História de uma Instituição controvertida
Pe. José Bernard, S. J.
*
IMPRIMATUR
POR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO. E
REVMO. SR. DOM MANUEL PEDRO DA CUNHA CINTRA, BISPO DE PETRÓPOLIS. FREI
DESIDÉRIO KALVERKAMP, O. F. M. PETRÓPOLIS, 30-V-1959.
* * *
INTRODUÇÃO
Uma das
acusações que sem cessar se levantam contra a Igreja Católica é a de ter
terrorizado os povos cristãos pela "sinistra instituição da
Inquisição". As incriminações proliferam em meio de uma ignorância
histérica quase completa. Sem conhecimento de causa fala-se de inocentes
perseguidos, prisões, torturas, fogueiras... Só a palavra Inquisição incute misterioso
terror.
Nos nossos
estudos sobre Galileu Galilei, condenado pela inquisição Romana, sentimos a
necessidade de aprofundar e esclarecer os conhecimentos sobre o órgão jurídico
que tomou em mão o caso do célebre pisano (Ver: Galileu Galilei à luz da
História e da Astronomia. Editora Vozes).
Muitas vezes
até é ignorado o fato de ter sido a Inquisição um tribunal, e é este o caráter
que lhe dá a grande impopularidade. Qualquer tribunal de justiça é odiado pelos
criminosos, receando pelos cidadãos honrados que se sentem difamados quando
citados pelo juiz; finalmente, por falsos sentimentos humanitários, são
difamadas as sentenças judiciárias como desumanas, esquecendo-se que qualquer
sanção das leis deve ser dura, para intimidar os malfeitores e proteger os
inocentes, e as sanções que os nossos antepassados julgavam necessárias eram
realmente duras e hoje incompreensíveis. Foram estas as razões que geraram
contra a Inquisição a atmosfera de ressentimento e repulsão, fomentada por
propaganda malévola e favorecida pela incompreensão das suas finalidades e
efeitos salutares.
A aversão
contra o espetro sinistro do tribunal da fé é tão geral, que os próprios
católicos, fiéis à sua Igreja, dela participam, influenciados por uma constante
propaganda maliciosamente tendenciosa. Muitos confundem a imutabilidade do
dogma católico com a disciplina eclesiástica. Considerando a Igreja como
imutável, afirmam estar ela ainda hoje nas mesmas disposições como em séculos
passados, e pronta para perseguir os dissidentes com torturas e fogueiras. Tais
acusadores não sabem distinguir o essencial do acidental. Sabemos que o
islamismo, fiel às doutrinas de Maomé, considera da sua essência submeter todo
o mundo a ferro e fogo. Ainda recentemente os ulemás do Paquistão se opuseram a
uma constituição favorável a adeptos de outras religiões, declarando que o
mundo islâmico continua ainda hoje em pé de guerra com todos os infiéis. A
propagação da Igreja Católica é também uma característica essencial e imutável,
mas processa-se por meios persuasivos. A sua defesa contra os hereges, e em
particular a modalidade desta defesa incorporada na Inquisição, é um ato
disciplinar e acidental, sujeito a variações e ab-rogações. Na sua disciplina a
Igreja se adapta às circunstâncias do lugar e do tempo. Ninguém pensa mais em
restaurar a Inquisição e menos ainda seus métodos. Estes pertencem
definitivamente ao passado.
Não é fácil
remediar a ignorância que reina sobre este assunto de dificílima explicação.
Raros são os autores católicos que ousam abordá-lo, desesperando desde o início
de poder introduzir o leitor num mundo completamente alheio ao nosso,
incompreendido até por muitos historiadores. "Para compreender a Inquisição,
é preciso formar-se uma alma ancestral" (Dictionnaire de Théologie
Catholique).
As linhas que
seguem não pretendem dar um conspecto histórico completo, mas só auxiliar, na
medida do possível, a compreensão daquele fenômeno histórico. A disposição da
matéria obedece a este intuito. Algumas repetições foram inevitáveis. Começamos
com algumas explicações e ponderações preliminares.
Cumprimos ainda
com o grato dever de agradecer ao Pe. Dr. Frederico Laufer, S. J., Professor da
História Eclesiástica, a valiosa colaboração e orientação.
I. A
INQUISIÇÃO MEDIEVAL
O QUE É INQUISIÇÃO?
A Inquisição
deve ser considerada como o resultado da unificação de duas instituições, uma
eclesiástica e outra civil.
A Igreja tem a
missão de propagar, fortalecer e proteger a revelação divina. Para satisfazer
ao dever, ao "ofício" de proteger a fé, ela criou o tribunal
eclesiástico do "Santo Ofício".
Por outro lado
já existiam, desde os tempos dos imperadores romanos, leis e tribunais civis,
dirigidos contra as heresias, que geralmente estavam acompanhadas de desordens
e delitos comuns, e consideradas prejudiciais ao Estado.
A Inquisição
constituiu-se, pois, pela reunião do tribunal do Santo Ofício com o tribunal
civil. Tinha dois "braços": O primeiro era o braço eclesiástico, que
inquiria (Inquisição), corrigia e finalmente julgava os delitos de heresia. Sua
finalidade principal não era vingar e castigar, mas corrigir e emendar. O
segundo braço era o secular, a quem eram entregues os réus convictos e
contumazes, para serem castigados segundo as leis civis.
É LICITO PERSEGUIR HEREGES?
Para
compreender a aparição e atividade do tribunal da fé, devemos elucidar uma
questão de princípios: Não será contrário ao espírito do evangelho, e até ao
direito divino e humano, condenar um homem por causa das suas convicções e
intenções internas? Não era já norma romana e pagã: "de internis non judicat praetor"? Ou não era um abuso
abominável do império romano ter perseguido os cristãos? E podia-se justificar
a repressão violenta do maniqueísmo, de que teremos ainda de falar?
À questão
proposta deste modo, a Igreja Católica dos primeiros séculos deu uma resposta
clara e enérgica, interpretada historicamente por São João Crisóstomo: "É
um crime imperdoável matar um herege".
Os imperadores
romanos, também depois de convertidos, continuavam a guerra mais encarniçada às
heresias, mas todos os historiadores estão concordes em afirmar que até o fim
do primeiro milênio a Igreja Católica e os Romanos Pontífices se inclinaram
mais para a benignidade com os heterodoxos.
As heresias,
porém, nunca faltavam. Os maniqueus e donatistas nunca foram extintos,
mostrando uma vitalidade assustadora. Surgiram os priscilianistas e outras
seitas. Contudo o proceder constante dos mais conspícuos representantes da
religião cristã era a clemência, repugnando o rigor da autoridade civil. Assim
Santo Agostinho defendeu durante muito tempo o sistema de benignidade com os
hereges, acreditando que poderia convencer e atraí-los por uma franca discussão
(Cf. B. Llorca, La Inquisición en España. Introdução).
A experiência
desfavorável causou uma lenta mas segura mudança das opiniões. Já o mesmo Santo
Agostinho constatou o grande dano causado à religião pelos hereges obstinados —
qualquer sujeito malicioso ou alucinado podia perverter inúmeros homens
desprevenidos — e começou a defender o emprego da força, excluindo, contudo, a
pena de morte. O já citado São João Crisóstomo chegou à mesma conclusão.
Interpretando a
disposição dos ânimos que nascia, podemos dizer que a pergunta acima formulada
foi substituída por esta: Será lícito reprimir a heresia pelo uso da força,
quando ela constitui um perigo iminente para a ordem religiosa e civil? A
autoridade civil já dera, desde havia muito, a resposta afirmativa e continua
ainda hoje na mesma disposição. Siga um exemplo: Contrariando seus princípios
de completa liberdade democrática, os Estados Unidos da América do Norte
julgavam necessário proteger-se contra a desintegração de sua sociedade.
Começaram a citar diante dos tribunais os comunistas declarados, "por
propagarem uma ideologia revolucionária", com o fim confessado de derrubar
a ordem existente e a constituição democrática. (Em tempos passados teria sido
um crime de lesa-majestade, como veremos abaixo). Este proceder contra os
comunistas é uma genuína restauração dos princípios inquisitoriais da Idade
Média.
Vemos que a
lógica moderna concorda com a dos nossos antepassados. Quando, porém, aprovamos
assim o princípio, devemos aprovar também as modalidades, do seu proceder, como
a história as relata. Elas eram a expressão do modo universal de pensar e agir
naquele estado de cultura. Como veremos abaixo, na parte histórica deste
estudo, tanto o Estado como a Igreja se viam em face de um perigo crescente e
ameaçador. Toda a sociedade humana, a ordem civil e religiosa, construída com
imensos esforços, toda a civilização e cultura do Ocidente, o progresso, a
união e paz estavam ameaçados de dissolução. Imaginemos, em comparação, o que
deveria acontecer hoje, se não houvesse policiamento para reprimir os atentados
à ordem, bens, vida e pudor da população. Seria o completo domínio do terror.
Em face do
perigo, e constrangida de agir, a Igreja tentou uma combinação da clemência com
o rigor. O perigo, emanado da heresia, devia ser dominado com a força
necessária. Porém com os próprios hereges, com os indivíduos, se usaria toda a
clemência possível. A finalidade do novo órgão judiciário seria converter e
reintegrar os hereges, absolvendo os penitentes e condenando só os contumazes,
os incorrigíveis. A nenhum governo, a nenhum tribunal e juiz daquele tempo
ocorria a idéia de absolver criminosos só por se mostrarem arrependidos. Foi
este porém o princípio básico, o farol aceso pelo espírito de caridade e que
iluminou toda a atividade inquisitorial durante os vários séculos da sua
existência.
Assim
compreendemos que todo o Ocidente cristão: a autoridade civil, os governadores
da Igreja, todo o povo cristão, enquanto incontaminado pelo veneno, considerava
indispensável o órgão repressor da heresia. Ficamos hoje estupefatos diante
desta harmonia completa. Vemos os homens mais eminentes, seculares e
eclesiásticos, destacados por prudência, ciência, caridade e santidade,
patrocinar unanimemente a mesma causa. Não podemos duvidar que nós mesmos, se
tivéssemos vivido naquela época, teríamos pensado como eles. Incriminá-los
seria pois equivalente a condenar a nós mesmos, ou ao senso comum humano. O
estudo das exposições seguintes corroborará esta conclusão.
A mesma
convicção e concordância se encontrou entre os protestantes. A reforma é uma
história de guerras e execuções dos católicos, não só na Inglaterra, senão
também na Alemanha e na França. Lutero, Melanchthon, Butzer decretaram a pena
de morte para os "hereges". Calvino mandou queimá-los e recebeu a
aprovação de Lutero (Der Katholic, 20-10-1935).
Se os
reformadores procederam da mesma forma como os governos católicos, contudo
negamos que os princípios acima estabelecidos justifiquem seu proceder. Eles
não se viam na necessidade de defender uma ordem existente, nem de salvar a
religião de inovações perigosas, ou de preservar a cultura de decadência. Para
eles a perseguição da antiga religião era um meio de propagar suas próprias
inovações. Desde o início eles imitaram os muçulmanos, propagando suas
doutrinas pela pressão e até por fraude, com o auxílio dos reis, vendo que só
por meios persuasivos não conseguiriam arrancar o povo ao seio da Igreja
Católica.
Lembremos aqui
como complemento o que fizeram os nazistas, proclamando alto o ódio como base
de todas as suas relações com os dissidentes e foi este ódio que encheu os
campos de concentração e de morte. Os comunistas anunciam a paz do mundo, uma
paz singular que, para o exterior, "não exclui o emprego das armas"
e, para o interior, estabelece a paz do cemitério. Com estes princípios é
ameaçada a cultura universal, enquanto a Inquisição salvou a cultura, como
veremos.
A
questão que acabamos de tratar é de tanta importância, que não achamos
supérfluo acrescentar as ponderações do Professor Dr. Frederico Laufer, S.J.,
feitas sob outro ângulo.
1. A
fé, revelada por Deus, restauradora do mundo, era considerada pela Cristandade
medieval como seu tesouro mais precioso. Por ela o cristão se distinguia de
todo o resto da humanidade. Era seu apanágio, privilégio divino. Na mesma época
da história que devia ver o aparecimento da Inquisição, a fé tão viva animou os
exércitos dos Cruzados a sacrificar a vida pela defesa dos lugares santos. Se
então na retaguarda, no próprio seio da Cristandade, hereges, talvez vindos do
estrangeiro, faziam propaganda de uma crença contrária, já condenada pela
Igreja desde séculos e reprovada pelo Estado por destruir a união da fé e a
ordem social: podemos compreender a indignação que se apoderava de todos.
2. É
verdade que não se deve "forçar" ninguém a aceitar a fé. Neste
particular os medievais procediam corretamente. Não obrigaram os judeus, nem os
pagãos ou muçulmanos a abraçar a fé cristã. (Medidas estaduais diferentes nos
séculos XV e XVI não emanaram da
Igreja nem tiveram sua aprovação). Mas quem era cristão tinha feito no batismo
o compromisso de conservar a fé, de ser membro da Igreja e da Cristandade até a
morte, assumira supremas obrigações diante das autoridades, às quais davam o
direito de urgir o fiel cumprimento. Apostatando, o cristão tornava-se perjuro,
réu de um crime considerado como o maior de todos.
3. Mas
se alguém perde internamente a fé, ou convencendo-se subjetivamente de sua
falsidade, agir contra este não será equivalente a sujeitá-lo ao terror, fazer
dele um hipócrita? A esta pergunta dava-se a resposta seguinte: Ao povo
simples, ignorante e até ao homem culto mas isolado, não se pode reconhecer o
direito de se levantar em assunto de fé e moral contra o consenso comum e a
autoridade eclesiástica estabelecida por Deus. As idéias novas contrárias à
Igreja não podem gerar convicção objetiva, mas apenas subjetiva — adesão ao
erro.
A mais,
se os inovadores tivessem guardado para si suas idéias, poderiam viver em paz.
Mas quando começavam a doutrinar, atrair gente simples e desprevenida, os
pastores deviam defender a população e a ordem estabelecida, da mesma forma
como hoje o Estado reprime revolucionários.
A
propaganda herética não era pois considerada como o produto de verdadeira
convicção intelectual, mas antes como obstinado fanatismo religioso, ou má
vontade e rebelião contra a ordem social. A tais mentalidades não se podia
fazer frente com instrução, com argumentos da razão, senão com coação, tribunal
e prisão. Julgava-se justo aplicar a pena capital.
4. A
Igreja — da mesma forma que o Estado — reclamava para si um poder coercitivo, o
direito de infligir penas temporais. Mas ela nunca pronunciou ou executou uma
sentença de morte.
5. Por
sua vez o Estado convencia-se de que suas obrigações éticas provinham de dupla
fonte: da necessidade de velar pelo bem comum e da ordem positiva de Deus,
fundadora da Igreja visível e da ordem social.
CAUSAS GERAIS QUE MOTIVARAM A INSTITUIÇÃO DO NOVO TRIBUNAL.
Para os
criminosos comuns já existiam os tribunais civis. Mas tanto o Estado como a
Igreja viam-se a braços com o desenvolvimento de numerosas ideologias perigosas,
cujo conhecimento é necessário para compreender a necessidade da sua supressão
por um órgão jurídico apropriado e novo.
Para as
exposições que seguem confira-se: 1) O tomo 64 da monumental Enciclopédia
Europeu-Americana, editada por Espasa-Calpe, Bilbao, Espanha (Citaremos Espasa);
2) Dictionnaire de Théologie Catholique, Paris, 1923 (Citaremos
DTC); 3) A literatura ocasionalmente indicada.
