Sua vontade. A quinta, pensais
que são poucos os trabalhos que padecem aqueles a quem o Senhor faz estas
mercês? Não, são grandíssimos e de muitas maneiras. E sabeis vós se seríeis
pessoas para os sofrer? A sexta, porque talvez por aí mesmo por onde pensais
ganhar, perdereis, como Saul, por ser rei.
16. Enfim, irmãs, além destas há outras; e crede-me que, o mais seguro, é não
querer senão o que Deus quer, pois nos conhece e ama mais do que nós mesmos.
Ponhamo-nos em Suas mãos, para que seja feita a Sua vontade em nós; e não
poderemos errar se, com determinada vontade, nos ficamos sempre nisto. Deveis
advertir que, por se receberem muitas mercês destas, não se merece mais glória,
porque antes ficam esses mais obrigados a servir, pois recebem mais. Quanto ao
merecer mais, não no-lo tira o Senhor, pois está na nossa mão; e assim há muitas
pessoas santas que nunca souberam que coisa é receber uma destas mercês, e
outras que as recebem, e não o são. E não penseis que são contínuas; antes, por
uma vez que o Senhor as faz, são muitos os trabalhos; e assim a alma não se
lembra de pensar se as há-de receber mais vezes, mas sim em como servir por elas.
17. Verdade é que deve ser isto de grandíssima ajuda para se ter virtudes em mais
subida perfeição; más aquele que as tiver por as ter ganho à custa do seu trabalho,
muito mais merecerá. Eu sei de uma pessoa, a quem o Senhor tinha feito algumas
destas mercês, - e até de duas, e uma era homem -, que estavam tão desejosas de
servir a Sua Majestade, à sua custa, sem estes grandes regalos, e tão ansiosas de
padecer, que se queixavam a Nosso Senhor porque lhas dava, e se pudessem não as
receber, as escusariam. Digo regalos, não destas visões porque, enfim, vêem seu
grande lucro e que são muito de estimar senão dos que o Senhor dá na
contemplação.
18. Verdade é que estes desejos também são sobrenaturais, a meu parecer, e de
almas muito enamoradas, as quais quereriam que o Senhor visse que não O servem
a soldo; e assim, - como disse -, nunca se lembram de que hão-de receber glória
por qualquer coisa, para se esforçarem mais a servir por esse motivo, mas sim para
contentar o amor, cujo natural é operar sempre de mil maneiras. Se pudesse,
quereria buscar invenções para a alma se consumir n'Ele; e, se fosse preciso ficar
para sempre aniquilada para maior honra de Deus, fá-lo-ia de muito boa vontade.
Seja Ele louvado ápara sempre, amen; que, abaixando-Se a comunicar com tão
miseráveis criaturas, quer mostrar Sua grandeza.
CAPÍTULO 10. Diz outras mercês que Deus faz à alma por modo diferente das que ficam agora
ditas, e do grande proveito que delas fica.
1. De muitas maneiras se comunica o Senhor à alma com estas aparições; algumas,
quando está aflita; outras, quando lhe há-de vir algum trabalho grande; outras, para
Sua Majestade Se regalar com ela e a regalar a ela. Não há motivo para
particularizar mais cada coisa, pois meu intento não é senão dar a conhecer cada
uma das diferenças que há neste caminho, até onde eu as entender, para que
entendais, irmãs, de que maneira são e os efeitos que deixam; e também para que
não se vos afigure que cada imaginação é uma visão e para que, quando o for,
entendendo que é possível, não andeis alvorotadas e aflitas. Pois ganha muito o
demónio, e goza à grande de ver uma alma aflita e inquieta, porque vê que isso lhe
é estorvo para se empregar toda em amar e louvar a Deus.
Por outras maneiras se comunica Sua Majestade, assaz mais subidas e menos
perigosas; porque o demónio, creio, não as poderá contrafazer e, assim, mal se
podem dizer, por ser coisa muito oculta, porquanto as imaginárias melhor se
podem dar a entender.
2. Acontece, quando o Senhor é servido, estando a alma em oração e muito em
seus sentidos, vir-lhe de repente uma suspensão, na qual o Senhor lhe dá a entender
grandes segredos, que parece os vê no mesmo Deus. Estas, porém, não são visões
da sacratíssima Humanidade, e embora diga que vê, não vê nada, porque não é
visão imaginária, senão intelectual, na qual se lhe descobre como em Deus se vêem
todas as coisas, e Ele as tem todas em Si mesmo. E é de grande proveito, porque,
ainda que passa num momento, fica muito gravada, e causa grandíssima confusão;
vê-se mais claramente a maldade de quando ofendemos a Deus, porque no mesmo
Deus - digo, estando dentro d'Ele - fazemos grandes maldades. Quero fazer uma
comparação, se acertar, para vo-lo dar a entender, porque, embora isto seja assim e
o ouçamos muitas vezes, ou não reparamos nisso, ou não o queremos entender,
pois não parece que seria possível sermos tão atrevidos, se se entendesse tal como
é.
3. Façamos agora de conta que Deus é como uma morada ou palácio muito grande
e formoso, e que este palácio, como digo, é o mesmo Deus. Pode porventura o
pecador, para fazer suas maldades, apartar-se deste palácio? Não, por certo; senão
que, dentro do mesmo palácio, que é o mesmo Deus, passam-se as abominações e
desonestidades e maldades que fazemos nós os pecadores. Oh! coisa temerosa e
digna de grande consideração e muito proveitosa para os que sabemos pouco que
não acabamos de entender estas verdades e não seria possível ter atrevimento tão
desatinado! Consideremos, irmãs, a grande misericórdia e sofrimento de Deus em
não nos aniquilar ali imediatamente; e demos-Lhe muitas graças, e tenhamos
vergonha de nos sentirmos por coisa que se faça ou diga contra nós; que a maior
maldade do mundo é ver que Deus Nosso Criador sofre tantas dentro de Si, mesmo
às Suas criaturas, e que nós sintamos alguma vez uma, única palavra que se diga
em nossa ausência, e talvez sem má intenção.
4. Oh! miséria humana! Quando, mas quando, filhas, imitaremos em alguma coisa
este grande Deus? Oh! e não se nos vá afigurar que já fazemos algo em sofrer
injúrias! Mas passemos, de muito boa vontade, por tudo e amemos a quem no-las
faz, pois este grande Deus não deixou de nos amar a nós, ainda que O tenhamos
ofendido muito, e assim Ele tem razão de sobejo em querer que todos perdoem, por
mais agravos que lhes façam.
Eu vos digo, filhas, que embora passe depressa esta visão, é uma grande mercê que
faz Nosso Senhor a quem a faz, se se quiser aproveitar dela, trazendo-a presente na
memória muito de habitualmente.
5. Também acontece, assim muito de repente e de maneira que nem se sabe dizer,
mostrar Deus em Si mesmo uma verdade que parece deixa obscurecidas todas as
que há nas criaturas, e muito claramente dá a entender que só Ele é a verdade que
não pode mentir; e dá-se bem a entender o que diz David em um salmo, que todo o
homem é mentiroso; coisa que nunca jamais se entenderia assim, ainda que se
ouvisse muitas vezes, e é verdade que não pode falhar. Lembro-me de Pilatos, o
muito que perguntava a Nosso Senhor, quando em Sua Paixão Lhe disse: «O que é
a verdade», e de quão pouco aqui entendemos desta suma Verdade.
6. Eu quisera poder dar-me melhor a entender neste caso, mas não se pode dizer.
Tiremos daqui, irmãs, que, para nos conformarmos com o nosso Deus e Esposo em
alguma coisa, será bem que procuremos muito andar sempre nesta verdade. Não
digo só que não digamos mentiras, pois nisso, glória a Deus, já vejo que tendes em
grande conta nestas casas de não a dizer por coisa nenhuma, mas que andemos em
verdade diante de Deus e das gentes, de quantas maneiras pudermos; em especial,
não querendo que nos tenham por melhores do que somos e, em nossas obras,
dando a Deus o que é Seu e a nós o que é nosso, e procurando em tudo a verdade, e
assim termos em pouco este mundo que é todo mentira e falsidade e, como tal, não
é perdurável.
7. Uma vez estava eu considerando por que razão era Nosso Senhor tão amigo
desta virtude da humildade, e logo se me pôs diante - a meu parecer sem eu
considerar nisso, mas de repente - isto: é porque Deus é a suma Verdade, e a
humildade é andar na verdade. E é muito grande verdade não termos coisa boa de
nós mesmos, senão a miséria e sermos nada; e, quem isto não entende, anda em
mentira. Quem melhor o entende, mais agrada à suma Verdade, porque anda nela.
Praza a Deus, irmãs, nos faça mercê de não sairmos nunca deste próprio
conhecimento, amen.
8. Nosso Senhor faz destas mercês à alma, porque, como a verdadeira esposa, que
já está determinada a fazerem tudo a Sua Vontade, lhe quer dar alguma notícia
daquilo em que a há-de fazer, e de Suas grandezas. Não há para que tratar de mais
coisas, e destas duas falei por me parecer de grande proveito; pois, em coisas
semelhantes não há que temer, senão louvar ao Senhor, porque as dá; porque a meu
parecer, nem o demónio, nem mesmo a imaginação própria, têm aqui grande
cabida; e assim a alma fica com grande satisfação.