1. OS MANIQUEUS. Já no tempo do Império
Romano os , maniqueus, que professavam uma doutrina dualística, eram considerados
tão prejudiciais à ordem civil e religiosa que o Imperador Diocleciano os
mandou perseguir e eliminar por todos os meios possíveis.
Mas o
maniqueísmo não foi extinto. Continuou a existir no Oriente. No século X, a Imperatriz
Teodora fez massacrar uma centena de milhares de cátaros (= "puros"),
como se chamavam os neo-maniqueus. Perseguidos também pelo Imperador Alexis
Commenus, por 1118, muitos deles emigraram para o Ocidente onde acharam refúgio
e granjearam novos adeptos. No século XII são encontrados nos Países
Baixos, Alemanha, Lombardia, Espanha e França, onde eram chamados Albigenses.
Enquanto no Sul
continuava a ameaça do islamismo, ao Norte dos Alpes a cristianização era de
data recente e ainda imperfeita. A influência do Papado era diminuta, por causa
do poder dos senhores feudais que governavam, ou constituíam o baixo e alto
clero. Quanto menor era o ascendente da Igreja, tanto maior o perigo causado
pelo neo-maniqueísmo ou catarismo. Negando ou deturpando quase todas as
doutrinas do cristianismo, a seita sinistra era detestada pelo povo que
perseguia seus adeptos. As vezes, cátaros eram arrancados aos tribunais
seculares ou eclesiásticos e lançados ao fogo. Porém a seita aumentava em
número e influência e teve influxo pernicioso nos valdenses (Cfr. Wilhelm Neuss, Die Kirche des Mittelalters, 1946).
Os cátaros
ameaçavam de decomposição a sociedade humana. Ensinavam a iliceidade do
matrimônio: "O fruto proibido no paraíso terrestre fora o uso do
matrimônio". — "A propagação do gênero humano constitui uma obra
diabólica". — "Uma mulher grávida é uma mulher que tem o demônio no
corpo". — Contudo só dos "perfeitos" podiam exigir a completa
"pureza", na abstenção do matrimônio. Sendo evidentemente dificílima
a perseverança no estado perfeito, prevenia-se a defecção pela
"endura", assassínio por privação de alimento, prática que se
estendia até às crianças. Muitos a praticavam voluntariamente (DTC). É de crer
que a "endura" vitimou mais cátaros que toda a atividade inquisitorial
(W. Neuss).
Estas doutrinas
e praxes subversivas eram sustentadas e propagadas com fanatismo. O novo surto
do maniqueísmo, nos cátaros e albigenses, tinha caráter mais violento do que
nunca, a tal ponto "que os príncipes, os reis, os imperadores e o povo em
massa procederam à execução dos hereges que consideravam como o maior
perigo" (B. Llorca).
O mesmo autor
nota que, se jamais houve uma heresia perigosa para o Estado e para a Igreja,
era sem dúvida a dos albigenses e cátaros. Eles se rebelaram contra a
autoridade do Estado não menos do que contra a da Igreja. A princípio a Igreja
se mantinha afastada das perseguições e recomendava compaixão para com os
hereges, indulgência que aumentava o perigo e obrigou finalmente os Papas a mudarem
de atitude.
2. OS VALDENSES. Desde 1173 reuniam-se
homens que pretendiam viver a vida de Cristo e dos Apóstolos. Em breve
tornaram-se hereges e faziam propaganda ativa na Lombardia, Piemonte, França, Alsácia,
Boêmia, Áustria, Baviera, Pomerânia, Brandenburgo. Desprezavam a autoridade da
Igreja, que chamavam de nova Babilônia e lhe arrancavam os fiéis. Insurgiam-se
também contra a justiça secular, combatiam as guerras e as Cruzadas.
Omitimos aqui a
enumeração de muitas outras seitas, como também certas distinções que se podem
fazer entre maniqueus, cátaros e albigenses, e as relações das seitas entre si.
3. OS JUDEUS — fora da Espanha e Portugal
— geralmente não eram perseguidos. Só esporadicamente ouvimos o contrário, como
por exemplo a ação do Margrave de Brandenburgo que em 1510 mandou queimar 38
judeus. Era-lhes proibido fazer proselitismo e aos convertidos apostatar
novamente da fé. Contudo por seu ódio à religião cristã, seus pretensos ou
reais sacrilégios e assassínios, pelo afã de conseguir riquezas, principalmente
pela usura, eles provocavam a vingança do povo e a atenção perpétua das
autoridades.
4. Perseguidos
pela Inquisição seriam mais tarde também os "EXCOMUNGADOS CONTUMAZES"
e os "ESPIRITUALISTAS" de
diversas seitas, que provocavam cisma na Ordem Franciscana e queriam obrigar a
todos os fiéis a observar a pobreza absoluta, entravando assim qualquer
progresso material e cultural.
5. A MAGIA, divinação, sortilégio,
alquimia, culto do demônio, pactos com o demônio, que se consumavam no
"sabat". A crença na magia e nas "bruxas", que hoje revive
assustadoramente, nunca faltou nos tempos antigos e medievais. A justiça leiga
combatia a magia e perseguia os magos e as bruxas. Também a Inquisição os
reprimia. Muitas vezes, sentenciados brandamente pelo tribunal eclesiástico,
eram de novo requeridos pela justiça leiga e invariavelmente castigados pela
morte.
Citemos um caso (DTC). Aos
15-10-1346 a Inquisição de Exilles (Dauphiné, França) sentencia um mago por
quatro delitos. Confesso e arrependido, ele recebe penitência de jejuns e
peregrinações. Mas a "Cour
Mage" civil também o processa e condena à morte por 15 delitos, dos quais
citamos os seguintes: 1) Teve relações com o demônio; 2) renegou a Deus e pisou
a cruz com os pés; 3) escutou os conselhos do demônio; 4) o demônio proibiu-o
de beijar a cruz. Estes quatro delitos são mencionados nas sentenças dos dois
tribunais, mas, o tribunal leigo continua: Compôs pós mágicos; cometeu
malefícios e assassinou crianças; foi ao "sabat"; cometeu
envenenamentos...
Também o povo
crédulo e supersticioso via nos magos e bruxas seus maiores inimigos e cometia
inúmeras violências em que não podiam faltar atentados contra a honra e os bens
alheios.
6. A Inquisição
devia julgar também certos crimes de direito comum, principalmente os delitos
graves contra a moralidade.
7. Entre as
causas que geraram a Inquisição devemos enumerar também a ideologia da Idade
Média. O POVO, com sua fé ardente,
não podia aturar o erro, nem o desprezo de suas crenças. Sentia-se provocado e
injuriado por sacrilégios cometidos pelos hereges. Toda a dissensão ideológica
levava a violências, cometidas por ambas as partes. Os REIS, por sua vez, consideravam a unidade religiosa como base, ou
parte da unidade civil. Para eles a perseguição dos hereges era uma questão
política de unidade e paz interna. Realmente, onde medrava a heresia,
imediatamente havia distúrbios, rebeliões dos hereges, reações populares
violentas, guerras religiosas.
Para resumir e
ilustrar as causas até aqui alegadas, ouçamos Espasa: Os repetidos
sacrilégios, as doutrinas que ameaçavam a propriedade, a honra e a paz das
famílias e dos povos, os incêndios e assassinatos, as desordens e rebeliões
chegaram a tal ponto, que os próprios reis — que ao princípio se mostravam
indiferentes, quando não favoreciam os hereges — viam suas dinastias em perigo.
Causaram desordem os sequazes de Tanchelino, que se dizia encarnação do
Espírito Santo e se casou publicamente com uma estátua da Virgem, cometendo
inúmeros atos imorais e apropriando-se de vultosos bens. Arnaldo de Bréscia com
seus bandos apoderou-se de Roma e a saqueou, provocando guerra civil. Pedro de
Buis foi assassinado, quando ia pôr fogo a todas as imagens sagradas, veneradas
pelo povo.
Espasa continua: A multiplicidade e
o progresso das heresias no século XII foi tão grande, que punha em grave
perigo a Igreja e o Estado, ameaçando a nova civilização ocidental, e
originando não só a perversão dos costumes e a anarquia nas crenças, mas também
lutas civis produtoras de enormes desordens públicas.
Tanto a Igreja
como o Estado se viam na necessidade de agir. Mas enquanto se tratava de
heresias, o Estado precisava da cooperação da Igreja, única competente em
questão de fé.
A história
parece provar que, apesar da sua gravidade, as causas alegadas não teriam
bastado para vencer a relutância da Igreja. Mas sobreveio a insistência e a
arrogância dos reis — tanto na Idade Média como mais tarde na Península Ibérica
— que finalmente determinaram os Papas a agir. Acrescem pois as seguintes
causas de caráter diferente.
8. A INSISTÊNCIA DOS REIS. Uma carta de
Luís VII da França, enviada em 1162 ao Papa Alexandre III, ilustra muito bem a
posição que tomavam a Igreja e o Estado: "Vossa Sabedoria preste atenção
toda particular a esta peste (maniqueus em Flandres) e a suprima antes que se
possa agravar. Eu vos suplico pela honra da Fé cristã, dai nesta causa toda a
liberdade ao Arcebispo (de Reims), êle destruirá aqueles que assim se levantam
contra Deus, sua severidade justa será louvada por todos os que, nesse país,
estão animados de genuína piedade. Se Vós agirdes de outro modo, os murmúrios
não se aquietarão e desencadeareis contra a Igreja Romana as veementes censuras
da opinião" (DTC).
A carta deixa
entrever que o Papa, fiel à antiga tradição da Igreja, muitas vezes manifestada
por seus representantes, era contrário a medidas de coação. Mas a iminência do
perigo já começava a mudar a "opinião", povo e príncipes exigiam
repressão eficiente, em muitas regiões o próprio povo e as autoridades agiam
por sua conta. O Papa entendeu que devia mudar de atitude e regular o proceder
juridicamente.
9. A ARROGÂNCIA DOS REIS. Quão complexa é
a questão da Inquisição e das suas origens depreendemos de um ponto de vista
inesperado exposto por Mons. Douais (Cfr. F. de Almeida, História da
Inquisição em Portugal). Depois de um século de desenvolvimento a
Inquisição foi fundada definitivamente pelo Papa Gregório IX em
1231. Segundo Mons. Douais a razão desta decisão foi para o Papa "a
necessidade de criar uma arma de defesa para repelir as intrusões do Imperador
Frederico II na esfera eclesiástica". F. de Almeida
continua: "É bem conhecida a dobrez política de que usou o Imperador nas
suas relações com a Santa Sé, faltando sem escrúpulo aos compromissos mais so-
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lenes e excedendo muitas
vezes o círculo da sua autoridade. A pretensão de dominar o papado é
manifesta... O zelo, por vezes excessivo, que Frederico II mostrou na repressão
da heresia, obedecia ao mesmo pensamento de dominar o poder eclesiástico,
procurando ganhar prestígio na opinião dos fiéis e afirmando solenemente a
própria autoridade. Fala da "plenitude do seu poder" que lhe
"vinha de Deus". O Senhor constituira-o defensor da tranqüilidade da
Igreja, para a não deixar "contaminar por alguma ovelha ronhosa".
Apoia-se em "ambos os direitos" (civil e eclesiástico)... Ao mesmo
tempo o Imperador planejava lançar na mesma fogueira os hereges e os seus
inimigos pessoais e políticos. E assim o fêz".
A decisão papal
de opor uma barreira às invasões na esfera política, instituindo a Inquisição,
não queria pois perseguir os hereges com novo rigor, mas obstar à prática de
crimes políticos cometidos em nome da Igreja. O proceder de Frederico II achou
mais tarde imitação nos reis da Espanha e Portugal, como ainda veremos.
HISTÓRIA DA INSTITUIÇÃO.
Depois de ter
considerado de preferência os aspectos jurídicos do tribunal da Inquisição,
acompanhemos seu desenvolvimento histórico. As grandes desordens e inquietações
causadas pelas heresias durante a Idade Média exigiam enérgica intervenção dos
poderes públicos. A iniciativa não podia partir da Hierarquia Eclesiástica. O
Papa só podia insistir com os príncipes de remediar os males. Também os bispos
eram quase impotentes com seus meios escassos e reduzida influência. Na
Alemanha, onde os bispos eram ao mesmo tempo príncipes, eles podiam agir com
maior facilidade. Na França a reação ao perigo era mais urgente. Mas o conceito
de um tribunal de dois foros era ainda desconhecido. As idéias deviam clarear
com a experiência e à custa de muitos esforços infrutíferos de extinguir as heresias
per meios persuasivos.
Para o
seguinte, confira-se Espasa e DTC.
Em meados do
século XII era desesperadora a causa da religião ortodoxa no Languedoc. Os
albigenses (cátaro-maniqueus) propagavam suas crenças por meio das armas, de
incêndios e saques. Particulares e comunidades dirigiam-se ao Papa, pedindo
intervenção e auxílio. Começou então uma prolongada ação papal, cujas
diferentes fases esboçaremos brevemente. Em 1178 o Papa Alexandre III encarregou
o bispo de Meaux de intervir junto aos senhores feudais. Em 1179 o III Concílio
de Latrão lembrou o direito romano, mas distinguiu entre as penas espirituais
da Igreja e as temporais infligidas pelo poder civil. Seguiu uma série de
legações infrutíferas. Em 1184, o Concílio de Verona, celebrado com a presença
do Papa Lúcio III e do Imperador, determinou que o juízo sobre as heresias era
da alçada papal. O Papa incumbiu os bispos de visitar suas dioceses, colher
informações sobre as heresias e ameaçar de censuras eclesiásticas os hereges e
os senhores feudais que os protegiam. Por sua parte o poder civil admoestava os
barões de não fomentar as heresias. Aos transgressores e em geral a todos os
hereges eram infligidas as penas estabelecidas pelas leis civis, como
confiscação, desterro, infâmia e outras.
Aqui já
aparecem nitidamente distintas as duas componentes da futura inquisição, a
Eclesiástica e a Secular, mas estavam ainda coordenadas, procedendo cada uma
independentemente da outra. Faltava só um passo que em breve se deu, para
reunir os dois tribunais em um só. O Concílio de Verona constituiu portanto o
primeiro passo no estabelecimento da Inquisição.
Depois do Concílio
de Verona o Papa mandou numerosos missionários para converter os hereges. Um
após outro abandonou a ingrata tarefa. Os albigenses se recusavam a entrar em
discussões e ameaçavam os legados do Papa. Por mãos dos hereges morreu o
cisterciense Castronovo. O assassínio do legado Pierre de Castelnau em 1208
desencadeou as horrorosas guerras albigenses, cujos excessos revelaram a
necessidade de refrear a agressividade dos hereges por meios legais. "A
regulamentação do proceder por parte do poder eclesiástico e do poder secular,
apresentava-se como o meio de reprimir as arbitrariedades com que procediam os
príncipes, os senhores feudais e o povo". (Cf. G.
Schnürer, Kirche und Kultur im
Mittelalter, II
e III, 1929).
Em 1215, São
Domingos de Gusmão — o depois fundador dos Frades Pregadores, os dominicanos —
participou dos esforços infrutíferos de reduzir os extraviados ao redil da
Igreja. Foi provavelmente em 1216 que o Papa Inocêncio III o designou primeiro
inquisidor. Naquele mesmo ano fundou-se pois, em Toulouse, o primeiro tribunal
da Inquisição, a que deviam seguir muitos outros em todos os países cristãos.
Revestido do
novo poder, porém empregando quase unicamente a pregação, o exemplo de suas
virtudes e o Rosário, São Domingos conseguiu a conversão de mais de cem mil
pecadores públicos, na maior parte albigenses.