CAPÍTULO 11. Trata de uns desejos tão grandes e impetuosos, que Deus dá à alma de O gozar,
que a põem em perigo de perder a vida, e do proveito que fica desta mercê que o Senhor faz.
1. Terão bastado todas estas mercês que o Esposo tem feito à alma, para que a
pombinha ou borboletazinha esteja satisfeita (não penseis que a tenho esquecida), e
tome assento onde há-de morrer? Não, por certo; antes está muito pior. Ainda
mesmo que haja muitos anos que recebe estes favores, sempre geme e anda
chorosa, porque de cada um deles lhe fica maior dor. A causa é porque, como vai
conhecendo mais e mais as grandezas de Deus, e se vê estar tão ausente e apartada
de O gozar, cresce muito mais o desejo; porque também cresce o amor, quanto
mais se lhe descobre o muito que merece ser amado este grande Deus e Senhor; e
nestes anos tem vindo crescendo, pouco a pouco, este desejo, de maneira que a
trazem tão grande pena, como agora direi. Disse anos, conformando-me com o que
se passou com a pessoa de que tenho falado aqui, que bem entendo que a Deus não
há que pôr limites, pois num momento pode fazer chegar uma alma ao mais subido
quer aqui se diz. Poderoso é Sua Majestade para tudo o que quiser fazer e desejoso
de fazer muito por nós.
2. Pois há ocasiões em que estas ânsias e lágrimas e suspiros e os grandes ímpetos
que ficam ditos (e tudo isto parece proceder do nosso amor, com grande
sentimento, mas tudo não é nada em comparação deste outro, porque este parece
um fogo que está fumegando, e pode sofrer-se, embora com pena), andando assim
esta alma abrasando-se em si mesma, acontece muitas vezes, por um pensamento
muito ligeiro, ou por uma palavra que ouve de que nos tarda o morrer, vir de outra
parte - não se entende donde nem como - um golpe, ou como se viesse uma seta de
fogo? Não digo que é seta, mas, seja que coisa for, vê-se claramente que não podia
proceder do nosso natural. Também não é golpe, embora diga golpe; mas fere
agudamente. E não é, a meu parecer, onde se costumam sentir as penas, senão no
muito fundo e íntimo da alma, onde este raio que passa depressa, deixa tudo quanto
encontra, desta terra de nosso natural, feito em pó. E, pelo tempo que dura, é
impossível ter memória de coisa alguma do nosso ser; porque, num instante, ata as
potências, de maneira que ficam sem nenhuma liberdade para nada, senão para as
que lhe hão-de fazer acrescer esta dor.
3. Não quereria que isto parecesse encarecimento, porque vou vendo
verdadeiramente que fico aquém, porque não se pode dizer tudo. É um
arroubamento de sentidos e potências, para tudo o que não é, como disse, ajudar a
sentir esta aflição. Porque o entendimento está muito vivo para entender a razão
que há para sentir o estar aquela alma ausente de Deus; e ajuda Sua Majestade com
tão viva notícia de Si naquele tempo, de maneira que faz crescer a pena em tal
grau, que, quem a tem, começa a dar grandes gritos. Apesar de ser pessoa sofrida e
habituada a padecer grandes dores, não pode então fazer mais; porque este
sentimento não é no corpo, como fica dito, mas sim no interior da alma. Por isto
compreendeu esta pessoa quanto mais fortes são os sentimentos da alma que os do
corpo, e se lhe representou ser desta maneira os que se padecem no purgatório,
pois, o não ter corpo, não impede de padecer muito mais que todos os que padecem
cá na terra, tendo-o.
4. Eu vi uma pessoa assim, e verdadeiramente pensei que morria, e não era grande
maravilha, porque, na verdade, é grande perigo de morte; e assim, ainda que dure
pouco, deixa o corpo muito desconjuntado, e naquele tempo tem os pulsos tão
abertos, como se já quisesse dar a alma a Deus, e não é para menos; porque o calor
natural falta, e o abrasa de maneira que, com mais um pouco, ter-lhe-ia Deus
cumprido seus desejos. Não porque sinta pouca ou muita dor no corpo (ainda que
se desconjunta - como tenho dito - de maneira que fica durante uns dois ou três
dias sem ter forças sequer para poder escrever, e com grandes dores; e até me
parece que o corpo lhe fica sempre com menos força do que antes); o não sentir,
deve ser porque é muito maior o sentimento interior da alma, e não faz caso de
nenhuma coisa do corpo; é como se tivéssemos uma dor muito aguda em qualquer
parte e, ainda que haja outras muitas, sentimo-las pouco; isto tenho-o eu bem
provado. Aqui, nisto, nem pouco nem muito, nem creio sentiria se a fizessem em
pedaços.
5. Dir-me-eis que é imperfeição; pois, porque não se conforma com a vontade de
Deus, se Lhe está tão rendida? Até aqui podia fazer isso, e com isso suportava a
vida. Agora não, porque sua razão está de tal sorte, que não é senhora dela, nem de
pensar mais que ria razão que tem para penar; pois, se está ausente seu Bem, para
que quer a vida? Sente uma soledade estranha, porque nenhuma criatura de toda a
terra lhe faz companhia, nem creio lhe fariam as do Céu, a não ser Aquele a quem
ama, antes tudo a atormenta. Vê-se como urna pessoa dependurada, que não
assenta em coisa da terra, nem pode subir ao Céu; abrasada com esta sede, e não
pode chegar à água. E não é sede que se possa sofrer, mas já em tal extremo, que
nenhuma água lha tiraria, nem quer que se lhe tire, a não ser com aquela que Nosso
Senhor disse à Samaritana, e essa não lha dão.
6. Oh! valha-me Deus, Senhor, como afligis aos Vossos amadores! Mas tudo é
pouco para o que lhes dais depois. Bem é que o muito custe muito; quanto mais
que, se é para purificar esta alma, a fim de que entre na sétima morada, assim como
os que hão-de entrar no Céu se limpam no purgatório, é tão pouco este padecer,
como seria uma gota de água no mar. Tanto mais que, com todo este tormento e
aflição que, segundo creio, não o pode haver maior entre todas as aflições que há
na terra, (e esta pessoa tinha passado muitas, assim corporais como espirituais, mas
tudo lhe parece nada em comparação com esta), a alma sente que é de tanto preço
esta pena, que entende muito bem não a poder merecer; todavia este sentimento
não é de modo que a alivie em coisa alguma, mas, no entanto, a sofre de muito boa
vontade, e sofreria toda a sua vida, se Deus nisso fosse servido; ainda que não seria
morrer de uma vez, senão estar sempre morrendo; verdadeiramente não é menos
que isso.
7. Pois consideremos, irmãs, aqueles que estão no inferno, que não estão com esta
conformidade, nem com este contentamento e gosto que Deus põe na alma, nem
vêem lucro neste padecer, senão que padecem sempre mais e mais. Sendo os
tormentos da alma muito mais custosos que os do corpo, e os que eles aí padecem,
maiores em comparação do que estes que temos aqui dito, e ver que estes serão
para sempre sem fim, qual não será o tormento destas desventuradas almas? E que
podemos fazer em vida tão curta, ou padecer, que não seja menos que nada para
nos livrar de tão terríveis e eternos tormentos? Eu vos digo que será impossível dar
a entender quão sensível coisa é o padecer da alma e como é diferente ao do corpo,
se não se passa por isso; e quer o mesmo Senhor que o entendamos, para que
melhor conheçamos o muito e muito que Lhe devemos em nos trazer a estado em
que, por Sua misericórdia, temos esperança de que nos há-de livrar e perdoar
nossos pecados.
8. Pois, tornando ao que tratávamos (que deixamos esta alma em grande pena), este
rigor pouco lhe dura; será, quando muito, três ou quatro horas, a meu parecer,
porque, se muito durasse, a não ser por milagre, seria impossível sofrê-lo a
fraqueza natural. Já tem acontecido não durar mais de um quarto de hora e ficar
feita em pedaços. Verdade é que desta vez perdeu de todo os sentidos, tal o rigor
com que veio (e estando em conversação na Páscoa da Ressurreição, no último dia,
e tendo estado toda a Páscoa com tanta aridez, que quase não entendia que o era),
só de ouvir uma palavra de não ver acabar-se a vida. E pensar-se em poder resistir!
Nem mais que, se metida num fogo, quisesse fazer com que a chama não tivesse
calor para queimar. Não é sentimento que se possa passar com dissimulação, sem
que as pessoas que estão presentes entendam o grande perigo em que está, embora
do interior não possam ser testemunhas. É verdade que lhe são de alguma
companhia, mas como se fossem sombras apenas; e assim lhe parecem todas as
coisas da terra.