Como
instituição permanente e oficial para toda a Igreja, a Inquisição aparece só em
1231, por bula do Papa Gregório IX.
Fundado o
Tribunal do Santo Ofício na França, êle se estendeu rapidamente por toda a
Europa. A sua entrada quase imediata na Itália será considerada mais adiante.
Ao mesmo tempo o Imperador Frederico II colaborou com os legados do
Papa na perseguição dos hereges sicilianos. A iniciativa do Imperador teve
vastas conseqüências. Por vários decretos êle declarou a heresia crime de
lesa-majestade.
A respeito
desta concepção nota o Cardeal Hergenröther (Kirchengeschichte, II, p.
710): "Segundo o direito imperial a heresia não só igualava mas superava
em culpabilidade o crime de lesa-majestade...". Não menos do que a Igreja,
o estado considerava a heresia como o maior dos crimes: crimen maximum.
Em 1232 um
decreto imperial estendeu a Inquisição a todo o Império. Deste modo ela entrou
na Alemanha, onde na verdade teve pouca influência e em breve decaiu. Em
seguida achou entrada na Boêmia e Hungria. Finalmente cobriu toda cristandade
ocidental — inclusive a Península Ibérica, com exceção da Inglaterra (DTC).
Estas
últimas palavras referem-se à Inquisição estritamente medieval. Em épocas
posteriores ela funcionou também durante algum tempo na Inglaterra. "Assim
Maria, a Católica, tentou, por meio dela, restaurar a Fé católica. Mas as
poucas condenações registradas naquela época desapareceram diante das enormes
massas de católicos espoliados dos seus bens, encarcerados e executados debaixo
do regime subseqüente da rainha Isabel". (Cf. Der Katholik, 20-10-1935).
O Papa Gregório
IX confiou os tribunais da Fé aos dominicanos e franciscanos. Assumiram os
frades, em obediência à Santa Sé, uma missão que lhes valeu, principalmente aos
dominicanos, muitas inimizades e até hoje injustas acusações. Vários
inquisidores morreram pelas mãos dos hereges.
Em breve se fêz
sentir a necessidade de uma direção central que tivesse as atribuições de um
tribunal supremo de apelação e resolvesse dúvidas e consultas. Em 1263 o Papa
Urbano IV nomeou João Caetano Ursino primeiro inquisidor geral. Séculos mais
tarde, em 1542, Paulo III aboliu o cargo de inquisidor geral e confiou suas
atribuições à nova Inquisição Romana. Em 1588 Sixto V, reformando as Congregações
da Cúria Romana, confirmou as disposições de Paulo III.
Com esta
centralização chegou a seu término a evolução da Inquisição, chamada medieval,
por ter suas origens na Idade Média. Ela funcionou até o século XV. Depois
perdeu importância em muitos países, tendo contudo uma renovação na Itália, e
outra fundação de caráter diferente na Península Ibérica. Estas Inquisições
regionais serão consideradas à parte.
Os modos de
proceder eram tão estáveis que as exposições gerais que logo daremos ficaram
essencialmente as mesmas no correr dos séculos e nos diferentes países. Os
processos abrangiam heresia, suspeita de heresia, cisma, apostasia, magia,
adivinhação, vaticínios, sacrilégios.
PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL DA INQUISIÇÃO.
Quanto à sua
forma jurídica, o Santo Ofício era um tribunal revestido das mesmas
características de todos os tribunais da Idade Média e início dos tempos
modernos. Seu proceder era secreto, exigiam-se testemunhas, dava-se ao réu
conhecimento das acusações, advogado (conselheiro) e autorização de defesa. Ao
menos na Espanha, a partir de certa época, o fisco pagava a defesa dos
processados pobres (Espasa). Na exposição do procedimento seguimos o Dictionnaire de Théologie Catholique.
1. O
procedimento começava por um manifesto ou pregação que convidava os culpados de
heresia a comparecer espontaneamente, e dos mais exigia a denúncia dos criminosos.
2.
Determinava-se um "Tempo de Graça" de 15 a 30 dias. Quem se
apresentava durante este prazo, prometendo emenda, só recebia penitência leve.
3. Os suspeitos
ou denunciados eram citados diante do tribunal.
4. Procedia-se
ao interrogatório dos acusados.
5. Ouviam-se os
acusadores e testemunhas. Segundo antiga lei, era sujeito a castigo quem não
conseguia provar sua acusação. Esta prudente cautela, já usada pelo direito
romano, dificultava tanto o procedimento que foi ab-rogada, medida infeliz,
embora inteligível pelas circunstâncias particulares do tribunal da fé: a
natureza da acusação era tal que freqüentes vezes ela se apoiava em indícios e
não em provas. Contudo o regulamento exigia dos inquisidores de não se fiarem
senão em pessoas honradas e discretas. Um falso acusador era tratado com o
mesmo rigor como os hereges.
6. Quando a
obstinação do réu o exigia, seguia a "vexação", constituída por
prisão preventiva e dura. Quando finalmente esta não surtia efeito, podia-se
usar a tortura, de que falaremos abaixo.
7. Sentença e
auto-de-fé. Para garantir sentença justa, os inquisidores não podiam decretar
penas graves — como prisão perpétua ou relaxamento ao braço secular — sem a
presença e cooperação do bispo local. Mais tarde, Bonifácio VIII (1294-1303)
exigiu o concurso do bispo para todas as sentenças. Os denunciantes não eram
manifestados aos acusados para evitar represálias. Mas os nomes deviam ser
comunicado aos expertos (assessores) que em número de 25, 32, 45 ou até 51,
formavam o "júri" do tribunal, e deviam ser ouvidos. Esta praxe
distinguia favoravelmente a Inquisição de todos os outros tribunais.
Aos réus
convictos mas penitentes o tribunal infligia penitências moderadas.
Depois de o
tribunal ter concluído certo número de processos procedia-se a um ato público e
solene, em que se promulgavam as sentenças, os convictos arrependidos
pronunciavam sua abjuração, e os impenitentes eram entregues,
"relaxados", ao braço secular. Estas solenidades eram os célebres autos-de-fé,
celebrados com a finalidade de restaurar a pureza da fé, deturpada pelas
heresias, reconciliar os errantes, intimidar hereges ocultos e fortalecer
cristãos vacilantes.
Em geral eram
poucos os que ficavam obstinados até o fim. Sem dúvida muitos fingiam
arrependimento. Quando restava um ou outro declarado impenitente, era entregue
ao braço secular. A autoridade civil recebia os réus e os levava em lugar
diferente do auto-de-fé e ali quase sempre os executava. Em certos casos eram
estrangulados e queimados depois de mortos, outros delinqüentes mais graves
eram queimados vivos. Entraremos em mais pormenores ao caracterizarmos a
Inquisição Espanhola.
TORTURA.
As infindas
acusações contra o instituto da Inquisição estribam-se quase exclusivamente na
praxe cruel da tortura e da execução pelo fogo. Tais procedimentos são tão
contrários aos nossos sentimentos, apurados pelo progresso dos séculos, que não
os podemos compreender e unanimemente os reprovamos. É verdade que muitos
acusadores da Inquisição — protestantes, comunistas — deveriam primeiro
considerar os abusos maiores cometidos nas próprias fileiras, mas fica a
impressão penosa do que realmente sucedeu.
O
desenvolvimento histórico nos deve esclarecer sobre os fatos, sua motivação e
culpabilidade. Falemos separadamente da tortura e da fogueira. A tortura, usada
no Império Romano pagão, desaparecera quase por completo na era cristã. A
Igreja a reprovava. Pelo ano de 864 o Papa Nicolau I a repeliu formalmente numa
carta ao rei dos búlgaros e o primeiro compilador sistemático do direito eclesiástico
na Idade Média, Graciano, estabeleceu pelo ano 1140 que nenhuma confissão devia
ser extorquida por tortura.
Mas os
jurisconsultos daquele tempo sentiam-se inábeis na prática de inquirir a
culpabilidade de um acusado. Os tribunais dos povos germânicos recorriam para
este fim freqüentemente aos ordais (ordálios), isto é, à manifestação do juízo
divino por meio de uma prova de fogo, de água ou outra, também ao duelo, meios
ineptos, usados por falta de melhores. Além disto não se podiam protelar as sentenças
por longas investigações e audiências de testemunhas, tantas vezes subornadas
ou maliciosas, amigos ou inimigos dos acusados. Quando portanto no século XII reviveu
o direito romano, os tribunais civis aceitaram prontamente o expediente da
tortura, que lhes parecia um meio rápido de conseguir a manifestação da
verdade.
Realmente os
métodos brandos e humanos dos nossos dias teriam sido uma provocação dos
malfeitores. Lembremos aqui um episódio do nosso século. Um Xá da Pérsia, que
visitou a Europa, viu também as prisões. Sacudiu a cabeça: "Em nossas
regiões, moradas tão agradáveis estariam sempre superlotadas".
O proceder do
poder civil acabou por tornar a tortura o uso legitimado, considerado aos
poucos como natural. Nas dadas circunstâncias é compreensível que ela achasse
aceitação também em tribunais eclesiásticos. Os representantes da Igreja
pensavam como todos os homens do seu tempo. Se os quisermos acusar, deveríamos
acusar toda a sociedade humana do Ocidente, precisamente aquela sociedade que
estava na ponta do progresso e da cultura.
Quando em 1231
o Papa Gregório IX erigiu canonicamente o tribunal do Santo Oficio, êle se
conservou fiel à antiga tradição eclesiástica, excluindo o uso da tortura.
Somente 20 a 30 anos mais tarde, o Papa Inocêncio IV julgou legítima a sua
aplicação, não somente em crime de homicídio e furto, mas também "contra
os assassinos de almas e ladrões de sacramentos de Deus que são os
hereges".
Ainda assim a
justiça eclesiástica se distinguia em geral favoravelmente da civil por maior
prudência e moderação. O Papa Inocêncio IV logo cercou o uso da tortura
com certas cautelas: exigiu que só depois de esgotados os outros meios de
descobrir a verdade se recorresse a ela, e quando de fato existissem veementes
indícios de culpabilidade. Não devia levar à perda de algum membro e menos
ainda a perigo de morte ("citra
membri diminutionem et mortis periculum"). Não deveria também
ultrapassar meia hora e somente ser aplicada uma vez.
Aos próprios
clérigos era proibido, por longo tempo, assistir à interrogação vexatória e
mais tarde sua presença era ao menos desaconselhada e dificultada. Dos
inquisidores exigiam-se qualidades morais não comuns. Existem entre eles até
santos canonizados, como São Pedro, Mártir. Mas infelizmente esta exigência nem
sempre era observada; o poder secular em países distantes podia burlar as
normas pontifícias. É só pensar no processo dos Templários.
Para remediar
abusos ocorridos, o Papa Clemente V, dificultou em 1311 a tortura por
restrições tão severas, que os inquisidores protestavam, declarando as
condições inaplicáveis. O Papa porém não cedeu, e a bula "Multorum querela" não foi revogada,
mas confirmada para todo o futuro. Sem dúvida ocorriam abusos, geralmente
imputáveis à índole de inquisidores exaltados, e em certas regiões e épocas os
procederes eram também notavelmente mais duros. Porém quanto maior a influência
da Igreja e menos impedida por forças antagônicas, tanto mais humano era também
o tribunal.
Aqui não
podemos imitar os adversários de má fé, que se comprazem mòrbidamente em
descrever cenas horrorosas, quase sempre exageradas ou completamente
inventadas. Quem quiser
informar-se sobre os métodos usados de extorquir confissões, leia nos livros de
história os processos dos tribunais civis, e saberá o que aproximadamente se
deve ter processado nos tribunais da Inquisição.
Concordamos
hoje em considerar a antiga praxe da tortura como cruel e inepta, e constitui
um progresso notável o ter compreendido sua inutilidade e tê-la abolido. Não
será fora de propósito lembrar que nem nos nossos dias ela desapareceu por
completo, até nos países democráticos, conscientes de sua cultura. O proceder
da polícia argelina causou recentemente um escândalo internacional. —
Testemunhas fidedignas ou as mesmas vítimas nos relataram que as paredes
caladas de centros policiais brasileiros viram cenas que não se publicam. Em
larguíssima escala a tortura reviveu na época nazista e nos países comunistas.
FOGUEIRA.
Da tortura,
destinada a arrancar confissões, devemos nitidamente distinguir a execução pelo
fogo, que tinha caráter de castigo. Sempre havia e há homens selvagens ou
degenerados, que cedem aos mais baixos instintos, e por vingança ou prazer
diabólico cometem inomináveis crueldades. Mas ao homem moderno e civilizado causa
uma impressão sumamente penosa ver que povos cultos pudessem adotar por
consenso comum tais medidas crudelíssimas. Tratemos ao menos de compreender,
sem o desculpar, o triste fenômeno, acompanhando o seu desenvolvimento
histórico.
No tempo do
Império Romano pagão a justiça se julgava impotente para reprimir a ousadia dos
criminosos por penas brandas e pela simples execução à morte. Seria talvez
difícil provar que esta convicção fosse errônea. Já então se infligiam penas
corporais "horribile flagellum",
confiscação dos bens, desterro, condenação às galeras, morte por degolação,
crucifixão e finalmente pelo fogo.
Até no mais
aceso das perseguições, poupava-se geralmente aos cristãos a pena do fogo, bem
que houvesse exceções, como a morte de São Lourenço, assado a fogo lento. Mas
já existiam os maniqueus e seu influxo desintegrador da sociedade humana
inspirava maiores receios aos romanos do que a doutrina de Cristo. O Imperador
Diocleciano, que no fundo não aborrecia os cristãos, mostrava-se implacável com
os maniqueus e mandou exterminar os seus chefes pelo fogo e decapitar os
simples adeptos. Tornou-se praxe corrente queimar tais inimigos do Estado.
Pretendendo
continuar o antigo império, os primeiros imperadores cristãos reclamavam também
para si os poderes imperiais de "pontifices
maximi" e como tais persistiam na perseguição dos hereges,
principalmente dos maniqueus.
Aos poucos
porém aumentou a influência da Igreja. Já o primeiro imperador cristão,
Constantino, aboliu o castigo da crucifixão, como também o ferrête[1];
a pena capital foi dificultada e sua aplicação proibida durante o tempo da
quaresma; na páscoa havia anistias, as penitenciárias foram melhoradas e a
tarefa de velar pelos detidos foi confiada, em larga escala, aos bispos. O
influxo da Igreja é manifesto e o historiador sincero tem de reconhecer que o
espírito genuíno do Evangelho tendia a abrandar os costumes e reprimir
crueldades. Desapareceu também a pena do fogo.
Infelizmente na
Idade Média deviam surgir tendências contrárias, reavivando a ideologia pagã. A
primeira iniciativa partiu de Bolonha, onde no século XI a célebre universidade
desenterrou o direito romano, começando a ensiná-lo nas cátedras.
A Igreja
inicialmente tentou opor-se à restauração do direito pagão. Aos clérigos foi
proibido o seu estudo, por contrariar o direito canônico. Muitos, como Rogério
Bacon, Cesário de Heisterbach o combatiam como incompatível com o espírito
cristão. Porém eram grandes as vantagens da unificação do direito em comparação
com a multiplicidade dos direitos regionais. Os príncipes da Idade Média
começaram a emancipar-se mais e mais da Igreja. O novo direito bolonhês
oferecia-lhes pretextos para ampliar seus direitos. Frederico II achou
nele apoio para seus planos imperialistas de cesarismo. A legislação do
Ocidente imbuía-se de novo das idéias pagãs, reapareceu a tortura e pior ainda
a fogueira. Foi na França onde primeiro ressurgiu oficialmente a pena do fogo,
já muito antes de aparecer a Inquisição. O primeiro decreto foi publicado no
ano de 1022 pelo rei Roberto II que, no mesmo ano, entregou
13 hereges à fogueira (O. Schnürer). Quão pouco tal medida ofendia o senso
comum daquele tempo, fica manifesto pelo fato de o rei Luís IX a
reafirmar em 1229. E contudo este rei tinha tão altas qualidades morais que a
posteridade lhe outorgou o título de santo. Como o direito romano, também o
decreto de Roberto II visava os hereges. Seguiu Pedro II de Aragão em 1197, depois o Imperador
Frederico II em 1224 e finalmente os demais países europeus.