9. E para que vejais que é possível, se alguma vez vos virdes nisto, acudir aqui
nossa fraqueza e natural, estando a alma como tendes visto, que morre por morrer,
acontece alguma vez, quando isto aperta tanto que já parece que para sair do corpo
não lhe falta quase nada, que teme verdadeiramente e quereria então que
afrouxasse a pena para não acabar de morrer. Bem se deixa entender que este
temor é de fraqueza natural, pois, por outra parte, não se tira o seu desejo, nem é
possível haver remédio para tirar esta pena, até que lha tire o mesmo Senhor, o que
quase sempre se dá com um arroubamento grande, ou com alguma visão, onde o
verdadeiro Consolados a consola e fortalece, para que queira viver, enquanto for de
Sua divina vontade.
10. Coisa penosa é esta, mas fica a alma com grandíssimos efeitos e perdido o
medo aos trabalhos que lhe podem suceder; porque, em comparação do sentimento
tão penoso que sentiu sua alma, lhe parece que não são nada. De tal maneira fica
aproveitada, que gostaria de a padecer muitas vezes. Mas também não pode fazê-lo
de maneira alguma, nem há remédio nenhum para a tornar a ter, até que o Senhor
queira, assim como não o há para lhe resistir nem tira-la quando vem. Fica com
maior desprezo do mundo do que antes, porque vê que nenhuma coisa dele lhe
valeu naquele tormento, e muito mais desapegada das criaturas, porque já vê que
só o Criador é Quem pode consolar e fartar sua alma, e com maior temor e cuidado
de não O ofender, porque vê que também pode atormentar, assim como consolar.
11. Duas coisas há neste caminho espiritual que me parece a mim serem perigo de
morte: uma é esta, e verdadeiramente o é, e não pequeno; a outra, de muito
excessivo gozo e deleite, o qual é em tão grandíssimo extremo, que
verdadeiramente parece desfalecer a alma, de sorte que não lhe falta mesmo nada
para acabar de sair do corpo; e na verdade não seria pouca a sua dita.
Aqui vereis, irmãs, se tive ou não razão em dizer que é preciso ânimo, e que terá
razão o Senhor, quando Lhe pedirdes estas coisas, de vos dizer o que respondeu
aos filhos de Zebedeu: se poderiam beber o cálice.
12. Creio, irmãs, que todas responderemos que sim, e com muita razão; porque Sua
Majestade dá esforço a quem vê que o necessita, e em tudo defende estas almas, e
responde por elas nas perseguições e murmurações, como o fazia por Madalena,
ainda que não seja por palavras, será por obras; e enfim, enfim, antes que morram,
lhes paga tudo por junto, como agora vereis.
Seja para sempre bendito, e louvem-n'O todas as criaturas, amen.
SÉTIMAS MORADAS
CAPÍTULO 1. Trata das grandes mercês que Deus faz às almas que chegaram a entrar nas
sétimas moradas. Diz como, a seu parecer, há alguma diferença entre alma e espirito, ainda que
tudo seja um. Há coisas dignas de ter em conta.
1. Parecer-vos-á, irmãs, que já está dito tanto deste caminho espiritual, que não é
possível ficar nada por dizer. Grande desatino seria pensar isto; pois, se a grandeza
de Deus não tem limites, tão-pouco o terão as Suas obras. Quem acabará de contar
Suas misericórdias e grandezas? É impossível, e assim não vos espanteís do que
está dito e do que se disser, pois não é mais que uma insignificância de quanto há
para contar de Deus. Grande misericórdia nos faz em ter comunicado estas coisas a
pessoa de quem as podemos vir a saber, para que, quanto mais soubermos que se
comunica às criaturas, mais louvemos Sua grandeza, e nos esforcemos por não ter
em pouco almas com quem tanto se deleita o Senhor. Cada uma de nós tem alma;
porém, como não as prezamos como merece criatura feita à imagem de Deus, não
entendemos os grandes segredos que nelas estão contidos.
Praza a Sua Majestade, se assim é servido, mova minha pena e me dê a entender
como dizer-vos algo do muito que há para dizer, e Deus dá a entender a quem
introduz nesta morada. Muito o tenho suplicado a Sua Majestade, pois sabe que
meu intento é que não fiquem ocultas as Suas misericórdias, para que seja mais
louvado e glorificado o Seu Nome.
2. Tenho esperança de que, não por mim, mas por vós, irmãs, Ele me há-de fazer
esta mercê, para que entendais o que vos importa não ser por vossa culpa que
vosso Esposo deixe de celebrar este matrimónio espiritual com vossas almas, pois
traz tantos bens consigo, como vereis. Ô grande Deus! Parece que treme uma
criatura tão miserável como eu, ao tratar de coisa tão alheia dó que mereço
entender! E verdade é que tenho estado em grande confusão, pensando se seria
melhor acabarem poucas palavras esta morada; porque me parece que hão-de
pensar que eu sei isto por experiência, o que me causa grandíssima vergonha,
porque, conhecendo eu quem ¡sou, é terrível coisa, Por outra parte, pareceu-me
tentação e fraqueza, embora façais mais juízos como este. Seja Deus louvado e
conhecido um nadinha mais, e grite contra mim todo o mundo; tanto mais que
talvez eu já esteja morta, quando isto se vier a ler. Seja bendito Aquele que vive e
viverá para sempre, amen.
3. Quando Nosso Senhor é servido ter piedade do que padece e tem padecido por
seu desejo esta alma, a quem espiritualmente já tomou por Esposa, antes de se
consumar o matrimónio espiritual, mete-a em Sua morada, que é esta sétima;
porque, assim como a tem no Céu, deve ter na alma uma mansão, digamos outro
céu, onde só mora Sua Majestade. Porque importa-nos muito, irmãs, que
entendamos que a alma não é alguma coisa escura; pois, como não a vemos, o mais
frequente será parecer que não há outra luz interior além desta que vemos, e que
dentro da nossa alma está alguma escuridão. Da que não está em graça, eu vo-lo
confesso, e não por falta do Sol de Justiça, que está nela dando-lhe o ser; mas sim,
por ela não estar capaz para receber a luz, como creio ter dito na primeira morada,
que uma pessoa tinha entendido que estas desventuradas almas estão assim como
num cárcere escuro, atadas de pés e mãos, sem poderem fazer nenhum bem que
lhes aproveite para merecer, e cegas e mudas. Com razão nos podemos
compadecer delas e olhar a que, nalgum tempo, nos vimos assim e que o Senhor
pode também ter misericórdia delas.
4. Tomemos, irmãs, particular cuidado de Lho suplicar e de não nos descuidarmos,
pois é grandíssima esmola rogar pelos que estão em pecado mortal; muito maior do
que seria se víssemos um cristão de mãos atadas atrás das costas com uma forte
cadeia, e amarrado a um poste, morrendo de fome, e não por falta de comida, pois
tem junto de si mui apurados manjares, mas sim porque não os pode tomar para os
levar à boca; mesmo está com grande fastio, e vê que vai já expirar, e não com
morte como a de cá; mas eterna. Não seria grande crueldade estar a olhar para ele e
não lhe chegar à boca qualquer coisa de comer? E se por vossas orações lhe
tirassem as cadeias? Já estais a ver. Por amor de Deus vos peço que tenhais sempre
nas vossas orações uma lembrança para semelhantes almas.
5. Não falamos agora com elas, mas sim com as que, por misericórdia de Deus, já
fizeram penitência de seus pecados, e estão em graça. E podemos considerar a
alma não uma coisa metida a um canto e limitada, mas sim um mundo interior,
onde cabem tantas e tão lindas moradas como tendes visto; e razão é que assim
seja, pois dentro desta alma há morada para Deus.
Quando, pois, Sua Majestade é servido de lhe fazer a dita mercê deste divino
matrimónio, fá-la primeiro entrar em Sua morada, e quer Sua Majestade que não
seja como de outras vezes que a meteu nestes arroubamentos, nos quais eu bem
creio que a une então consigo, assim como na oração de união que fica dita, ainda
que à alma não pareça que é tão chamada para entrar em seu centro, como aqui
nesta morada, senão somente à parte superior. Nisto vai pouco; seja de uma
maneira ou de outra, o Senhor a une consigo, mas fazendo-a cega e muda, como
ficou São Paulo em sua conversão, e tirando-lhe o sentir como ou de que maneira é
aquela mercê que goza; porque o grande deleite que então sente a alma é de se ver
junto de Deus. Mas, quando a junta consigo, nenhuma coisa entende, pois se
perdem todas as potências.
6. Aqui é de outra maneira. Quer já o nosso bom Deus tirar-lhe as escamas dos
olhos, e que veja e entenda alguma coisa da mercê que lhe faz, embora seja por
uma maneira estranha; e metida naquela morada por visão intelectual, por certa
maneira de representação da verdade, mostra-se-lhe a Santíssima Trindade, todas
as Três Pessoas, com uma inflamação que primeiro lhe vem ao espírito, à maneira
de tema nuvem de grandíssima claridade. E por uma notícia admirável, que se dá à
alma, entende com grandíssima verdade serem estas Pessoas distintas todas Três
uma substância e um poder e um saber e um só Deus. De maneira que, o que
acreditamos por fé, ali o entende a alma, podemos dizer, por vista, ainda que não é
vista dos olhos do corpo, porque não é visão imaginária. Aqui se lhe comunicam
todas as Três Pessoas e lhe falam, e lhe dão a entender aquelas palavras que diz o
Evangelho que disse o Senhor: que viria Ele e o Pai e o Espírito Santo a morar com
a alma que O ama e guarda Seus mandamentos.
7. Oh! valha-me Deus! Quão diferente coisa é ouvir estas palavras e crer nelas, ou
entender por este modo quão verdadeiras são! E cada dia se espanta mais esta
alma, porque lhe parece que nunca mais se apartam dela, antes vê notoriamente, da
maneira que fica dita, que estão no interior de sua alma, e no mais interior, em uma
coisa muito profunda, que não sabe dizer como é, porque não tem letras, sente em
si esta divina companhia:
8. Parecer-vos-á, segundo isto, que não andará em si, mas tão embebida que não
possa atender a nada. Atende, sim e muito mais que antes, a tudo o que é serviço
de Deus e, em lhe faltando as ocupações, fica-se com aquela agradável companhia;
e, se a alma não falta a Deus, jamais Ele lhe faltará, a meu parecer, em lhe dar a
conhecer tão conhecidamente a Sua presença; e ela tem grande confiança de que
Deus não a deixará, pois, se lhe fez esta mercê, não é para que a perca; e assim se
pode pensar, ainda que ela não deixe de andar com mais cuidado que nunca, para
não Lhe desagradar em nada.
9. O trazer em si esta presença entende-se que não é tão inteiramente, digo, tão
claramente, como se lhe manifesta na primeira vez e algumas outras em que Deus
lhe quer fazer este regalo; porque, se isto assim fosse, era impossivel atender a
outra coisa, nem mesmo viver entre gente; mas, ainda que não é com esta luz tão
clara, sempre adverte que se acha com esta companhia. Digamos agora que é como
se uma pessoa estivesse com outras num aposento muito claro, e fechassem as
janelas e ficasse às escuras: não porque lhe tiraram a luz para as ver e porque até
voltar a luz não as vê, deixa de entender que estão ali. É caso para perguntar se,
quando volta a luz e ela as quer tornar a ver, se poderá. Isto já não está em sua
mão, mas só quando Nosso Senhor quer que se abra a janela do entendimento; já
bem grande misericórdia lhe faz em nunca se apartar dela e de querer que ela o
entenda tão claramente.
10. Parece-me que a Divina Majestade quer aqui dispor a alma para mais com esta
admirável companhia; porque está claro que será bem ajudada para em tudo ir
adiante na perfeição, e perder o temor que trazia algumas vezes, das demais mercês
que lhe fazia, como fica dito. E assim foi, que em tudo se achava melhorada, e lhe
parecia que, por mais trabalhos e negócios que tivesse, o essencial de sua alma
jamais se movia daquele aposento. De maneira que lhe parecia, de certo modo, que
havia divisão em sua alma, e andando com grandes trabalhos, que os teve pouco
depois de Deus lhe ter feito esta mercê, queixava-se dela, à maneira de Marta
quando se queixou de Maria, e algumas vezes dizia que ela se ficava sempre a
gozar daquela quietude a seu prazer, e a deixava a ela em tantos trabalhos e
ocupações, que não Lhe podia fazer companhia.
11. Isto, filhas, parecer-vos-á desatino, mas verdadeiramente passa-se assim; pois,
ainda que se entende que a alma está toda junta, não é fantasia o que disse, porque
é coisa muito comum. Pelo que eu dizia que se vêem coisas interiores, de maneira
que é certo entender-se haver diferença, de certo modo, e muito conhecida, entre a
alma e o espírito, embora seja tudo um. Conhece-se entre eles uma divisão tão
delicada, que algumas vezes parece opera de diferente modo um do outro,
conforme o sabor que lhes quer dar o Senhor. Também me parece que a alma é
coisa diferente das potências, e que não é tudo uma mesma coisa. Há tantas e tão
delicadas no interior, que seria atrevimento pôr-me eu a declará-las. Lá o veremos,
se o Senhor nos fizer mercê de nos levar, por Sua misericórdia, aonde entendamos
estes segredos.
CAPÍTULO 2. Prossegue no mesmo. Diz a diferença que há entre união espiritual e matrimónio
espiritual. Declara-o com delicadas comparações.
1. Pois, venhamos agora a tratar do divino e espiritual matrimónio, ainda que esta
grande mercê não se deve realizar com perfeição enquanto vivermos, pois, se nos
apartássemos de Deus, perder-se-ia este tão grande bem.
A primeira vez que Deus faz esta mercê, quer Sua Majestade mostrar-Se à alma
por visão imaginária de Sua sacratíssima Humanidade, para que o entenda bem e
não esteja ignorante de que recebe tão soberano dom. A outras pessoas será por
outra forma; a esta de quem falamos, represen tou-se-lhe o Senhor, acabando de
comungar, em forma de grande resplendor e formosura e majestade, como depois
de ressuscitado, e lhe disse que já era tempo dela tomar as coisas d'Ele por suas, e
Ele teria cuidado das coisas dela, e outras palavras que são mais para se sentir do
que para se dizer.
2. Parecer-vos-á que isto não era novidade, pois já de outras vezes o Senhor tinhase
representado a esta alma desta maneira. Mas foi tão diferente, que a deixou bem
desatinada e espantada; primeiro, porque foi com grande força esta visão; segundo,
pelas palavras que lhe disse, e também porque no interior da sua alma, onde esta
visão se lhe representou, não tinha visto outras, a não ser a visão passada. E
emendei que há grandíssima diferença entre todas as visões passadas e as desta
morada, e tão. grande entre o desposório espiritual e o matrimónio espiritual, como
a que há entre dois desposados, e os que já não se podem apartar.
3. Já disse que, embora se dêem estas comparações, porque não há outras mais a
propósito, entenda-se que aqui não há mais memória de corpo de que se a alma já
não estivesse nele, mas só de espírito; e no matrimónio espiritual muito menos,
porque esta secreta união passa-se no centro mais interior da alma, que deve ser
onde está o mesmo Deus, e, a meu parecer, não é preciso porta para entrar. Digo
que não é preciso porta, porque em tudo o que se tem dito até aqui, parece que é
por meio dos sentidos e potências e este aparecimento da Humanidade do Senhor
assim devia ser; mas o que se passa na união do matrimónio espiritual é muito
diferente. Aparece o Senhor neste centro da alma sem visão imaginária, mas
intelectual, ainda que mais delicada que as ditas, como apareceu aos Apóstolos,
sem entrar pela porta, quando lhes disse: "Pax vobis". É um segredo tão grande e
uma mercê tão subida o que Deus ali comunica à alma num instante, e o
grandíssimo deleite que a alma sente, que eu não sei a que o comparar: mas o
Senhor quer-lhe manifestar, por aquele momento, a glória que há no Céu, por uma
maneira mais subida que nenhuma outra visão e gosto espiritual. Não se pode dizer
mais senão que - tanto quanto se pode entender - fica a alma, digo, o espírito desta
alma, feito uma coisa com Deus; pois, como Ele é também espírito, Sua Majestade
quis mostrar o amor que nos tem, dando a entender a algumas pessoas até onde
chega, para que louvemos Sua grandeza, porque de tal maneira se quis juntar com
a criatura, que, assim como os que já se não podem apartar, não se quer Ele apartar
dela.
4. O desposório espiritual é diferente, pois muitas vezes se apartam, e a união
também o é; porque, embora união seja juntarem-se duas coisas numa só, enfim,
podem-se apartar e ficar cada coisa de per si, como vemos ordinariamente que
passa depressa esta mercê do Senhor, e depois fica a alma sem aquela companhia,
digo de modo que ela o entenda. Nesta outra mercê do Senhor, não; porque sempre
fica a alma com o seu Deus naquele centro. Digamos que a união é como se duas
velas de cera se juntassem em tal extremo, que toda a luz fosse uma, ou que o
pavio, a luz e a cera fosse tudo um; mas depois pode-se apartar muito bem uma
vela da outra, e ficam duas velas, e o pavio da cera. Aqui, é como se caísse água do
céu num rio ou numa fonte, onde fica tudo feito água e não se poderá já dividir
nem apartar o que é água do rio e a que caiu do céu; ou se um pequeno arroiozito
entra no mar, não haverá meio de os apartar; ou como, se num aposento houvesse
duas janelas por onde entrasse muita luz; ainda que entra dividida, se faz toda uma
luz.
5. Talvez seja isto o que disse São Paulo: «O que se arrima e chega a Deus, faz-se
um espírito com Ele», tocante a este soberano matrimónio, que pressupõe Sua
Majestade já ter chegado a Si a alma por união. E também disse: «Mihi vivere
Christus est, mori lucrum»; assim me parece pode dizer aqui a alma, porque é onde
a borboletazinha que dissemos; morre, e com grandíssimo gozo, porque a sua vida
é já Cristo.