Notemos, portanto, o que aqui nos interessa
particularmente: que não foi a Igreja, mas o poder secular que restaurou a
praxe pagã, e que outrossim não a Igreja, mas o poder civil perseguia
inicialmente os hereges. O poder civil fêz retroceder o progresso civilizador
iniciado pelo espírito da caridade evangélica. Não podendo contrariar o poder
superior dos príncipes, nem prescindir do seu auxílio, a Igreja se conformou, e
o enorme perigo que os hereges constituíam para toda a cultura ocidental
parecia não dar outra saída. Ao depois todos os ânimos se reconciliaram com os
fatos consumados, aceitando finalmente a fogueira como instituição necessária e
legítima.
O
reaparecimento da fogueira na Idade Média tem ainda outra fonte, também imbuída
do espírito pagão. Sabemos pelos relatos dos evangelhos que Cristo expeliu
demônios e que os demônios tomavam posse de homens. Eles armam tentações aos
fiéis. Mas não foi esta doutrina cristã que engendrou a superstição popular dos
malefícios mágicos e das bruxas, ligadas ao demônio. Esta crença sinistra
nasceu no mistério das matas escuras do Norte, onde a fantasia sobressaltada
dos pagãos viam mil influxos maliciosos de espectros e espíritos maus. Quando
Carlos Magno sujeitou os saxões (germanos), achou radicado nos nativos a crença
dos bruxos e bruxas, e constatou com mágoa que o povo os queimava vivos. Êle
tentou abolir a praxe cruel por rigorosa proibição (W. Neuss).
Este
procedimento do nobre imperador, a favor de tantos inocentes, achou o apoio da
Igreja. Em 1080 o Papa Gregório VII admoestou seriamente ao rei Haakon da
Dinamarca de não proceder contra as mulheres inocentes. Três bruxas, queimadas
em 1090 pelo povo, foram consideradas como mártires. Ainda em 1311 um sínodo
episcopal de Trier combatia a crença nas "cavalgadas" — vôos com o auxílio
do demônio — noturnas das bruxas.
Mas também aqui
se deu o infeliz retrocesso. Em geral as penas estabelecidas tornavam-se muito
duras. Delitos menores como um roubo de cavalo ou de abelhas eram castigados
com a morte. No século XIII a lei dos saxões (Sachsenspiegel) e dos suábios
(Schwabenspiegel) mandavam queimar as bruxas. A crença na sua perversão se
firmava cada vez mais, apoiando-se em inúmeros "testemunhos
fidedignos", muitos extorquidos pela tortura. Finalmente emudecia toda a
contradição. As perseguições tornavam-se gerais. Impressionado pela
multiplicação dos pactos com o demônio, e dando fé às acusações, o Papa
Inocêncio VIII autorizou em 1484, já nos albores dos tempos
modernos, a perseguição das bruxas. Mas não devia ser arbitrárias, foi incluída
na alçada da Inquisição.
A decisão de
confiar o julgamento dos feiticeiros e bruxas à Inquisição teve conseqüências
benéficas. O tribunal eclesiástico procedia com justiça e só relaxava ao braço
secular os réus convictos e impenitentes. Infelizmente a Alemanha viu nos
séculos XV e XVI um grande declínio da fé e moral, acompanhado de um espírito
de rebelião contra o Papa e a Igreja. Era o tempo da cisão religiosa pela
reforma. Naquele tempo de fé obscurecida e de muita superstição, a crença nos
malefícios diabólicos tornou-se uma verdadeira psicose entre católicos e
protestantes. Os tribunais leigos emancipavam-se, perseguindo as bruxas por
própria conta. As torturas tornavam-se cada vez mais desumanas, com todos os
requintes de crueldade. As fogueiras se multiplicavam assustadoramente.
Intervir a favor das vítimas inocentes acarretava a mesma perseguição.
Um exemplo pode
ilustrar com que facilidade se decretava a pena capital, ilustrando também
como, pelo uso descontrolado da tortura, pior do que a própria morte, se podia
extorquir qualquer confissão desejada! Questionada na tortura, uma
"bruxa" confessou que matara por malefícios seus dois filhos e
causara a morte de um cavalo branco, propriedade de certo camponês. Mas as
crianças estavam vivas e o camponês não perdera nenhum animal. Contudo a bruxa
tinha confessado e foi executada (Zoepfl).
A alucinação
era geral, invadiu protestantes e católicos. Mas bem o nota o historiador W.
Neuss que a razão consistia na decadência religiosa: "...onde a ação (repressiva
contra a bruxaria) continuava na competência da Inquisição, como na Itália e
Espanha, não se produziram perseguições de notável importância. Só depois da
cisão religiosa pela reforma, principalmente no século XVII,
elas deviam —
primeiro na Alemanha e propagadas dali nos demais países do Norte — celebrar
suas horrendas orgias".
De um juiz de
Dresden, Bento Carpzov (1595-1666), referem que pronunciou 20.000 sentenças
capitais (não só de bruxas) e ainda se gabava de ter lido 23 vezes toda a sagrada
Bíblia. Avalia-se em mais de 100.000 o número de mulheres infelizes, na quase
totalidade inocentes, queimadas em terras germânicas (Alemanha,
Escandinávia...).
Confira-se com
esta fúria desenfreada o proceder refletido e justo da tão mal afamada
Inquisição Espanhola. Nos três séculos da sua existência, só sentenciou 12
bruxas à morte. Adiante teremos ainda ocasião de considerar a relativa
moderação desta Inquisição.
Vozes esparsas
se levantavam contra a alucinação coletiva. Uma das primeiras foi a do nobre calvinista
Johann Weyer em 1563. Foi freneticamente combatido por católicos e
protestantes. No século XVII vários jesuítas ousaram
levantar-se contra os crimes cometidos em nome da justiça. O mais eminente foi
o P. Friedrich von Spee, cuja Cautio Criminalis apareceu em 1631. A obra
teve grande repercussão e influiu eficazmente na tardia ab-rogação das leis
iníquas. É significativo que o autor não ousou publicar seu nome na primeira
edição.
Muitos
autores mal informados ou intencionados responsabilizam a Inquisição pela morte
de Joana D'Are. Historiemos brevemente o caso.
Na
guerra dos cem anos os borguinhões aprisionaram a pastôra guerreira, paladina
do rei da França Carlos VII, e a entregaram aos
ingleses, dos quais eram aliados. Estes instauraram um processo político,
presidido pelo indigno bispo Cauchon, de Beauvais. A inocente vitima foi
queimada viva como bruxa aos 30-5-1431. O ato não teve a mínima aprovação de
Roma. Já 25 anos mais tarde o Papa revisou o processo e declarou a inocência de
Joana D'Arc. Ela foi canonizada em 1920.
A pena
horrorosa do fogo teve pois dupla origem, integralmente provinda do paganismo.
Os príncipes dá Idade Média a restauraram nos seus tribunais. A Igreja a
aceitou, mas ela nunca assumiu a responsabilidade formal da pena capital.
Relaxava os condenados ao braço secular, pedindo-lhe na fórmula da entrega de
poupar ao réu a mutilação (praticada pela justiça leiga) e a pena de morte.
"Mas o juiz secular sabia que normas tinha que observar" (DTC). Mais
tarde o pedido de clemência tornou-se mera fórmula, quando as autoridades
eclesiásticas acharam necessário exigir o cumprimento das leis civis.
Dado o começo,
a praxe se consolidou e como já observamos, todos, também os eclesiásticos se
habituaram a considerá-la legítima. Todos pensavam que era justa: o povo a
praticava e reclamava, os príncipes a decretavam, a Igreja a aceitou; querendo
acusar, devemos acusar toda a sociedade medieval.
A
história da tortura e fogueira revela que já na Idade Média começou o
renascimento das idéias pagãs. O poder secular valeu-se de sua força e as impôs
à Igreja. Contudo a caridade evangélica continuava a mitigar ao menos o rigor e
diminuiu notavelmente o número de condenações. Acrescentemos aqui mais uma
prova do influxo benéfico que a religião exerceu sobre a jurisdição.
Na
Idade Média os mosteiros, povoados de monges disciplinados e piedosos, pareciam
um refúgio também para criminosos sentenciados. Foram confiados aos mosteiros,
para que a mansidão, caridade e conscienciosidade ali reinantes abrandassem a
mente dos extraviados. O sistema achou aplauso e os resultados eram
espetaculares. Quando São Bernardo certa vez, em princípio do século XII, andava
de viagem, encontrou um triste cortejo que levava um malfeitor ao patíbulo.
Cheio de compaixão, o santo se lançou no meio do povo, pegou na corda com que
levavam o culpado: "Deixai-me este homem, disse, eu o enforcarei com
minhas mãos!" Sem largar a corda, ele o levou ao conde de Champagne e
solicitou a entrega do malfeitor. O conde cedeu às instâncias de Bernardo a
quem muito estimava. No mosteiro de Clairvaux "este lobo assanhado se
tornou cordeiro". Foi chamado de Constâncio, nome que honrou. Perseverou
trinta anos numa vida de penitência até morrer, na mesma Clairvaux, de morte
edificante.
Os grandes excessos
de crueldade e de execução em massa só reapareceram nos começos dos tempos
modernos com o seu grande declínio e apostasia da fé.
A INQUISIÇÃO NA ITÁLIA
A Inquisição
Italiana foi fundada pouco depois da francesa. O motivo principal da
instituição foi, como na França, a necessidade de reprimir a seita anti-social
dos cátaros. Como data da sua origem efetiva considera-se o ano de 1224, quando
o Papa Honório incumbiu vários bispos do Norte a proceder contra os hereges.
Oficialmente, como tribunal, ela começou a funcionar, como nos outros países,
no ano de 1232 pela bula do Papa Gregório IX.
Vários
inquisidores, entre eles São Pedro Mártir, foram assassinados pelos hereges. Na
Lombardia — três séculos mais tarde — distinguiu-se o inquisidor Miguel Ghisleri,
depois elevado à dignidade papal e conhecido pelo mundo inteiro como São Pio V (1570).
Na república veneziana as leis civis impunham aos hereges a pena de morte, o
que acarretava a execução de todos os hereges convictos, tanto contumazes como
arrependidos. Pio V tentou subtrair a Inquisição ao poder civil, concentrando
nela os dois poderes civil e eclesiástico. Não o conseguiu, porém regularizou o
procedimento para que as sentenças fossem sempre justas.
Enquanto nos
diferentes países e na própria Itália já funcionavam os tribunais da fé, a
cidade de Roma ficou isenta durante mais de três séculos. Bastava o fato de os
hereges não acharem proteção e fomento para afastá-los da cidade dos Papas.
Este estado de cousas mudou quando, no século XVI, apareceu a ameaça do
protestantismo, que tentou esforçadamente penetrar na Itália, como nos demais
países católicos.
L. von Pastor,
autor da História dos Papas, conta no V tomo da sua obra —
Pontificado de Paulo III — que até religiosos, como
os agostinianos-eremitas pregavam as doutrinas de Lutero. Em 1539 um capuchinho
espalhava as mesmas heresias. Os protestantes alemães se gloriavam do seu
sucesso na Itália. Módena e Lucca já ameaçavam separar-se da Igreja Católica.
Os mais perigosos eram os pregadores que pretendiam pregar a doutrina católica,
mas na realidade a falsificavam com os erros de Lutero. Havia indícios de
heresia na própria Roma.
Em face do
perigo, Paulo III achou necessário criar em Roma uma nova sede da
Inquisição, que seria ao mesmo tempo o órgão central e supremo para todos os
tribunais deste gênero na Itália e em toda a Igreja. A decisão recomendada
também por Santo Inácio de Loiola (Mon. Ignat., Epistulae), foi
executada aos 4-7-1542, data que marca, pois, o início da Inquisição Romana e a
maior centralização da Inquisição Italiana.
Ao mesmo tempo
Paulo III admoestou os agostinianos, franciscanos, cônegos regulares do Latrão e
dominicanos a trabalharem intensamente para extirpar os erros luteranos.
Que o perigo
era real na própria cidade de Roma, ficou notório em 1559 quando um grupo de
hereges maltratou o inquisidor Sacote e tentou queimar o mosteiro de Santa
Maria sopra Minerva, onde estavam os arquivos da Inquisição. Os cidadãos
impediram o saque e os mesmos inquisidores pediram e obtiveram o perdão dos
culpados.
A Inquisição
Romano-Italiana devia funcionar principalmente nos séculos XVI e XVII. Já
tivemos ocasião de observar que em qualquer instituição humana, máxime quando
se estende por diferentes países, não podem faltar abusos. Também na história
da Inquisição apareceram fraquezas e falhas sempre reprovadas por Roma. Sem
dúvida terá sido na própria Roma, na imediata presença dos Papas, onde devemos
procurar a verdadeira índole do tribunal eclesiástico. Consideremos seus
distintivos.
Os fatos históricos
provam que precisamente na Itália o proceder era rigorosamente jurídico,
segundo as normas da eqüidade, excluindo arbitrariedades e processos
precipitados. Não encontramos fanatismo que por vezes maculava a honra do
tribunal eclesiástico. As perseguições de bruxas eram casos raros, da mesma
forma as sentenças capitais.
Na Itália
também se constata, com evidência, que é injusta a acusação de ter sido a
Inquisição um meio compulsório para converter adeptos de crenças diferentes. A
Igreja nunca teria perseguido os hereges se eles se contentassem com guardar
para si suas crenças erradas e viver sua vida individual. Que o motivo das
ações repressivas era a atividade dogmatizante, a propaganda indefessa dos
dissidentes, é convincentemente ilustrado pela atitude tomada em face do
judaísmo.
Em Roma e nos
Estados Pontifícios viviam numerosos judeus. Em nenhuma parte do mundo eles
foram tratados tão humanamente como debaixo do regime suave da tiara. Este
espírito, que reina em toda a Igreja, achou em outros tempos sua expressão
condensada: "É bom viver debaixo do báculo". A Igreja nunca fêz
passos para forçar a conversão dos judeus. Tão pouco, apesar do perigo da
infiltração protestante, eram molestados os adeptos de Lutero e Calvino que
entravam legalmente na Itália. Só eram procurados e perseguidos aqueles que
apostatavam e, por seu exemplo, palavra falada ou escrita, ameaçavam a
perversão dos fiéis. Sirva de exemplo o caso de Giordano Bruno, apóstata não só
da religião cristã, mas de toda fé religiosa, e cujos escritos respiram um ódio
sem limites a Deus, a Jesus Cristo, à Igreja e ao papado. Galileu Galilei não
preocupou a Inquisição, enquanto êle aderia, embora notoriamente, à doutrina de
Copérnico, considerada em Roma como falsa. Mas o tribunal se comoveu e entrou
em ação, quando a atividade propagandista, inconsiderada e apaixonada, do
matemático florentino, parecia tomar o rumo protestante do livre exame da
Bíblia.