6. Isto entende-se melhor, com o andar do tempo, pelos efeitos, porque se entende
claramente, por umas secretas aspirações, ser Deus o que dá vida à nossa alma, e
muitas vezes tão vivas, que de maneira nenhuma se pode duvidar, porque as sente
muito bem a alma, ainda que não se sabem dizer, mas é tanto este sentimento que
produzem algumas vezes umas palavras regaladas; que parece que não se pode
deixar de dizer: «ó vida da minha vida, e sustento que me sustentas»! e coisas deste
género. Porque, daqueles peitos divinos, onde parece Deus estar sempre
sustentando a alma, saem uns veios de leite, que conforta toda a gente do castelo;
parece querer o Senhor que de algum modo gozem do muito que goza a alma, e
que daquele rio caudaloso, onde se absorve esta fontezita pequenina, saia algumas
vezes algum jacto daquela água para sustentar aqueles que no corporal hão-de
servir a estes dois desposados. E, assim como sentiria esta água uma pessoa que
está descuidada, se a banhassem de repente nela, e não podia deixar de o sentir, da
mesma maneira, e ainda com mais certeza, se entendem estas operações que digo.
Porque, assim como não nos poderia sobrevir um grande jacto de água, se não
tivesse seu princípio - como disse -, assim também se entende claramente que há
no interior da alma Quem arroje estas setas e dê vida a esta vida, e que há sol
donde procede uma grande luz, enviada do interior da alma às potências. Ela -
como já disse - não se muda daquele centro, nem perde a paz; porque o mesmo
Senhor que a deu aos Apóstolos, quando estavam juntos, lha pode dar a ela.
7. Tenho-me lembrado que esta saudação do Senhor devia ser muito mais do que
soa, assim como o dizer à gloriosa Madalena que fosse em paz; porque, como as
palavras do Senhor são em nós como obras feitas, tde tal modo deviam operar
naquelas almas já dispostas, que apartasse nelas tudo o que é corpóreo na alma, e a
deixasse como puro espírito, para que se pudesse juntar nessa união celestial com o
Espírito incriado, pois é muito certo que, em nos esvaziando de tudo o que é
criatura, e desapegando-nos dela por amor de Deus, o mesmo Senhor a há-de
encher de Si mesmo. E assim, orando uma vez Jesus Cristo Nosso Senhor por Seus
Apóstolos - não sei onde é -, disse que fossem uma coisa com o Pai e com Ele,
como Jesus Cristo está no Pai e o Pai está n'Ele. Não sei que maior amor pode
haver do que este! E aqui não deixamos todos de entrar, pois assim o disse Sua
Majestade: «Não rogo só por eles, senão por todos aqueles que hão-de crer também
em Mim», e diz ainda: «Eu estou neles».
8.Oh! valha-me Deus! que palavras tão verdadeiras, e como as entende a alma, que
nesta oração o vê por si mesma! E como o entenderíamos todas, se não fosse por
nossa culpa! Porque as palavras de Jesus Cristo, nosso Rei e Senhor, não podem
falhar!" Mas, como nós faltamos em nos dispor e desviar de tudo o que pode
embaraçar esta luz, não nos vemos neste espelho que contemplamos, onde está
esculpida a nossa imagem.
9. Voltando pois ao que dizíamos, em o Senhor metendo á alma nesta Sua morada,
que é o centro da mesma alma, assim como dizem que o céu empíreo, onde está
Nosso Senhor, não se move como os demais, assim parece que, em entrando aqui,
já não há nesta alma os movimentos que costuma haver nas potências e
imaginação, de modo que a prejudiquem e lhe tirem a paz.
Parece que quero dizer que, chegando a alma a ponto de Deus lhe fazer esta mercê,
está segura da sua salvação e de não tornar a cair. Não digo tal; e em quantas partes
o tratar desta maneira, dizendo que parece, estar.a alma em- segurança, entenda-se
que é enquanto a Divina Majestade a tiver assim de Sua mão, e ela não O ofender.
Pelo menos, sei de certeza que, embora se veja neste estado e lhe tenha durado
anos, não se tem por segura, mas sim que anda com muito mais temor que antes
em se guardar de qualquer pequena ofensa a Deus, e com tão grandes desejos de O
servir, como se dirá adiante, e habitualmente com pena e confusão de ver o pouco,
que pode fazer e o muito a que está obrigada, que não é pequena cruz, senão bem
grande penitência, porque, quanto a fazer penitência esta alma, quanto maior, mais
prazer lhe dá. A verdadeira penitência para ela é quando Deus lhe tira a saúde e as
forças para a poder fazer; pois, ainda que noutra parte disse a grande pena que isto
lhe dá, aqui é muito maior, e tudo lhe deve vir de onde está plantada a raiz; pois,
assim como a árvore que está junto das correntes das águas tem mais frescor e dá
mais fruto, por que maravilhar-nos dos desejos que tenha esta alma, se o
verdadeiro espírito dela está feito um com a água celestial, que dissemos?
10. Pois, voltando ao que dizia, não se entenda que as potências, sentidos e paixões
estão sempre nesta paz; a alma sim. Mas nestas moradas não deixa de haver
tempos de guerra, de trabalhos e de fadigas; mas são de maneira que não sai da sua
paz nem do seu posto: isto é o normal?
Este centro da nossa alma, ou este espírito, é coisa tão dificultosa de dizer, e até
mesmo de crer, que, por não me saber dar a entender, penso vos dê, irmãs, alguma
tentação de não crer o que digo; porque dizer que há trabalhos e penas, e que a
alma está em paz, é coisa dificultosa de acreditar. Quero dar-vos uma comparação
ou duas: praza a Deus que, sejam tais que diga alguma coisa com elas; mas, se
assim não for, eu sei que sou verdadeira no que digo.
11. Está o Rei no seu palácio, e há muitas guerras em seu reino, e muitas coisas
penosas, mas nem por isso deixa de estar em seu posto; assim também aqui,
embora nessas outras moradas ande muita barafunda e haja feras peçonhentas, e se
oiça o ruído, ninguém entra naquela morada que a faça sair dali; nem as coisas que
ouve, ainda que lhe dêem alguma pena, não é de modo a que alvorocem e lhe tirem
a paz, porque as paixões estão já vencidas, de sorte que têm medo de entrar ali,
porque sairão mais rendidas.Dói-nos todo o corpo; mas, se a cabeça está sã, porque
nos dói o corpo, não doerá a cabeça. Estou-me a rir destas comparações, que não
me contentam, mas não sei outras. Pensai .o. que quiserdes; mas é verdade o que
disse.
CAPÍTULO 3. Trata dos grandes efeitos que causa esta dita oração. É preciso prestar atenção,
e lembrar-se dos efeitos que faz, porque é coisa admirável a diferença que há entre estes e. os
anteriores.
1. Agora, pois, dizemos que esta pequena borboleta já morreu, com grandíssima
alegria de ter encontrado repouso, e que nela vive Cristo. Vejamos que vida faz, ou
que diferença há de quando ela vivia; porque nos efeitos veremos se é verdadeiro o
que ficou dito. Ao que eu posso entender, são os que direi.
2. Primeiro, um esquecimento de si, que verdadeiramente parece que já não existe,
como fica dito; porque está toda ela de tal maneira, que não se conhece nem se
lembra que para ela há-de haver céu, nem vida, nem honra, porque está toda
empregada em procurar a de Deus; parece que as palavras que Sua Majestade lhe
disse fizeram efeito de obra, e foi que olhasse pelas coisas d'Ele, que Ele olharia
pelas suas? E assim, de tudo quanto pode suceder, não tem cuidado, mas sim um
estranho esquecimento, pois, - como digo -, parece que já não é, nem quereria ser
nada de nada, a não ser quando entende que pode haver, da sua parte, alguma coisa
com que acrescente um ponto à glória e honra de Deus, porquanto ela daria por
isto, de muito boa vontade, a sua vida.
3. Não entendais por isto, filhas, que deixe de ter conta com dormir e comer, o que
não lhe é pequeno tormento, e de fazer tudo a que está obrigada conforme a seu
estado; falamos em coisas interiores, que de obras exteriores pouco há a dizer;
antes esta é a sua pena: ver que é nada o que podem as suas forças. Em tudo que
pode e entende que é serviço de Nosso Senhor, não o deixaria de fazer por
nenhuma coisa da terra.
4. O segundo é um grande desejo de padecer, mas não de modo a inquietá-la, como
costumava; porque é em tanto extremo o desejo que fica nestas almas de que se
faça nelas a vontade de Deus, que tudo ò que Sua Majestade faz, têm por bom. Se
quiser que padeça, seja muito em boa hora; se não, não se mata por isso como
costumava.
5. Têm também estas almas um grande gozo interior quando são perseguidas, com
muito mais paz do que ficou dito, e sem nenhuma inimizade para com aqueles que
lhes fazem mal ou desejam fazer; antes; lhes cobram particular amor, de maneira
que, se os vêem em algum trabalho, sentem-no ternamente, e tomariam qualquer
trabalho sobre si para os livrar dele, e encomendam-nos a Deus de muito boa
vontade, e das mercês que lhes faz Sua Majestade folgariam perder, para que as
fizesse a eles, a fim de que não ofendam a Nosso Senhor.