Se todos os
tribuna:s do mundo, tanto leigos como eclesiásticos, tivessem usado
a mesma moderação como a Inquisição Romana, inúmeros horrores teriam sido
poupados ao Ocidente. Nem assim o tribunal romano deixa de ser hostilizado. Os
adeptos de Lutero e Calvino nunca perdoarão à Inquisição o ter preservado a
Itália — como também a Espanha e Portugal — da infiltração protestante.
Infelizmente também o erro cometido no processo de Galilei prejudicou a fama da
mesma Inquisição e até de toda a Igreja Católica. (Cfr. Galileu Galilei, Editora
Vozes.)
II. A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
Falando do
tribunal eclesiástico da Inquisição, não podemos passar em silêncio a forma que
êle tomou na Península Ibérica, na Espanha e em Portugal.
Quase todos os
panfletos e outros produtos literários de adversários da Igreja, falando da
Inquisição, só mencionam a modalidade espanhola. No Brasil é mencionada também
a portuguesa, em outros países, porém, muitos leitores se convencem de que só
na Espanha, "o país católico por excelência", ocorreram aqueles
"horrores de crueldade". Falam de masmorras, torturas na calada da
noite, crueldade satânica, fogueiras, extermínio em massa de judeus e mouros.
Seria a manifestação do espírito intolerante da Igreja Católica, de fanatismo
religioso, de premeditada crueldade.
Para esclarecer
ânimos inquietados e refutar luminosamente as acusações aleivosas, nada será
mais próprio do que expor a simples verdade histórica.
ANTECEDENTES
A mal afamada
Inquisição começou no século XV, mas devemos primeiro considerar os
antecedentes que influíram decisivamente nas características especiais da ação
espanhola.
Depois da
invasão dos visigodos e seu estabelecimento na Espanha, veio a conquista
muçulmana que ocupou quase toda a Península. Em muitas regiões asiáticas e
africanas, onde se estendeu e fixou o islamismo, desapareceu o cristianismo. Só
ficaram fiéis uma parte dos egípcios, sírios, armênios e principalmente
espanhóis. O povo resistiu a toda pressão de abraçar as doutrinas do Alcorão.
Nunca se conformou com a sujeição e começou um esforço multissecular de
libertação.
Esta fidelidade
religiosa e mais ainda a invencível tenacidade na luta, em que o povo indomável
conseguiu livrar-se de um opressor poderoso, por própria força, é uma façanha única
na história. Tal luta de sete séculos devia deixar profundos vestígios na
índole e no caráter espanhol. Ficou-lhe impresso, como segunda natureza, um
espírito guerreiro, indômito, pronto para todos os sacrifícios, inclusive o da
vida. Este espírito, que teve sua mais alta expressão na cavalaria espanhola,
acompanhou os conquistadores do novo mundo, e assombrou os povos do Extremo
Oriente, da África e da América. Os latinos da América Central e do Sul
ufanam-se de serem filhos de heróis.
Ao lado da luz
não podem faltar as trevas. A opressão de séculos, junto com os ataques à
religião, tinham ferido o ânimo do povo espanhol. Sobrevivia um profundo
ressentimento e ódio contra os opressores. O espírito guerreiro incluía quase
que necessariamente propensão à crueldade sem escrúpulos, que podia
manifestar-se em violentas insurreições. O povo sofria ao ver em seu meio adeptos
de outras religiões — mouros e também judeus — que continuavam a espalhar suas
crenças, e enriqueciam- à custa dos cristãos. A recordação do glorioso passado
enchia o espanhol de orgulho e altivez, consciente do próprio valor.
Todos estes
traços do caráter espanhol influirão nos acontecimentos que em seguida temos
que considerar.
Seguimos de preferência: 1) Histoire de L´Église, de
Augustin Fliche et Victor Martin, tomo 15: L´Église et la
Renaissance, 1951. 2) Bernardino Llorca: La Inquisición en Espana, 2.ª ed., 1946.
Pelo fim do
século XV a luta multissecular contra os mouros chegava a seu fim. Só lhes
restava como último reduto, o reino de Granada. O resto da Península estava
livre e repartido entre vários reinos. No Oeste estava Portugal, independente.
Aragão era governado pelo rei Fernando, o Católico. Em Castela reinava Isabel,
a Católica. Pela união matrimonial os dois reis católicos prepararam a união política
dos dois reinos e de toda a Espanha.
FUNDAÇÃO DA NOVA INQUISIÇÃO
Desde o fim do
século XIV existia, principalmente em Castela, a questão dos judeus. Várias
vezes o povo foi possuído de um verdadeiro furor anti-semítico e cometeu
grandes massacres. As razões deste ódio eram as comuns: as riquezas dos judeus,
adquiridas em parte pela usura à custa dos cristãos; eram também acusados de
crimes e sacrilégios.
Por medo das
violências muitos judeus se convertiam. Estes "novos cristãos" eram
suspeitos. Sua conversão freqüentes vezes não fora sincera e eles eram ativos
em fazer proselitismo, com grande prejuízo da religião cristã.
Havia portanto
cripto-judeus, até entre o clero, e muitos outros judeus francamente fiéis às
suas crenças. Todos contrariavam a política de unificação dos reis católicos,
que não podiam conceber unidade política sem unidade da fé. estes motivos — paz
entre o povo, união política e religiosa — induziram os reis católicos a
planejar a fundação da Inquisição em Castela. Mas o novo órgão judiciário não
devia derrogar os poderes reais. Pediram pois ao Papa Sixto IV a
fundação de uma nova Inquisição em Castela, em que o próprio rei nomeasse os
inquisidores.
É o erro
dramático de Sixto IV de não ter reconhecido o alcance do pedido real. Com a
concessão que fêz em 1-11-1478, anuindo ao pedido, foi dado um passo de
conseqüências imprevisíveis.
Aos 27-9-1480
os reis nomearam dois inquisidores que se estabeleceram em Sevilha e assim
começou a nova Inquisição, conhecida na história simplesmente como a
"Inquisição Espanhola" e que tanta celeuma devia provocar. O
prototribunal começou a proceder arbitrariamente, sem ação judiciária, fêz
tantas prisões e confiscações, praticou atos tão violentos de torturas que
motivou protestos por parte de Sixto IV. Consciente do seu erro o Papa tentou
voltar atrás.
Começou uma
luta encarniçada entre o Papa e o rei Fernando. Abusivamente o rei já tinha
estendido a ação de sua nova Inquisição ao reino de Aragão. Nem se observavam
as disposições que garantiam justiça no procedimento.
Aos 18-4-1482,
o Papa enviou à Espanha uma nova bula. Nomeou por própria autoridade oito
inquisidores em Castela. Dispôs que os inquisidores não pudessem proceder senão
em comum e de acordo com o bispo local; os nomes das testemunhas e suas
declarações e todo o processo deviam ser comunicados aos acusados; quando os
réus apelavam a Roma, não se devia opor dificuldade alguma, e toda a
documentação devia ser enviada à Cúria Romana. Finalmente o Papa subtraiu
"de fato" os delinqüentes ao tribunal inquisitório, concedendo a
todos os ordinários (bispos), vigários gerais e inquisidores a faculdade de
absolver todos os conversos judeus que, contritos e arrependidos, confessassem suas
culpas. Era um verdadeiro indulto geral e amplíssimo , perdão.
Por seu lado o
rei, vendo seus planos diretamente contrariados, e receando pela unificação
nacional, mostrou-se ofendido e descortês. Chegou a ameaçar desobediência
formal, no caso de as disposições romanas lhe parecerem inoportunas e
perigosas. Pastor, que revolveu os arquivos do Vaticano, diz que o rei Fernando
rompeu realmente as relações com Roma e ameaçou o Papa com a convocação de um Concílio
cismático.
Receando uma
ruptura definitiva, Sixto IV tomou a retroceder.
Restituiu completamente os direitos concedidos sobre a Inquisição, quando
também a rainha se queixou sentida de o Papa ter acolhido calúnias que
maculavam a honra dos soberanos espanhóis e pediu para a Inquisição "a
independência" que lhe era necessária. Mas esta independência que a rainha
achava necessária, significava independência do Papa e poder discricionário do
rei.
O Papa
receou ruptura. Este fato exige comentário. Só o historiador pode avaliar todos
os problemas com que os Papas se debatiam, tanto no governo interno da Igreja,
como nas relações com os soberanos. Da boa vontade destes últimos dependia a
conservação e progresso da religião. Lembremos só uma circunstância. Os
muçulmanos, repelidos da Espanha, irromperam na Europa pelos Bálcãs. Estava
ameaçada toda a civilização ocidental. Os Papas têm o merecimento imortal de
ter preservado a Europa da barbárie. Ainda hoje nós nos beneficiamos da ação
salvadora dos Papas. Eles não deixavam de admoestar os príncipes a renunciar às
suas dissensões e unir suas forças contra o inimigo comum. Para garantir o
apoio dos príncipes os Papas deviam evitar de os indispor. Uma ruptura,
finalmente, teria efeitos desastrosos, tiraria toda esperança de auxílio além
de criar um novo inimigo e a ruína da fé no pais separado. Cinqüenta anos mais
tarde a ruptura com Henrique VIII da Inglaterra devia
arrancar aquele pais ao seio da Igreja.
O Papa
Sixto IV viu-se na necessidade de permitir o mal menor
para evitar o maior. A conseqüência foi uma diminuição da autoridade papal e
aumento do poder real. Toda a história eclesiástica está repleta de tais
usurpações do poder secular sobre os direitos da Igreja.
Estão
pois longe da verdade aqueles que acusam Sixto IV e em geral o papado, de se ter mostrado indiferente em face dos abusos
cometidos na Espanha. Os Papas estavam sempre prontos para levantar a voz a
favor dos oprimidos, mas deviam ser muitas vezes testemunhas caladas, sabendo
que falar era inútil ou até nocivo.
Para garantir a
"independência" da Inquisição, a rainha Isabel pedira também uma
corte inquisitorial suprema em Espanha, que recebesse as apelações contra as
sentenças dos tribunais inferiores. As ameaças de D. Fernando devem ter impressionado
profundamente ao Papa Sixto IV, por que
êle fêz também esta enorme concessão (23-2-1483). Cortados assim
os recursos à Santa Sé, o Papa perdeu praticamente a influência sobre a
Inquisição Espanhola.
No mesmo ano o
Papa sancionou a designação, pelo rei, de um inquisidor geral. O escolhido era
Frei Tomás de Torquemada.
Os reis
católicos tinham alcançado o que desejavam. Empenharam-se em organizar a nova
instituição, trabalho que foi realizado por Torquemada. Não se pode negar que
este homem enérgico teve qualidades eminentes, mas sua severidade valeu-lhe uma
fama exagerada de fanático, sem consciência nem entranhas.
Nova bula de
17-10-1483, estendeu a nova Inquisição para o Aragão, com o que desapareceu ali
a anterior Inquisição Medieval.
Assim terminou
a fase inicial da Inquisição Espanhola. O Papa Sixto IV não se conformou com sua
perda de influência. Não podia invalidar os fatos consumados. Mas para aliviar,
na medida do possível, a sorte dos conversos e hereges, mandou aos bispos
admitir à reconciliação todos os sujeitos que, arrependidos, a pedissem, também
aqueles que estavam submetidos à ação judiciária da Inquisição. Depois de
vários anos de incerteza esta determinação de Sixto IV foi, no essencial, definitivamente
aprovada e ratificada por Alexandre VI aos 12-8-1493.
EXPULSÃO DOS JUDEUS E MOURISCOS.
Ao lado dos
conversos, havia na Espanha uma minoria importante de judeus não convertidos,
cerca de 160.000 (Llorca fala de 200.000), entre talvez cinco milhões de
habitantes. Sua presença era incompatível com os princípios de união política e
religiosa dos soberanos espanhóis, que resolveram tomar medidas extremas.
Imitando a Inglaterra (1290) e a França (1306), os reis baixaram, em 1492, um
decreto que expulsava todos os judeus de Castela e Aragão. O ato inumano só
concedia o prazo de três meses.
Começou então
um triste êxodo de infelizes, na maior parte espoliados de todos os bens que
não podiam vender ou levar consigo. Certo número emigrou para a França, de onde
se espalhou pela Europa, procurando principalmente os Bálcãs. Certo número
passou para a África do Norte. A maior parte, cerca de 120.000, tomou a
resolução infeliz de procurar Portugal. Abaixo teremos que falar de sua trágica
sorte.
O mesmo ano de
1492, que viu a expulsão dos judeus, trouxe também um acontecimento faustoso
para a Espanha. Depois de uma guerra de 10 anos, caiu Granada e com ela o
último reino mourisco na Península. Mas o feliz sucesso devia dar aos reis
católicos novo ensejo de cobrir seus nomes de desonra.
O novo
arcebispo de Granada, Frei Fernando de Talavera, entregou-se com abnegação à
evangelização dos muçulmanos. Já de idade avançada, aprendeu a língua árabe,
fêz imprimir manuais na mesma língua para uso dos clérigos, empregou processos
catequéticos inéditos. Muitos se converteram. As conversões eram livres e
sinceras.
Mas o método
era lento, exigindo paciência, e esta faltava aos reis. Ximénez de Cisneros,
conselheiro e favorito dos reis, entrou em ação. Suas medidas compulsórias e
sacrílegas, aos olhos dos muçulmanos, provocaram uma insurreição (1500), e esta
bastou como pretexto para faltar às promessas solenes dadas por ocasião da
capitulação de Granada. Aos mouros fora garantida a propriedade dos seus bens e
o livre exercício de sua religião. Em fevereiro de 1502, uma pragmática real só
deixava aos mouros escolha entre a conversão e o exílio.
Entre os muitos
que então aceitaram o batismo originou-se um cripto-islamismo, paralelo ao
cripto-judaísmo de Castela. Os novos cristãos chamados "mouriscos"
pareciam tão perigosos que a Inquisição começou suas atividades contra eles.
Por maior infelicidade o inquisidor designado, Diego Rodríguez de Lucero, era
um fanático que até intentou um processo contra o nobre arcebispo Talavera, por
ser condescendente demais com os mouriscos. Seus excessos foram tais que
provocaram uma insurreição dos aristocratas. Finalmente foi destituído do seu
encargo, processado e encarcerado.
Em fé da verdade
devemos defender os Papas e a Igreja e até a própria Inquisição da aleivosa
acusação de terem provocado ou só colaborado na conversão forçada dos judeus e
mouros e na sua cruel expulsão. Foram atos despóticos dos reis, consumados em
oposição às admoestações de homens sensatos, principalmente dos prelados eclesiásticos.
Acabamos de
esboçar os inícios da Inquisição Espanhola. Abaixo consideraremos seu modo de
proceder. Ela continuou a funcionar nos séculos seguintes e mostrou mais
vitalidade do que em outros países. Ainda a encontramos no século XVIII, tendo
contudo perdido muito da sua importância.
CARÁTER DA INQUISIÇÃO ESPANHOLA.
Os
historiadores discordam entre si se a Inquisição Espanhola era uma instituição
eclesiástica ou secular. A Histoire de L’Église responde: "Era uma
instituição eclesiástica, mas ao serviço de um Estado que queria êle mesmo
arvorar-se em Igreja".
A mais grave
acusação que se pode levantar contra a Inquisição Espanhola é sua dependência
do poder secular. Ela lutou freqüentemente ao lado dos reis contra o que se
chamava pretensões de Roma e do Papa. Esta oposição já começou entre os
primeiros inquisidores e os Papas Sixto IV e Inocêncio VIII. Mais
tarde ocorreu a causa tristemente célebre do arcebispo Bartolomeu de Carranza,
que foi uma luta continuada entre os Papas e os inquisidores apoiados pelos
reis espanhóis. A Inquisição foi também um instrumento para dificultar o
governo papal na Espanha, pondo dificuldades à aceitação das bulas pontifícias.
Freqüentes vezes, e ainda em oposição ao Romano Pontífice, a Inquisição foi um
instrumento político, em vez de ser exclusivamente um tribunal de fé.
Principalmente depois do advento dos Bourbons (1701) a Inquisição foi degradada
em muitos casos a um instrumento dócil da coroa e dos ministros.
"O rei
tinha assim em mão um tribunal, a que não podia escapar nenhum arcebispo",
declara — segundo Llorca, com exageração — o historiador Ranke, e o mesmo
continua: "as confiscações, cujas vantagens eram exclusivamente para
el-rei formavam uma espécie de entrada regular para a câmara real".
Siga um exemplo
para ilustrar o espírito de independência que animava aos inquisidores apoiados
pelo rei. Em 1586 a Inquisição Espanhola, debaixo do inquisidor geral Cardeal
Quiroga, encarcerou quatro jesuítas. Logo a seguir confiscou todas as cópias de
bulas papais relativas à Companhia de Jesus, como também as copias das suas
Constituições, aprovadas pela Santa Sé. Um inquisidor deu um parecer sobre
estes escritos, em que acha "manifestas heresias". Portanto o próprio
Papa era acusado de heresia!
Quando a
notícia do agravo à dignidade da Santa Sé chegou a Roma, o Papa Sixto V ficou
profundamente indignado. Exigiu imediatamente a restituição das bulas
confiscadas. Só uma segunda ordem ao Cardeal Quiroga, acompanhada da ameaça de
perder a púrpura, surtiu efeito. Sixto V exigiu também a entrega das atas dos
processos contra os quatro jesuítas. A Inquisição se julgou suficientemente
independente do Papa, para lhe negar o cumprimento da ordem. Finalmente depois
de dois anos de prisão os jesuítas foram absolvidos.
Pouco depois as
autoridades espanholas acharam por bem submeter a Ordem da Companhia de Jesus a
uma visitação. O visitador seria o prelado Jerônimo Manrique. O Papa, inteirado
do plano, proibiu a visitação, porque "um prelado, que era filho natural,
e tivera na juventude três filhos naturais, não podia ser instrumento apto para
a reforma de uma ordem religiosa" (Ludwig v. Pastor, Geschichte der Päpste,
X). O incidente mostra o quilate das pessoas que as autoridades espanholas
escolhiam para fins eclesiásticos.
Além de ilustrar
a índole da Inquisição espanhola, o episódio relatado responde à afirmação de
terem sido os jesuítas os detentores da Inquisição Espanhola e Portuguesa, como
afiançam panfletos publicados em terras brasileiras. A Inquisição já existia
antes de ser fundada a Companhia de Jesus, e seria difícil encontrar algum
jesuíta investido do cargo de inquisidor. Antes, como acabamos de expor,
deve-se considerar os jesuítas como vítimas da Inquisição.
A justiça exige
que, depois de ter considerado os aspectos negativos da Inquisição Espanhola,
procuremos também os aspectos positivos que falam a seu favor. Quando
resolvemos estudar a fundo a história da Inquisição, estávamos prevenidos em
particular contra a modalidade espanhola, alvo de tantas acusações, pensando encontrar
infindos abusos e horrores. Em verdade estávamos tão impressionados com a
fúria, tanto em freqüência como em crueldade, das torturas e queimadas
praticadas em outros países, principalmente contra as bruxas, que sentimos um
alívio inesperado, lendo os relatos sobre o procedimento normal da Inquisição
Espanhola. Passados os primeiros anos da fundação, o tribunal procedia segundo
estatutos rigorosos que exigiam imparcialidade e justiça.
PROCEDIMENTO DA INQUISIÇÃO ESPANHOLA.
Os abusos acima
relatados desacreditaram a Inquisição Espanhola mais no próprio campo católico,
do que nas rodas anticlericais, que antes aplaudiam a qualquer oposição feita à
Sé Apostólica. A orientação política menos interessa os adversários, suas
acusações visam o próprio funcionamento do tribunal.
Aqui não
precisamos repetir o que na primeira parte deste estudo dissemos sobre o
emprego geral da tortura e da fogueira na antigüidade e Idade Média. Mas
devemos passar em revista o que em particular se assaca aos métodos espanhóis,
considerados como os mais desumanos. Seguimos aqui a Bernardino Llorca que
estudou a fundo a questão e traz numerosos pormenores.
ÉDITO DE FÉ. No essencial o procedimento dos inquisidores era o
mesmo como na Inquisição Medieval. Quando se julgava necessário proceder em
alguma região, era publicado o "Édito de Fé", anunciando a vinda do
tribunal e exigindo a denúncia dos hereges.
Em seguida
anunciava-se também o "Tempo de Graça" de trinta ou quarenta dias, em
que todos os culpados podiam apresentar-se, abjurar seus erros e ser absolvidos
com penas levíssimas.
DENÚNCIAS. Quanto às denúncias, as leis inquisitoriais
exigiam suma cautela. Por regra geral eram indispensáveis pelo menos três
denúncias claras e dignas de fé. Em muitos casos os inquisidores nem procediam
após ter recebido cinco ou até dez denúncias.
Llorente
(espanhol, fugiu com a retirada dos franceses da Espanha em 1813; influiu
eficazmente em toda literatura referente à Inquisição Espanhola; dos 200.000
judeus, exilados pelos reis católicos, conseguiu fazer 800.000) afirma que:
"se a Inquisição não tivesse aceito as denúncias anônimas e se tivesse
ameaçado de penas severíssimas os falsos caluniadores não haveria a centésima
parte dos processos".
Para esta
gravíssima acusação o autor não traz a menor prova. Ao
contrário, o protestante E. Schäfer (Beiträge zur Geschichte des spanischen
Protestantismus und der Inquisition im 16. Jahrhundert) que se distinguiu por sua
objetividade, depois de ter feito investigações conscienciosas, constata que
"as delações anônimas não tiveram influxo algum no aumento dos processos.
Em todas as atas que correspondem aos protestantes espanhóis, apenas se
encontra um caso de denúncia anônima". Também Llorca não encontrou em
todas as atas originais que examinou nenhuma acusação anônima.
E. Schäfer
constata também que ódio ou inimizade desempenhavam um papel muito reduzido nas
denúncias. Os acusados tinham interesse em provar o ódio pessoal dos
acusadores, mas em pouquíssimos casos é que o conseguiram.
Contra os
falsos acusadores existiam realmente ameaças severas e, caso dado, eram postas
em execução.
PRISÃO. Quando havia denúncias fidedignas, o denunciado
era citado e interrogado. Também podia ser posto em prisão preventiva
("prisão secreta"). Esta medida porém só se tomava por causa muito
grave, por certeza ou quase certeza da culpabilidade; proceder cauteloso que
favoravelmente distinguia o tribunal eclesiástico dos civis, que prendiam os
suspeitos com grande facilidade. Sobre esta prisão foram publicadas as coisas
mais exorbitantes: enxovias miseráveis, escuras, úmidas, mal-cheirosas,
alimentação paupérrima, consistente só em pão e água, sem os vestidos
necessários, sem ocupação alguma e sem livros. O protestante Schäfer, não
suspeito da parcialidade, evoca aquela prisão sinistra e contesta: "Os
cárceres secretos da Inquisição pertenciam aos melhor organizados do seu tempo,
enquanto as prisões perpétuas (que abaixo mencionaremos) apenas merecem o nome
de cárceres... eram sem dúvida locais suficientemente folgados, limpos, providos
de luz suficiente para ler e escrever. Os presos deviam trazer uma cama e seus
próprios vestidos. .. Quanto à comida o inquisidor de Valladolid enumera outras
cousas além de pão e água, como carne, vinho e frutas. Também o isolamento não
era tal como é descrito, nem faltava ocasião para entretenimento.
PRIMEIRAS
AUDIÊNCIAS. Montana (citado por Llorca; copiado e seguido por muitos autores)
afirma que os detidos esperavam semanas ou até meses antes de serem chamados à
primeira audiência. A verdade é que havia prescrição de citar o acusado dentro
dos oito dias seguintes à detenção.
Para fazer
devidamente o trabalho delicado dos interrogatórios, existia o célebre
"Diretório".
ACUSAÇÃO E PRIMEIRA DEFESA. Terminadas as primeiras
audiências, o fiscal formulava a acusação que era comunicada ao réu para este
preparar sua defesa. Neste trabalho o acusado não estava confinado a seus
próprios recursos, geralmente muito escassos. Êle recebia a ajuda de
"advogado" ou "letrado", ou até de dois deles. Também podia
apresentar testemunhas de abono. Feita a defesa do réu, sem êle ter provado sua
inocência, o processo devia continuar.
PROVA E SEGUNDA DEFESA. Procurava-se a prova das
testemunhas. Se o réu confessava a sua culpa antes de ela ser provada, êle era
tratado com especial consideração. Porém se fazia esta confissão só depois de
se terem apresentado provas convincentes, empregava-se muito maior rigor.
Todas as
testemunhas já ouvidas eram citadas pela segunda vez, para se ratificarem.
Todos os testemunhos dignos de fé eram comunicados ao réu, que recebia uma
cópia, para estudá-los detidamente com seu advogado e redigir o segundo escrito
de defesa. Também podia propor novas testemunhas de descargo, que o tribunal
chamava da mesma maneira como todas as mais. E. Schäfer chega à conclusão:
"A extraordinária abundância de peças originais demonstra que a Inquisição
realmente se esmerou por fazer justiça ao acusado".
Compreende-se
que com tantas cautelas a marcha dos processos era bastante lenta. Todo o
trabalho do processo e o chamamento de tantas testemunhas, que por vezes
moravam distante, exigiam muito tempo. Contudo a prisão preventiva raras vezes
protraía-se além de alguns meses, no que também a Inquisição leva vantagem até
aos tribunais atuais, onde a prisão preventiva chega a durar anos.
TORTURA. Depois da prova contra o acusado e sua segunda
defesa, nem sempre a questão da culpabilidade ou inocência estava resolvida. Se
restava alguma dúvida, os inquisidores soíam recorrer aos "peritos",
qualificadores do Santo Ofício, para eles decidirem do assunto. O resultado
podia ser muito diverso. Na maior parte dos casos dava-se uma solução
definitiva.
Mas podia
acontecer que os testemunhos contra o réu eram bastante convincentes, mas não
suficientes para deduzir sua culpabilidade. Em câmbio êle não conseguira provar
sua inocência. Então os inquisidores recorriam geralmente à tortura com o fim
de achar por este meia a verdade.
Siga um resumo
das exposições de B. Llorca: Sem dúvida foi um procedimento cruel e constitui
um progresso notável dos tempos subseqüentes ter compreendido a inutilidade do
processo e tê-lo abolido. Todos os tribunais de todos os Estados empregavam a
tortura, herança do direito romano. A Inquisição Medieval não a empregou no comêço.
Foi introduzida por Inocêncio IV em 1252 e todo o mundo a
recebeu como a coisa mais natural. A Inquisição Espanhola foi o tribunal que
usou a tortura com mais parcimônia e cujos métodos de atormentar eram
evidentemente mais suaves e estavam rodeados de mais garantias de eqüidade e justiça.
— Esta afirmação Llorca a prova por fatos históricos, que aqui não referimos.
O historiador
E. Schäfer, embora protestante, levanta-se contra os caluniadores, expondo a
verdade: "que a tortura nunca era empregada para arrancar confissões de
crimes que não se tinham cometido... Em realidade a execução da tortura era
muito menos cruel e arbitrária do que estamos acostumados a imaginá-lo".
A tortura não
se empregava em todos os processos... eram muito poucos os em que se fazia uso
dela. Só podia ser empregada em casos bem determinados.
Nunca se
empregou o fogo. Procurava-se provocar dor aguda, mas sem causar feridas, nem
qualquer gênero de dano corporal. Um inquisidor vigilante assistia à ação e a
suspendia imediatamente, quando se notava debilidade que, pudesse pôr a vida em
perigo. A duração não excedia uma hora e por regra geral o tormento se dava uma
vez só para a mesma causa. É outra vez calúnia que se tenham inventado
artificialmente novos aspectos da acusação para repetir a tortura.
A realidade difere
imensamente das invenções maliciosas. A história nos ensina que a tortura inquisitorial
era menos moderada em outros países. Se esta diferença tem sua causa nas várias
índoles raciais, o espanhol se destaca vantajosamente pelo caráter de outras
nações européias.
Depois da
segunda defesa e da tortura — quando era aplicada — estava normalmente
terminado o processo. Todo o procedimento era guiado por normas diferentes das
que inspiravam os tribunais seculares. Enquanto estes procuravam descobrir o
crime para castigá-lo, os tribunais da Inquisição procuravam induzir o réu a se
converter e ser libertado das penas da lei. Aos acusados, portanto, sempre
brilhava a luz da esperança e movidos por conselhos, instruções e exortações benévolas, muitíssimos se convertiam,
sendo absolvidos e reintegrados.
SENTENÇA FINAL. Terminado finalmente o processo, reunia-se
em plenário todo o tribunal ao qual juntava o ordinário (bispo) e os
consultores do Santo Ofício. Todos tinham direito ao voto que davam por
escrito.
Apresentavam-se
vários casos:
1. Provada a
inocência do acusado, era êle completamente absolvido.
2. Não sendo
provada a acusação, mas havendo alguma culpa no réu, este era absolvido, com a
imposição de alguma penitência, maior ou menor segundo o caso.
Todos estes não
apareciam no auto-de-fé.
3. Se a
suspeita era maior ou consistente, porém sem prova completa, havia lugar à
abjuração e o réu aparecia no auto-de-fé, mas como reconciliado. Quando não
havia auto-de-fé, a sentença era lida publicamente nas salas de audiência.
4. Quando a
culpa era provada, podiam ocorrer dois casos: no primeiro, o réu não esperava
pela condenação, mas, reconhecendo sua culpa, pedia perdão. Neste caso era
admitido à reconciliação, mas eram-lhe impostas penas gravíssimas. No segundo
caso o réu se mantinha obstinado e era relaxado ao braço secular.
AS PENAS. Não insistimos aqui nas penas leves como a
imposição de certas orações, a abjuração, açoites "que não eram muito
duros", como confessa o próprio historiador E. Schäfer.
A pena mais grave
era o relaxamento ao braço secular, que invariavelmente executava o réu pela
fogueira, mas nem sempre vivo.
Não repetiremos
aqui o que na primeira parte deste estudo expusemos sobre o desenvolvimento
histórico desta pena e a relutância inicial por parte da Igreja. É fato
histórico que as autoridades eclesiásticas acabaram por aceitar a pena do fogo
introduzida pelo poder civil e ao depois acostumados, todos a achavam proceder
natural e legítimo. Mas devemos fazer graves reservas, às quais nos conduz o procedimento
nada oculto e claramente provado pelos arquivos da Inquisição Espanhola.
Em primeiro
lugar o número de relaxados estava longe de ser tão enorme como se há
divulgado. Se o mal intencionado Llorente eleva o número a 30.000, outros dão
sem hesitar o dobro e até mais de 100.000 executados pelo horrendo suplício.
Tais números não seriam extraordinários num tempo, em que, como vimos, a pena
de morte se infligia com tanta facilidade que já um perjúrio, adultério ou um
simples furto a acarretava. Em consideração dos costumes vigentes, a Inquisição
mostrava grande moderação. Llorca admite que de 1483 até 1834, portanto no
espaço de mais de três séculos, o número de relaxados deva ser avaliado entre
dez e quinze mil. Admitindo o número mais elevado, achamos uma média anual de
43 relaxados, menos de meia dúzia por corte individual. Em verdade o número era
mais elevado no princípio e menor no segundo e terceiro século mas
espetacularmente baixo em comparação com o que sabemos das cortes seculares.