6. O que mais me espanta de tudo isto, é que já tendes visto os trabalhos e aflições
que tiveram estas almas desejando morrer para gozar de Nosso Senhor; agora é tão
grande o desejo que têm de O servir, e que por elas seja louvado, e de fazer
aproveitar alguma alma, se puderem, que não só não desejam morrer, mas sim
viver muitos anos padecendo grandíssimos trabalhos, para que, se pudessem, o
Senhor fosse louvado por elas, embora fosse em coisa muito pouca. E se
soubessem de certeza que, em saindo a alma do corpo, haviam de gozar de Deus,
isso não lhes faz ao caso, nem o pensar na glória que têm os Santos; não desejam,
por então, de se verem nela. A sua glória, têm-na posta em poder ajudar alguma
coisa ao Crucificado, em especial quando vêem que é tão ofendido, e os poucos
que há que olhem deveras por Sua honra, desprendidos de tudo o mais.
7. É verdade que, algumas vezes que se esquece disto, voltam com ternura os
desejos de gozar de Deus e desejar sair deste desterro, em especial vendo que O
serve tão pouco; mas logo torna a si e vê que O tem de contínuo consigo, e com
isto se contenta, e oferece a Sua Majestade o querer viver, como uma oferenda, a
mais custosa que ela Lhe pode dar.
Temor nenhum tem da morte, não mais do que teria de um suave arroubamento. O
caso é que, Quem lhe dava aqueles desejos com tormento tão excessivo, lhe dá
agora estes. Seja para sempre bendito e louvado.
8. Enfim, os desejos destas almas já não são de regalos nem de gostos, pois têm
consigo o mesmo Senhor, e Sua Majestade é Quem agora vive. Claro está que Sua
vida não foi senão um contínuo tormento, e assim faz com que o seja a nossa, ao
menos em desejos, pois nos leva como a fracos no resto, ainda que muito nos caiba
de Sua fortaleza quando vê que dela têm necessidade.
Há um desapego grande de tudo, e um grande desejo de estar sempre a sós ou
ocupados em coisa que seja de proveito para alguma alma. Nem aridez, nem
trabalhos interiores, mas sim uma memória e ternura com Nosso Senhor, que não
quereria estar senão dando-Lhe louvores; e quando nisto se descuida, o mesmo
Senhor a desperta da maneira que fica dita, em que se vê clarissimamente que
aquele impulso, ou não sei como lhe chame, procede do interior da alma, como se
disse dos ímpetos. Aqui, é com grande suavidade, mas nem procede do
pensamento, nem da memória, nem de coisa que se possa entender que a alma
tenha feito de sua parte. Isto é tão habitual e tantas vezes -que se pode ver bem,
com advertência -, porque, assim como um fogo, por maior que o queiram acender,
não deita a chama para baixo mas para cima, assim também se entende aqui que
este movimento interior procede do centro da alma e desperta as potências.
9. Por certo que, quando não houvesse outro ganho neste caminho de oração, senão
entender o particular cuidado que Deus tem de se comunicar connosco e de nos
andar rogando - que não parece isto outra coisa - para que estejamos com Ele, bem
empregados me parecem todos os trabalhos que se passam para gozar destes toques
do Seu amor, tão suaves e penetrantes.
Isto, irmãs, tereis experimentado; porque penso que, em se chegando a ter oração
de união, anda o Senhor com este cuidado, se nós não nos descuidamos de guardar
Seus mandamentos. Quando isto vos acontecer, lembrai-vos que é desta morada
interior, onde está Deus em nossa alma, que vêm estes toques, e louvai-O muito;
porque certamente é Seu aquele recado ou bilhete escrito com tanto amor, e de
maneira que só quer que vós entendais aquela letra e o que por ela vos pede. E de
maneira nenhuma deixeis de responder a Sua Majestade, ainda que estejais
ocupadas exteriormente e em conversação com algumas pessoas; porque
acontecerá muitas vezes querer-vos Nosso Senhor fazer esta secreta mercê em
Público, e - como a resposta há-de ser interior -, é muito fácil fazer o que digo,
fazendo um acto de amor, ou dizer o que disse São Paulo: «que quereis Senhor que
eu faça?» De muitas maneiras vos ensinará aliem que Lhe agradar, e é tempo
aceitável; porque parece que se entende que Ele nos ouve, e quase sempre este
toque tão delicado dispõe a alma para poder fazer o que fica dito, com vontade
determinada.
10. A diferença que há aqui nesta morada, é o que já se disse; que quase nunca há
aridez nem alvorotos interiores, como havia em todas as outras, de tempos a
tempos, senão que a alma está quase sempre em quietude; o não temer que esta
mercê tão subida possa ser contrafeita pelo demónio, mas estar em um ser com a
certeza de que é Deus; porque - como fica dito - nada têm que ver aqui os sentidos
nem as potências; pois se descobriu Sua Majestade à alma, e a meteu consigo onde,
a meu parecer, não ousará entrar o demónio, nem o Senhor o deixará; e todas as
mercês que Deus faz aqui à alma, são - como já disse - sem nenhuma ajuda da
mesma alma, a não ser a que ela já fez de se entregar toda a Deus.
11. Passa-se com tanta quietude e tão sem ruído tudo quanto o Senhor aqui faz e
ensina para aproveitamento da alma, que me parece a mim que é como na
edificação do templo de Salomão, onde não se havia de ouvir nenhum ruído; assim
neste templo de Deus, nesta Sua morada, só Ele e a alma se gozam com
grandíssimo silêncio. Não tem que bulir nem buscar nada o entendimento; o
Senhor que o criou, o quer sossegar aqui, e que por uma pequena fresta veja o que
se passa. Embora de tempos a tempos se perca esta vista e o não deixe olhar, é
pouquíssimo o intervalo; porque, a meu parecer, aqui não se perdem as potências,`
mas não operam e estão como espantadas.
12. Eu também o estou ao ver que, em chegando aqui a alma, tiram-se-lhe todos os
arroubamentos, a não ser uma ou outra vez, e esta não com aqueles arrebatamentos
e voo de espírito. E são muito raras vezes e essas quase sempre não em público
como antes, o que era muito habitual, nem lhe fazem ao caso as grandes ocasiões
de devoção que tem, como antes lhe acontecia; porque, se via uma imagem devota
ou ouvia um sermão, ou música, era quase o mesmo como se não ouvisse; e como
a pobre borboleta andava tão ansiosa, tudo a espantava e a fazia voar. Agora, ou
porque encontrou seu repouso, ou porque a alma tem visto tanto nesta morada, ou
ainda porque não se acha com aquela soledade que costumava sentir, não se
espanta de nada, pois goza de tal companhia. Enfim, irmãs, eu não sei qual seja a
causa, mas, em começando o Senhor a mostrar o que há nesta morada, e em
metendo ali a alma, tira-se-lhe esta grande fraqueza, que lhe dava não pouco
trabalho, da qual antes ela se não libertara. Talvez seja que o Senhor a tenha
fortalecido, dilatado e habilitado; ou pode ser que quisesse dar a entender em
público o que fazia com estas almas em segredo, por alguns fins que Sua
Majestade sabe; Seus juízos estão acima de tudo quanto aqui podemos imaginar.
13. Estes efeitos, assim como todos os demais que temos dito serem bons nos graus
de oração que ficam ditos, dá-os Deus quando achega a Si a alma, com este ósculo
que pedia a Esposa, pois eu entendo que se cumpre aqui esta petição. Aqui se dão
as águas em abundância a esta corça que vai ferida. Aqui se deleita no tabernáculo
de Deus. Aqui acha a pombinha, que Noé enviou a ver se era acabada a
tempestade, a oliveira, em sinal de que achou terra firme no meio das águas e
tempestade deste mundo. Oh! Jesus! Quem soubesse as muitas coisas da Escritura
que deve haver para dar a entender esta paz de alma! Deus meu! pois vedes quanto
importa, fazei que os cristãos a queiram buscar, e àqueles a quem a tendes dado,
não lha tireis, por Vossa misericórdia; que, enfim, até que lhe deis a verdadeira e a
leveis aonde ela se não pode acabar, sempre se há-de viver com este temor. Digo a
verdadeira paz, não porque entenda que esta não o é, mas porque se poderia voltar
à guerra primeira, se nos apartássemos de Deus.
14. Mas, que sentirão estas almas ao ver que poderiam carecer de tão grande bem?
Isto as faz andar mais cuidadosas, e procurar tirar forças de sua fraqueza, para não
deixarem, por sua culpa, de fazer coisa que se lhes possa oferecer, para mais
agradar a Deus. Quanto mais favorecidas de Sua Majestade, tanto mais
acobardadas e temerosas andam de si mesmas. E; como nestas grandezas divinas,
mais têm conhecido suas próprias misérias, e se lhe tornam reais graves os seus
pecados, andam muitas vezes de modo que não ousam alçar os olhos, como o
Publicano; outras, com desejos de acabar a vida para se verem em segurança, ainda
que voltam logo, com o amor que Lhe têm, a querer viver para O servir - como fica
dito - e confiam, tudo quanto lhes toca, da Sua misericórdia. Algumas vezes as
muitas mercês as fazem andar mais aniquiladas, pois temem que, como uma nau
que vai com demasiada carga se vai ao fundo, lhe aconteça o mesmo.