Lembremos só os 20.000 sentenciados à morte pelo único juiz de Dresden.
Comparemos também com a sorte infeliz das 100.000 bruxas, todas queimadas vivas
em terras germânicas — só 12 na Espanha — enquanto dos relaxados pela
Inquisição Espanhola, só poucos eram queimados vivos.
Na realidade a
Inquisição tinha achado mais um expediente para aliviar a sorte dos
sentenciados. Na noite que precedia a execução, cada condenado era assistido
por dois capelães que o preparavam para a morte e lhe recomendavam a conversão.
Quando nesta ocasião, ou já antes, êle dava algum sinal de arrependimento,
talvez só fingido, era estrangulado na execução e só o cadáver queimado. O
número de queimados vivos era na realidade extremamente reduzido.
Assim E. Schäfer,
que, como protestante se interessou pela sorte dos seus correligionários,
constatou que dos 220 protestantes, condenados pela Inquisição Espanhola,
apenas uma dúzia morreu pelas chamas. Confiramos estes 220 protestantes com os
milhares de católicos sentenciados na Inglaterra; e estes não eram inovadores,
mas sua única culpa consistia em ficarem fiéis à antiga religião da qual
apostataram os seus perseguidores.
Uma triste
conseqüência do relaxamento ao braço secular e só inteligível pelo espírito do
tempo, era a confiscação de todos os bens do justiçado, a favor do fisco real,
e a inabilitação a cargos públicos dos seus filhos e netos em linha masculina.
O número de
condenados à morte era portanto bastante reduzido. De longe a maior parte dos
culpados arrependia-se e era admitida à reconciliação, o que era o fim
principal da Inquisição.
Certo número de
réus era também condenado às galeras por alguns anos.
O CÁRCERE PERPÉTUO. Já tivemos ocasião de falar da prisão
preventiva. Desta se deve distinguir a prisão penal a que eram condenados muitos
dos réus convictos. Aqueles que ficavam obstinados durante todo o processo, e
só prometiam emenda depois de provada a sua culpa, eram reconciliados mas
sujeitos a graves penas, geralmente à prisão.
O cárcere penal
era chamado perpétuo, em oposição à prisão preventiva. Distinguia-se cárcere
perpétuo para toda a vida e cárcere perpétuo para oito ou mais anos.
Os adversários
da Inquisição Espanhola esmeraram-se em inventar descrições horripilantes, mas
são em absoluto inverídicas as descrições sinistras de calabouços e masmorras
escuras e impenetráveis. Llorca refere uma estampa tendenciosa em que aparece
uma mulher no momento de ser encerrada com pedras e cal dentro de quatro
paredes. O mesmo autor acrescenta: jamais a Inquisição Espanhola empregou este
castigo, embora seja verdade que outros tribunais o usaram.
O cárcere penal
da Inquisição era uma vila de pequenas casas com capela. Também havia edifícios
maiores com habitações pequenas, apartamentos como hoje diríamos. As atas
referem que as mulheres cozinhavam. Também os presos não estavam
incomunicáveis. Assim "Daniel de Cuadra, lavrador, não se acha presente à
chamada, porque todas as manhãs sai de madrugada ao campo, para ganhar seu
sustento, e portanto o cárcere é para êle uma espécie de local para dormir"
(E. Schäfer),. O mesmo autor continua: "Os casados parece não estavam
separados, mas viviam juntos. A Instrução de 1561 ordena expressamente ao
diretor (alcaide) do cárcere perpétuo de prover os presos com instrumentos e
trabalho para que possam ganhar sua vida e ajudar-se em sua miséria. Atendia-se
a queixas dos detidos. Havia bastante liberdade de movimento e ação". Já
vimos que o mesmo E. Schäfer apenas reconhece ao cárcere perpétuo a
característica de prisão.
AUTO-DE-FÉ. A última fase dos processos inquisitoriais eram os
autos da fé (atos de fé). Também este ato não era o espetáculo repelente,
inventado maliciosamente pelos adversários da Igreja Católica, em que
magistrados e povo se deleitavam em contemplar as multidões de infelizes
condenados à morte, retorcendo-se nas chamas.
Na realidade os
autos-de-fé, eram grandes manifestações de fé católica. Na praça mais
importante da povoação levantavam-se grandes tribunais, onde tomavam lugar os
convidados de honra, inclusive por vezes membros da família real. Em volta
apinhava-se o povo.
O ato tinha
começo com a chegada processional dos delinqüentes seguidos pelo corpo dos
inquisidores. Chegados ao lugar, procedia-se ao "auto-de-fé" pelo
juramento solene, de todos os assistentes, de fidelidade à fé católica e ao
Santo Ofício. Os membros da família real, se os havia, adiantavam-se primeiro
para prestar o juramento ritual. "Era o ato oficial de fé, feito por um Estado,
pela boca de seus representantes — reis, magistrados, povo entusiasmado — que
se sentem na posse da verdade. É impossível negar-lhe o atrativo do grande e
sublime que imprime caráter a um povo" (Llorca).
A este ato de
fé seguia o sermão acomodado à circunstância, para o qual se convidava um dos
grandes oradores, tão comuns naqueles tempos de fé e religiosidade.
Depois do
sermão começava a leitura das sentenças e o ato terminava com a reconciliação
ou degradação dos condenados. Finalmente dispersava-se a reunião.
Nada portanto
de fogueiras ou espetáculos sangrentos.
Os sentenciados
à morte, sempre pouco numerosos, eram levados fora da cidade, onde se fazia a
execução. Os penitentes da última hora eram primeiro estrangulados e os corpos
lançados ao fogo, onde morriam também os impenitentes cujo número, como vimos,
era muito reduzido.
Não duvidamos que
este espetáculo da execução atraía também curiosos, e que se despertavam
instintos de crueldade — aliás nunca alheios às massas, nem ao homem moderno.
Ainda em nossos dias aconteceu, numa grande metrópole do mundo civilizado, que
o público gritou freneticamente contra o lutador de boxe que estava sucumbindo
aos golpes do seu adversário. No dia seguinte assistiram a seu enterro.
Este
procedimento da Inquisição de afastar o espetáculo das penas finais do povo
reunido ao auto-de-fé, é muito diferente das práticas observadas pelo poder
civil nas execuções dos criminosos do direito comum ou das bruxas. Este
procurava a maior publicidade para mais impressionar o povo, incutir terror
salutar e intimidar os malfeitores ocultos. Para este fim o poder público tinha
reassumido na Idade Média a pena da fogueira e acrescentava outros suplícios
que a pena se nega a descrever.
JULGAMENTO SOBRE A INQUISIÇÃO ESPANHOLA.
A exposição
histórica da Inquisição Espanhola nos revelou seu maior defeito, sua
dependência dos reis que dela abusavam freqüentemente para fins alheios à
religião e à finalidade da instituição. Também o Santo Ofício laborava dos
defeitos gerais, de todos os tribunais daquele tempo, principalmente no uso tão
pouco recomendável e desumano da tortura e das execuções pelo fogo a cargo do
braço secular.
Mas também o
relato dos fatos históricos nos provou que é completamente imerecida a má fama
do mesmo tribunal quanto ao proceder contra os suspeitos de heresia. O proceder
era rigorosamente regulamentado, para excluir qualquer arbitrariedade e
injustiça. Os próprias inquisidores, embora dependentes do rei em questões
políticas, mostravam grande senso de justiça nos processos.
O protestante
E. Schäfer, várias vezes citado como testemunha insuspeita e sincera, e que viu
milhares de atas originais, declara: "Não se pode desconhecer na
Inquisição espanhola, tanto objetiva como subjetivamente, o esforço em aplicar
um procedimento abertamente justo". Que alguns inquisidores se tenham
deixado levar por paixões pouco nobres, é um fenômeno humano, que não pode ser
imputado ao sistema. Centenas de milhares de atas conservadas provam o
verdadeiro desejo de fazer justiça aos réus.
O tribunal
eclesiástico era incomparavelmente mais moderado e humano do que os tribunais
civis.
A Inquisição
Espanhola teve efeitos muito benéficos. Ela conseguiu manter a unidade da Fé e
afastar da Espanha o temido sincretismo judeu-islamítico-cristão. Ela preservou
a Espanha da alucinação e dos horrores causados pelo medo das bruxas. Grande
mérito teve também pela proibição de livros, prejudiciais à fé e costumes, como
também pelo combate aos falsos místicos ou "alumbrados", criando
assim o ambiente próspero para a sadia literatura ascética e mística dos
séculos XVI e XVII que constitui a inveja do mundo
contemporâneo" (Llorca). A Inquisição não foi, como a denegriram, um
obstáculo, mas sim o fomento da ciência, literatura e cultura.
Com suma
vigilância a Inquisição Espanhola impedia a importação de livros protestantes,
provenientes principalmente dos Países Baixos. Com mão forte atalhou a
propaganda a tal ponto que os pequenos núcleos de protestantismo foram
rapidamente dissolvidos. Por conseqüência o número de sentenças contra
protestantes era mínimo.
Notemos ainda
que os protestantes não podem acusar os governos católicos de intolerantes,
pois foi por influência protestante que nasceu na Alemanha o iníquo princípio
"cujus regio, illius religio".
Em virtude deste princípio, inúmeros homens pacíficos foram expulsos dos seus
lares e da pátria.
Pelo fato de a
Inquisição ter preservado a Península Ibérica da cisão religiosa, ela a salvou
também das guerras religiosas. As longas guerras contra os huguenotes na
França, entre 1562 e 1598, a guerra dos 30 anos na Alemanha, de 1618 a 1648,
ceifaram vítimas às centenas de milhares, nas batalhas e nos inúmeros atos de
violência contra o povo inerme. A Alemanha ficou despovoada, reinava imensa
miséria. Logicamente os denegridores da Inquisição Espanhola devem preferir
todos estes horrores à paz e ordem que reinava na Espanha.
III. A INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Nos países que
não são de língua portuguesa é pouco conhecida a atuação da Inquisição em
Portugal. Aqui não a podemos omitir por ela interessar diretamente o Brasil,
onde também funcionou durante algum tempo. É preciso ainda responder às
calúnias que se propagam no Brasil sobre a Inquisição Portuguesa,
responsabilizando a Igreja Católica de crimes que ela reprovava. Assim
desanuviar-se-á a confusão e ânsia na mente de muitos leitores bem
intencionados.
Pela perseguição
dos judeus e a dominação abusiva do tribunal eclesiástico por parte do poder
civil, Portugal escreveu uma página sombria da sua história. Constatemos porém
desde já, e logo o veremos, que a culpa não recai sobre a Sé Apostólica de Roma
nem no nobre povo lusitano, e só, como na Espanha, sobre alguns personagens
proeminentes.
Seguimos e
resumimos o relato de 200 páginas da História
da Igreja em Portugal, tomo III,
parte II, de Fortunato de Almeida.
A QUESTÃO JUDIA.
A mesma questão
judia que agitara Castela, existia também em Portugal. O povo odiava os judeus
"como gente absorvente que por tradição inveterada abusava das
necessidades alheias, para se enriquecer". Também ofendiam o sentimento do
povo. Profanavam o Santíssimo Sacramento e cometiam outros sacrilégios e
crimes. Certa vez enforcaram uma estátua de Nossa Senhora. O ódio do povo e a
inquietação do governo aumentaram repentinamente quando, em 1492, 120.000
judeus, expulsos da Espanha entraram clandestinamente em Portugal, elevando o
número de 80.000 a 200.000, entre uma população total de um milhão. D. João II os
reduziu à escravidão. El-rei D. Manoel restituiu-lhes a liberdade, mas foi uma
trégua de curta duração.
Em 1496, D.
Manoel negociou seu casamento com a princesa D. Isabel, filha dos reis católicos.
A noiva, talvez por querer imitar seus pais, ou cooperar na sua política,
estabeleceu como condição das núpcias que os judeus fossem expulsos de
Portugal, antes que ela entrasse nesse reino. El-rei apressou-se a satisfazer a
exigência da noiva, e decretou, em dezembro de 1496, que todos os judeus e
mouros forros se retirassem do reino.
Mas quando eles
se reuniram nos portos para serem transportados à África, foram negados os navios
necessários e a expulsão se converteu maliciosamente em perseguição horrorosa.
Quase todos que sobreviveram foram convertidos à força e constituíram em
Portugal os "cristãos novos", no íntimo fiéis à sua antiga fé.
Aumentava
constantemente o ódio do povo contra os judeus — cristãos novos. Em 1506 houve
em Lisboa um massacre que durou três dias, e custou a vida a mais de 1.900
pessoas. A culpa principal tinham alguns frades fanáticos, que depois foram
executados.
UMA LUTA HISTÓRICA.
Em 1531, D.
João III pediu ao Papa a instituição de uma nova Inquisição em Portugal com os
mesmos privilégios como em Castela. El-rei a queria ter em mão e nomear os
inquisidores. O motivo não expresso era a repressão dos judaizantes, mas os
motivos alegados para influir no Papa eram inventados ou dolosamente
deturpados, como a afirmação de que o reino fora invadido pela heresia de
Lutero, o que era redondamente falso. Afirmava-se que os judeus se tinham
apartado dos ritos judaicos, sem a mínima referência à conversão forçada. Aos
17-12-1531, o Papa Clemente VII, que só podia julgar pelas
informações recebidas, nomeou, êle mesmo, Frei Diogo da Silva inquisidor-mor de
Portugal. Aos 7-4-1533 o mesmo Papa, provavelmente melhor informado, concedeu o
perdão geral aos cristãos novos. O rei ficou profundamente desgostado e até
difamou o Papa de ter aceito peitas para conceder o perdão. A difamação
aleivosa foi repetida várias vezes, entretanto cometiam-se bárbaras crueldades
contra os novos cristãos.
Aos 13-10-1534
foi eleito o Papa Paulo III. D. João III aproveitou
da ocasião para ameaçar ruptura com a Santa Sé se o Papa não revogasse as
disposições de Clemente VII. Também Carlos V interveio
a favor de el-rei.
Continuavam as
negociações, conduzidas com paixão por parte do rei. O Papa permanecia
contrário à concessão pedida, receando — como de fato mais tarde devia
acontecer — que as tiranias e crueldades praticadas em Castela se reproduzissem
em Portugal.
A que ponto
chegou a tensão na corte de Lisboa, podemos concluir do fato que um conselheiro
do rei lhe propôs entre vários alvitres o de desobedecer ao Papa, pois "se
o Papa deixava de fazer o que devia, melhor do que Henrique VIII da
Inglaterra, el-rei podia desobedecer".
Este alvitre
era do bispo de Funchal, homem ambicioso e sem escrúpulos, e prova até que
ponto D. João III tinha o clero nas suas mãos.
Em consideração
desta sugestão de rebelião, de outros conselhos apaixonados dados ao rei, da
ameaça de ruptura já pronunciada e do caráter voluntarioso e indomável de D.
João III, concluímos com espanto que era real o perigo de que Portugal e com êle
o Brasil fossem arrancados à Igreja Católica, tornando-se cismáticos, como a
Inglaterra. D. João III deu logo um passo que pode ser interpretado como o
início da ruptura, pedindo ao Papa retirasse o núncio de Lisboa, "pois não
era cá necessário às consciências dos fiéis".
— O Papa não
retirou o núncio.