15. Digo-vos, irmãs, que não lhes falta cruz, salvo que não as inquieta nem lhes faz
perder a paz; mas passam depressa, como uma onda, algumas tempestades, e torna
a bonança; porque a presença do Senhor que trazem consigo, faz com que logo lhes
esqueça tudo. Seja Ele para sempre bendito e louvado por todas as Suas criaturas,
amen.
CAPÍTULO 4. Com o qual acaba, dando a entender o que lhe parece que pretende Nosso
Senhor em fazer tão grandes mercês à alma, e como é necessário que andem juntas Marta e
Maria. É muito proveitoso.
1. Não haveis de entender, irmãs, que estes efeitos que tenho dito, estão sempre em
um mesmo ser nestas almas e por isso, quando me lembro, digo habitualmente;
porque, algumas vezes, as deixa Nosso Senhor em seu natural, e não parece senão
que se juntam então todas as coisas peçonhentas do arrabalde e das outras moradas
deste castelo, para se vingarem delas do tempo em que não as podem haver às
mãos.
2. É verdade que isto dura pouco; um dia quando muito, ou pouco mais. E neste
grande alvoroto, que procede normalmente de alguma ocasião, vê-se o que ganha a
alma nesta boa companhia que tem; porque lhe dá o Senhor uma grande inteireza,
para não torcer nada em coisa que seja do Seu serviço e boas determinações; mas
antes parece que lhe crescem, e nem por um primeiro movimento muito pequeno
se desviam desta determinação. Como digo, isto é poucas vezes, mas quer Nosso
Senhor que ela não perca a memória de seu ser, para que sempre esteja humilde, e
também para que entenda melhor o que deve a Sua Majestade, e a grandeza da
mercê que recebe, e O louve.
3. Tão-pouco vos passe pelo pensamento que, por estas almas terem grandes
desejos e determinação de não fazer uma imperfeição por coisa alguma cá da terra,
deixem de fazer muitas, e até pecados. Com advertência não, pois que, a estas
almas, o Senhor deve dar certamente ajuda muito particular para isto. Digo
pecados veniais, que dos mortais, quanto elas entendem, estão livres, ainda que não
seguras; pois terão alguns que não entendem, o que não lhes será pequeno
tormento. Também lho dão as almas que elas vêem que se perdem; e embora
tenham, de certo modo, grande esperança de não serem dessas, quando se
recordam de alguns daqueles de que diz a Sagrada Escritura que pareciam ser
favorecidos do Senhor, como por exemplo um Salomão que tanto comunicou com.
Sua divina Majestade, não podem deixar de temer, como tenho dito; e aquela de
vós que se vir com mais segurança de si mesma, tema mais; porque «bemaventurado
o varão que teme a Deus», diz David. Sua Majestade nos ampare
sempre; suplicar-Lhe isto para que não O ofendamos, é a maior segurança que
podemos ter. Seja para sempre louvado, amen.
4. Será bom dizer-vos, irmãs, qual o fim para que o Senhor fez tantas mercês neste
mundo. Ainda que nos efeitos delas já o tereis entendido, se advertistes nisso, eu
vo-lo quero tornar a dizer aqui, para que não pense alguma que é só para regalar
essas almas, o que seria grande erro; porque Sua Majestade não no-lo pode fazer
maior que em dar-nos vida que seja imitando a que viveu Seu Filho tão amado; e
assim tenho por certo serem estas mercês para fortalecer a nossa fraqueza - como
aqui já tenho dito alguma vez para podê-Lo imitar no muito padecer.
5. Sempre temos visto que aqueles que mais de perto acompanhavam a Cristo
Nosso Senhor, foram os que tiveram maiores trabalhos. Vejamos os que passou
Sua gloriosa Mãe, e os gloriosos Apóstolos, Como pensais que poderia São Paulo
sofrer trabalhos tão grandes? Por ele podemos ver que efeitos fazem as verdadeiras
visões e a contemplação, quando são de Nosso Senhor, e não imaginação ou
engano do demónio. Porventura escondeu-se com tais mercês para gozar daqueles
regalos, e não atender a outra coisa? Já vedes que não teve dia de descanso, ao que
podemos entender; e tão-pouco o devia ter tido de noite, pois nela ganhava o que
havia de comer. Gosto muito de São Pedro, quando ia fugindo do cárcere e lhe
apareceu Nosso Senhor e lhe disse que ia a Roma para ser crucificado outra vez.
Nunca rezamos desta festa, onde isto se lê, que não me dê particular consolo.
Como ficou São Pedro com esta mercê do Senhor, ou que fez? Ir logo para a
morte; e não é pequena misericórdia do Senhor encontrar quem lha dê.
6. Oh! irmãs minhas, que esquecido deve ter o seu descanso, e que pouco se lhe
deve dar da honra, e que longe deve andar de querer ser tida em algo a alma onde o
Senhor está tão particularmente! Porque, se ela está muito com Ele, como é de
razão, pouco se deve lembrar de si; toda a memória se lhe vai em contentá-l'O
mais, e em quê ou como Lhe mostrará o amor que Lhe tem. Para isto é a oração,
filhas minhas; para isto serve este matrimónio espiritual: que nasçam sempre obras,
obras.
7. Esta é a verdadeira prova de ser coisa e mercê feita por Deus, - como já vos
disse -, porque pouco me aproveita ficar-me ali a sós muito recolhida, fazendo
actos com Nosso Senhor, propondo e prometendo fazer maravilhas por Seu
serviço, se, em saindo dali, e se oferece ocasião, faço tudo ao revés. Digo mal, que
aproveitará pouco, pois tudo o que se faz se se está com Deus, aproveita muito; e
estas determinações, embora depois sejamos fracos em as cumprir, alguma vez nos
dará Sua Majestade com que o façamos; e talvez, até mesmo, embora nos pese,
como acontece muitas vezes; pois como vê uma alma muito cobarde, dá-lhe um
trabalho muito grande, bem contra vontade dela, e fá-la sair com lucro; e, depois,
como a alma entende isto, fica mais perdido o medo para mais se oferecer a Ele.
Quis dizer que é pouco, em comparação do muito mais que é conformar as obras
com os actos e palavras, e quem não o puder por junto, seja a pouco e pouco. Vá
dobrando a sua vontade, se quer que lhe aproveite a oração; dentro destes recantos
em que viveis, não faltarão muitas ocasiões em que o possais fazer.
8. Olhai que isto importa muito mais do que eu vos saberei encarecer. Ponde os
olhos no Crucificado e tudo se vos fará pouco. Se Sua Majestade nos mostrou o
Seu amor com tão espantosas obras e tormentos, como quereis contentá-l'O só com
palavras? Sabeis o que é ser espiritual deveras? É fazer-se escravos de Deus, para
que, marcados com o Seu ferrete que é a cruz, pois já Lhe deram a sua liberdade,
os possa vender por escravos de todo o mundo, como Ele o foi; e não lhes faz
nenhum agravo nem pequena mercê. E se a isto se não determinam, não haja medo
que aproveitem muito, porque de todo este edifício - como já disse - é seu
fundamento a humildade; e se não há esta muito deveras, até para vosso bem não
quererá o Senhor subi-lo muito alto, para não dar com tudo em terra. Assim, irmãs,
para que leve bons alicerces, procurai ser a menor de todas e sua escrava, vendo
como ou em quê as podeis servir e dar-lhes prazer; pois, o que fizerdes neste caso,
o fazeis mais para vós do que para elas, pondo pedras tão firmes, que não vos caia
o castelo.
9. Volto a dizer que, para isto é necessário não assentar vossos alicerces só em
rezar e contemplar; porque, se não procurais virtudes e o exercício delas, sempre
ficareis anãs; e praza a Deus que não seja só no crescer, porque já sabeis que, quem
não cresce, decresce; porque tenho por impossível que o amor, onde o há, se
contente de ficar em um ser.
10. Parecer-vos-á que falo com os que começam, e que depois já podem descansar.
Já vos disse que o sossego que estas almas têm no interior, é para muito menos o
terem, nem o querem ter, no exterior. Para que pensais que são aquelas inspirações
que disse, ou para melhor dizer, aspirações; e aqueles recados que a alma envia do
centro interior à gente de cima do castelo e às moradas que estão fora daquela onde
ela está? É para que se deitem a dormir? Não, não, e não; pois dali mais guerra lhes
faz, para que não estejam ociosas as potências e os sentidos e todo o corporal, do
que fazia quando andava com eles padecendo; porque então não entendia ó lucro
tão grande que há nos trabalhos, que foram porventura meios de que Deus se serviu
para a trazer até ali, e como lhe dá forças muito maiores que nunca a companhia
que tem em si. Porque, se até cá David nos diz que com os santos seremos santos,
não há que duvidar de que estando feita uma coisa com o Forte, por união tão
soberana de espírito com espírito, se lhe há-de apegar fortaleza à alma, e assim
vemos a que tiveram os Santos para padecer e morrer.
11. É muito certo que, ainda com aquela fortaleza que ali se lhe pega, acode a
todos os que estão no castelo, e até ao mesmo corpo, embora pareça muitas vezes
que não se sente; mas, encorajado com o esforço que tem a alma, bebendo do
vinho desta adega, onde a trouxe seu Esposo e não a deixa sair, redunda no corpo
fraco, tal como o manjar recebido no estômago dá força à cabeça e a todo o corpo.
E assim esta alma tem muito má ventura enquanto vive; porque, por muito que
faça, é muito maior à força interior e a guerra que se lhe dá, pois tudo lhe parece
um nada. Daqui deviam vir as grandes penitências que fizeram muitos Santos, em
especial a gloriosa Madalena, criada sempre em tanto regalo, e aquela fome que
teve o nosso Pai Elias da honra do seu Deus; e a que teve São Domingos e São
Francisco de ajuntar almas para que o Senhor fosse louvado; e eu vos digo que não
deviam passar pouco trabalho, esquecidos de si mesmos.
12. Isto quero eu, irmãs minhas, que procuremos alcançar, e não para gozar, mas
sim para ter estas forças para servir; desejemos e ocupemo-nos na oração; não
queiramos ir por caminhos não andados, pois nos perderemos na melhor altura; e
seria caminho bem novo pensar ter estas mercês de Deus por outro sem ser aquele
por onde Ele foi e têm ido todos os Seus Santos. Não vos passe isto pelo
pensamento; crede-me que Marta e Maria hão-de andar juntas para hospedar ao
Senhor, e tê-Lo sempre consigo, e não Lhe dar má hospedagem, não Lhe dando de
comer. Como Lha daria Maria, sentada sempre a Seus pés, se sua irmã não a
ajudasse? Seu manjar é que, de todas as maneiras que pudermos; ganhemos almas
para que se salvem e sempre O louvem.
13. Dir-me-eis duas coisas: uma, é que o Senhor disse que Maria tinha escolhido a
melhor parte. É que já tinha feito o oficio de Marta, regalando ao Senhor em Lhe
lavar os pés e enxugando-os com seus cabelos. E acaso pensais que lhe seria de
pouca mortificação, uma senhora como ela era, ir por essas ruas, e porventura só,
porque no fervor que levava não entendia a como ia, e entrar aonde nunca tinha
entrado, e sofrer depois as murmurações do fariseu, e outras muitíssimas que devia
ter sofrido? Porque, não se vê no povo uma mulher, e como ela, fazer tal mudança,
entre gente tão má como sabemos, que bastava verem que tinha amizade com o
Senhor, a Quem eles tinham em tanto, aborrecimento, para trazerem à memória a
vida que ela tinha levado e que se queria agora fazer santa, porque, claro está, logo
mudaria de vestidos e tudo o mais. Pois, se agora se diz o mesmo das pessoas que
não são tão nomeadas, que seria então? Eu vos digo, irmãs, que essa «melhor
parte» vinha já depois de muitos trabalhos e mortificações, pois, ainda que não
fosse senão ver a seu Mestre tido em tanto aborrecimento, isso era para ela trabalho
intolerável. E então os muitos que depois passou na morte do Senhor! Tenho cá
para mim que, o não ter.recebido martírio, foi por tê-lo passado em ver morrer o
Senhor, e nos anos que ainda viveu, que seriam de terrível tormento, em se ver
ausente d'Ele. Pelo que se vê que não estava sempre com regalo de contemplação
aos pés, do Senhor.
14. A outra, é que não podeis, nem sabeis como levar almas a Deus; que o faríeis
de muito boa vontade, sim; mas, não tendo de ensinar nem de pregar como faziam
os Apóstolos, não sabeis como. A isto já respondi por escrito algumas vezes, e até
não sei se neste Castelo; mas, porque é coisa que creio vos passa pelo pensamento,
com os desejos que vos dá o Senhor, não deixarei de o dizer aqui: Já vos disse
noutra parte, que algumas vezes o demónio nos dá grandes desejos, para que não
lancemos mão do que temos à mão, para servir a Nosso Senhor em coisas
possíveis, e fiquemos contentes com ter desejado ás impossíveis. Deixando de
parte que na oração ajudareis muito, não queirais aproveitar a todo o mundo, mas
sim às que estão em vossa companhia, e assim será maior a obra, porque a elas
estais mais obrigadas. Pensais que é de pouco lucro, que a vossa humildade seja
tão grande, e a mortificação, e o servir a todas, e uma grande caridade para com
elas, e um amor do Senhor, que esse fogo as incendeie a todas, e com as demais
virtudes as andeis sempre despertando? Não será senão serviço muito e muito
agradável ao Senhor, e, com isto que pondes por obra, e que podeis, entenderá Sua
Majestade que faríeis muito mais; e assim vos dará prémio, como se Lhe
ganhásseis muitas almas.
15. Direis que isto não é converter, porque todas são boas: E, quem vos manda
meter nisto? Quanto melhor forem, mais agradáveis serão ao Senhor seus louvores,
e mais aproveitará sua oração aos próximos.
Enfim, irmãs minhas, aquilo com que quero concluir é que não façamos torres sem
fundamentos, porque o Senhor não olha tanto à grandeza das obras como ao amor
com que se fazem; e, desde que façamos o que pudermos, Sua Majestade fará com
que vamos podendo cada dia mais é mais, conquanto não nos cansemos logo, mas;
no pouco que dura esta vida, e porventura será ainda menos do que cada uma
pensa, ofereçamos interior e exteriormente ao Senhor o sacrifício que pudermos,
pois que Sua Majestade o juntará com o sacrifício que Ele ofereceu por nós na
Cruz a Seu Pai, para que tenha o valor que o nosso amor tiver merecido, embora
sejam pequenas as obras.
16. Praza a Sua Majestade, irmãs e filhas minhas, que nos vejamos todas onde
sempre O louvemos, e me dê graça para que eu faça alguma coisa do que digo,
pelos méritos de Seu Filho, que vive e reina por todo o sempre, amen; que eu vos
digo que é grande confusão minha, e assim vos peço, pelo mesmo Senhor, que não
esqueçais em vossas orações esta pobre miserável.
EPÍLOGO
J. H. S.
1. Ainda que, quando comecei a escrever isto que aqui vai, foi com a contradição
que digo ao princípio, depois de acabado, me tem dado muito contento, e dou por
bem empregado o trabalho, embora confesso que foi bem pouco. Considerando o
muito encerramento e as poucas coisas de divertimento que tendes, irmãs minhas, e
sem casas tão suficientes como convém em alguns dos vossos mosteiros, pareceme
que vos será de consolação deleitar-vos neste Castelo Interior pois, sem licença
dos su periores, podeis entrar e passear nele a qualquer hora.
2. É verdade que nem em todas as moradas podeis entrar só por vossas forças,
embora vos pareça que as tendes grandes, se aí vos não mete o mesmo Senhor do
Castelo. Por isso vos aviso que não façais nenhuma força, se encontrardes qualquer
resistência; porque O desgostareis de modo que nunca vos deixe entrar nelas. É
muito amigo da humildade. Tendo-vos por tais que nem sequer penseis merecer
entrar nas terceiras, ganhar-Lhe-eís mais depressa a vontade para chegar às
quintas; e de tal maneira ali O podeis servir, continuando a ir a elas muitas vezes,
que vos meta na mesma morada que Ele tem para Si, donde não saiais mais, a não
ser chamadas pela prioresa, cuja vontade quer tanto este Senhor que cumprais,
como a Sua mesma. E ainda que estejais muito tempo fora por seu mandado,
sempre, quando voltardes, vos terá a porta aberta. Uma vez habituadas a gozar
deste Castelo, em todas as coisas achareis descanso, embora sejam de muito
trabalho, com a esperança de voltar a ele, que ninguém vo-la pode tirar.
3. Ainda que não se trata senão de sete moradas, em cada uma destas há muitas:
por baixo, por cima, dos lados, com lindos jardins e fontes, e coisas tão deleitosas,
que desejareis desfazer-vos em louvores do grande Deus, que o criou à Sua
imagem e semelhança? Se alguma coisa achardes bem na ordem seguida em vos
dar notícia d'Ele, crede verdadeiramente que foi Sua Majestade que o disse para
vos dar contento; e, o mau que achardes, é dito por mim.
4. Pelo grande desejo que tenho em ser parte para vos ajudar a servir a este meu
Deus e Senhor, vos peço que, em meu nome, cada vez que lerdes aqui, louveis
muito a Sua Majestade, e Lhe peçais o aumento da Sua Igreja, e luz para os
luteranos; e, para mim, que me perdoe meus pecados, e me tire do purgatório; que
talvez lá esteja, por misericórdia de Deus, quando isto se vos der a ler, se estiver de
modo que se veja, depois de visto por letrados. E se alguma coisa estiver em erro, é
por mais não entender; e em tudo me sujeito ao que ensina a Santa Igreja Católica
Romana, que nisto vivo e protesto e prometo viver e morrer. Seja Deus Nosso
Senhor para sempre louvado e bendito, amen, amen.
5. Acabou-se isto de escrever no mosteiro de São José de Ávila, no ano de mil
quinhentos e setenta e sete, véspera de Santo André, para glória de Deus, que vive
e reina para sempre sem fim, amen.

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