Paulo III envolvido
em tantos negócios cheios de dificuldades, como as invasões dos turcos,
incremento do protestantismo, questões de um Concílio ecumênico, veria com
prazer um meio de liqüidar as desavenças com o monarca português, mas novas
provocações de Lisboa o fizeram renovar as decisões anteriores (12-10-1535).
A reação não
tardou. Em Lisboa um clérigo do núncio foi preso. O núncio fulminou censuras
contra os juizes do rei, executores da prisão. A luta chegou ao extremo.
Interveio novamente Carlos V e sua pressão sobre o Papa
devia ser decisiva. Com efeito a 23-5-1536, Paulo III concedeu a Inquisição a
Portugal. Nomeou comissários seus os bispos de Coimbra e Lamego, inquisidor-mor
seria o bispo de Ceuta, o quarto inquisidor seria nomeado pelo rei.
O Papa não
concedera tudo. Mas a Inquisição podia funcionar. Se agora o rei tivesse
procedido com moderação, haveria concórdia entre Portugal e a Santa Sé. Mas não
tardaram a vir queixas a Roma: sobre falsificação de disposições papais,
continuação da lei desumana que vedava aos judeus a emigração e privava os
fugitivos de todos os bens. O Papa ameaçou suspender o tribunal até se
esclarecerem as queixas. O resultado foi ao menos moderação no exercício dos
processos por algum tempo. O rei entretanto não se aquietou. Acusou o núncio de
favorecer os cristãos novos por venalidade. Esta reiterada difamação da Santa
Sé e dos seus representantes foi inventada por um rei que procurava atrair com
dádivas" as pessoas que tinham influência em Roma. Continuava a fazer
diligências para obter a "Inquisição livre", livre de Roma, mas
sujeita ao rei, em que este nomearia os inquisidores.
Em 1539, o rei
fêz o ato arbitrário, investindo seu irmão, o infante D. Henrique no cargo de
inquisidor-mor. A nomeação parece encaminhada, em parte, a provocar um conflito
com o núncio, que de fato estalou imediatamente. O Papa não aceitou a nomeação
de D. Henrique. O núncio foi expulso de Portugal. Nas negociações que se
seguiram o embaixador português usou de grosserias com o Sumo Pontífice. Paulo III expediu
uma bula com certas garantias aos acusados. A bula não chegou a ser publicada
porque D. João III logo a impugnou. Carlos V, temendo pela Inquisição
Espanhola, insistia em que a portuguesa fosse severíssima. De modo nenhum D.
João III queria em Portugal núncio que fiscalizasse a ação do tribunal do Santo
Ofício. Impediu a
51
entrada em Portugal do novo
núncio mandado por Paulo III em 1542.
Esta luta
encarniçada, em que a Santa Sé defendeu insistentemente os princípios de
tolerância, continuou e ainda teve seus episódios nos fins do século XVIII. Todavia
a Santa Sé foi obrigada a transigir. Aos 16-7-1541, o Papa conferiu de novo os
poderes da Inquisição ao Infante D. Henrique recomendando-lhe usar do poder
moderadamente e tomando providências para este fim.
Assim pois se
originou a Inquisição Portuguesa, que "envenenou a vida em Portugal até o
tempo de Pombal" (Histoire de L’Église,
XV).
De Roma diziam
os agentes portugueses que mais se não pudera alcançar, por ser corrente na
cúria que era melhor dar a Deus contas de misericórdia que do rigor de justiça
(Almeida).
Este relato,
que é só um resumo das múltiplas polêmicas entre o rei e o Papa, responde
cabalmente a muitas perguntas desorientadas como estas: Por que o Papa não
aprendeu dos abusos cometidos na Espanha? Por que concedeu a Portugal a mesma
Inquisição, porta aberta para tantas injustiças? Por que não protestou contra
os crimes cometidos em nome da justiça? Os fatos relatados bastam para corrigir
as idéias erradas que levam à formulação destas e outras perguntas,
equivalentes e graves e injustas acusações.
Menos ainda que
as origens da Inquisição, pode-se imputar à Santa Sé o desenvolvimento
posterior e arbitrário do tribunal. O absolutismo real, com propósito de
aumentar a autoridade da Inquisição, instrumento útil nas mãos da realeza,
começou a derrogar abusivamente aos direitos dos bispos. A Inquisição
Portuguesa era, como na Espanha, um tribunal entregue a pessoas eclesiásticas,
mas dependentes do Estado, que lhes orientava o modo de proceder. Ainda veremos
num exemplo frisante até que ponto o respeito de Deus, da Santa Sé e da
consciência cristã podia ser desprezado.
JULGAMENTO.
Fortunato de
Almeida conclui que é difícil emitir um juízo seguro sobre alguns aspectos da
Inquisição Portuguesa. Dom João III não fora movido pelo puro zelo do
cristianismo. O motivo de procurar a unidade da fé era sem dúvida político. Sem
escrúpulos êle adotou as mais odiosas e violentas providências contra os judeus,
quando nos Estados Pontifícios eles gozavam
de ampla tolerância. "Era a velha pretensão afirmada em todos os tempos
pelo despotismo do poder secular, de impor a sua autoridade até nas matérias de
natureza espiritual". (Estas palavras foram escritas antes de serem
confirmadas pelas tiranias nazistas e comunistas). Certos procederes de D. João
III assumem caráter doentio pela obstinação implacável. Em Roma acusava-se o
rei de pretender a Inquisição como meio de espoliar os judeus das riquezas que
possuíam. As dificuldades financeiras em que se debatia a administração pública
corroboram a suspeita. Precisava só imitar o confisco dos bens, praticado em
Castela, onde tanto se abusava dele.
Fortunato de
Almeida conseguiu reunir dados estatísticos sobre uma temporada de grande
atividade inquisitorial. A estatística não deixa de ser instrutiva. Damos só os
números totais: de 1684 até 1747, portanto em 63 anos, foram sentenciados em
todo o território português: 4.672 acusados, dos quais só 146 foram relaxados à
justiça secular: 3,1% dos julgados. Em Évora entre 804 réus, nenhum foi
relaxado, o que prova que as sentenças dependiam em larga escala da disposição
dos juízes. Em Lisboa, em certa época, nota-se um máximo de rigor, que só ali
no curto prazo de 17 anos, custou a vida a mais da metade dos condenados.
Naquele tempo de recrudescimento em Lisboa era inquisidor D. Nuno da Cunha
Ataíde, 1706 a 1750, personagem que mais de uma vez revelou zelo indiscreto e
critério estreito. No exercício do ofício inquisitorial mostrou-se moderado
durante 21 anos, condenando 676 réus e relaxando só 18 ao braço secular: 2,7%.
Porém nos 17 anos seguintes, de 547 sentenças, não menos de 84 entregavam os
condenados à morte: 15%. Se do número total de relaxamentos tiramos os condenados
de D. Nuno, evidentemente vítimas de um rigor injusto, o número de relaxados em
Portugal nem chegava a 1,4%.
Estes números
não seriam excessivos, até em países civilizados hodiernos. Em nossos dias os
déspotas modernos nos acostumaram a números diferentes.
Quanto ao
julgamento total da Inquisição Portuguesa deveríamos repetir em parte o que
acima julgamos da Inquisição Espanhola, em particular ela deu ao país e suas
colônias, entre as quais o Brasil, apaziguamento do povo, unidade religiosa e
preservação do protestantismo.
O PERÍODO POMBALINO.
Uma grande
figura, aos olhos de muitos adversários da Igreja Católica, é Sebastião José de
Carvalho, Conde de Oeiras, o famoso Marquês de Pombal. Afirmam ter sido êle
quem primeiro, por princípios liberais, ousou levantar-se contra a dominação
eclesiástica e quebrar o poder tirânico da Inquisição. Para refutar as
diversíssimas acusações basta expor a verdade histórica.
É verdade que
Pombal começou a derrogar os privilégios da Inquisição, mas os motivos foram
exatamente os mesmos que orientaram D. João III na fundação do mesmo
tribunal, este queria ampliar seus direitos, dominando a Inquisição, aquele
queria o mesmo aumento de poder, suprimindo a Inquisição a favor do foro civil.
Que seu proceder não era ditado pelo amor da liberdade nacional e da justiça, é
patente pelo seu modo de governar que o coloca ao lado dos maiores tiranos da
história. Sem nos preocupar com seus desmandos puramente pessoais e políticos,
consideramos aqui só suas relações com os representantes da Igreja.
Já antes de
chegar ao poder, o futuro Marquês de Pombal era antipático a D. João V: "Conheço
cabalmente o espírito turbulento, hipócrita e audacioso de Carvalho..." O
rei negou-se até a morte a confiar um ministério a Sebastião J. de Carvalho. Foi
o fraco D. José I que o chamou e o constituiu ministro.
Em 1754 o Padre
Gabriel Malagrida, S.J. (Cfr. Biografia escrita por Paulo Mury, S.J.) vindo do
Brasil, encontrou o marquês e não o saudou por não o conhecer. Apostrofado pelo
ministro por causa da irreverência, o padre se desculpou com humildade. Em
seguida aproveitou do encontro para avisar reverentemente ao ministro que o Sr.
Mendonça, irmão de Carvalho, granjeara tanto ódio no Maranhão que se devia
prever uma desgraça. Aconselhou tirá-lo dali.
Em conseqüência
deste encontro, que considerou como duplo desaforo, o ministro jurou perder o
atrevido jesuíta. Também o tornava ciumento a celebridade que Malagrida
alcançou na época do terrível terremoto de 1755. Malagrida morrerá e com êle
toda a Companhia de Jesus.
Acompanhemos
primeiro a sorte de Malagrida. Em 1758 houve um atentado contra el-rei D. José I.
Pouco depois o Padre Malagrida foi preso, acusado de cumplicidade no atentado e
encerrado sem julgamento, durante dois anos, nas masmorras subterrâneas.
Entretanto Pombal preparou o tribunal que devia dar aparência legal à sua
vingança. O núncio apostólico foi removido de Portugal, para o ministro ter
mais liberdade de ação. Na Inquisição Pombal removeu os inquisidores que não
lhe agradavam e os substituiu por indivíduos de sua feição. A que ponto êle
dominava o rei, ficou patente pela ousadia de remover o próprio irmão de D.
José I do cargo de inquisidor-geral e substituí-lo por seu próprio irmão Paulo
Carvalho. Também foi removido Frei Francisco de Tomás, O. P., porque declarara
que não concorria para a condenação do desgraçado jesuíta, porque não via prova
alguma dos crimes que lhe increpavam. O velho frade foi desterrado para Angola,
morrendo na viagem.
Finalmente
Malagrida foi citado diante do tribunal. Teve que apresentar-se com a batina
meio apodrecida pelo ar da masmorra. Durante dois anos não lhe tinham concedido
mudar de roupa.
Cumplicidade no
atentado contra el-rei não era da alçada do tribunal eclesiástico, pelo que
Pombal forjou novas acusações apropriadas. Malagrida teria escrito duas obras
de conteúdo ridículo; por exemplo que Santa Ana fizera antes de nascer três
votos: um ao Pai Eterno, outro ao Filho e o terceiro ao Espírito Santo, etc.
Consta que uma destas obras fora escrita por um infame que recebera de Pombal
como recompensa uma pensão de 1:300$000 rs.
Quando mais
tarde Luís XV, rei da França, leu a sentença do Santo Ofício,
exclamou indignado: "Nesse caso também eu devia mandar executar esse
desgraçado louco "des Petites Maisons", que se julga Pai
Eterno!"
Em janeiro de
1761 apareceu a escandalosa sentença que fêz exclamar o próprio Voltaire:
"Ao excesso do ridículo e do absurdo ajunta-se o excesso do horror!"
Malagrida era declarado réu de heresia, de blasfêmia, de falsas profecias e por
tais crimes devia ser degradado das ordens e relaxado ao braço secular. O
tribunal civil julgou reais os "enormes crimes" e lavrou a sentença,
condenando o apóstolo a ser garrotado pela mão do algoz e queimado na praça
pública de Lisboa. A execução foi realizada aos 21-9-1761.
Enquanto
Malagrida penava nas masmorras, desenrolou-se no reino de Portugal e nas suas
colônias outra tragédia ainda mais horrorosa (Cfr. História dos jesuítas no
ministério do Marquês de Pombal, por Cristóvão Teófilo de Murr, 2.ª ed.,
Porto Alegre, 1923). Sem ter a menor prova de culpabilidade, Pombal fêz
arrebanhar todos os jesuítas do Reino e atirá-los às ribas marítimas da Itália,
com sumo desprezo da Santa Sé. Do mesmo modo os jesuítas das colônias foram
apinhados em estreitas embarcações, trazidos para Lisboa e dali levados ao
Estado Pontifício. As indicações dos números variam. Averiguamos as seguintes:
Da história de Murr deduzimos que 220 foram tirados só do Brasil. Pastor (História
dos Papas, XVI, 1) eleva a 1.100 os jesuítas depositados nas praias
pontifícias. Outrossim, segundo Murr, morreram durante a perseguição 700
jesuítas, na maior parte em conseqüência dos maus tratos nas embarcações.
Nas masmorras
de São Julião, o furor incluirá 124 jesuítas, que não foram deportados,
permanecendo quase 20 anos na prisão, em condições tais que fizeram exclamar a
um carcereiro: aqui tudo apodrece fora os jesuítas. A quarta parte morreu.
Quando D. José I morreu,
em 1777, uma das primeiras providências da rainha sucessora, D. Maria, foi a de
destituir o onipotente ministro. Não foi processado em consideração da sua
idade avançada, mas desterrado de Lisboa. A queda de Pombal significou a
libertação do que restava dos 124 jesuítas. Ressurgiram das sinistras masmorras
como de um túmulo. Ao mesmo tempo foram libertados mais 800 presos políticos,
vítimas do tirano.
Também as
outras ordens religiosas eram perseguidas por Pombal. Entre outras medidas
pérfidas êle fomentava nos mosteiros a decadência da disciplina para tornar os
monges desprezíveis e poder acusá-los de indignos e criminosos.
O ex-ministro
desterrado morreu em 1780, na idade de 83 anos. Parece que a terra se recusou a
receber os despojos mortais de semelhante tirano. Tinha escolhido o sepulcro no
seu condado de Oeiras. A corte se opôs. Assim permaneceu insepultado durante
mais de 50 anos. Na invasão francesa o esquife foi arrombado e roubado de todas
as condecorações e adornos valiosos. O corpo foi queimado. Mais tarde os
franciscanos, guardas do seu corpo, recolheram os restos que ainda em 1832 se
achavam num canto da capela franciscana em Pombal. Naquele ano um membro da
Companhia de Jesus restaurada "vingou" seus confrades perseguidos,
rezando a missa "corpore praesente"
pelo descanso de Sebastião José de Carvalho, Conde de Oeiras e Marquês de
Pombal.
RECAPITULAÇÃO
Divergem as
opiniões dos historiadores sobre a conveniência e utilidade dos tribunais da
Inquisição. No julgamento devemos omitir razões ditadas pelo sentimentalismo.
Sem dúvida os métodos usados repugnam aos sentimentos de homens modernos, mas a
mesma repugnância nos causam também os tribunais civis daqueles tempos, e
contudo ninguém dirá que não deviam ter existido. Reprovamos a forma mas não a
instituição, reconhecendo sua necessidade. Se a Inquisição não tivesse alcançado
resultados úteis, pelo menos os melhores representantes da hierarquia
eclesiástica teriam pedido sua abolição. Na realidade não se pode negar que, ao
lado de efeitos prejudiciais, a Inquisição teve influência salutar. Sem o
esforço comum dos poderes secular e eclesiástico, o Ocidente cristão teria
provavelmente terminado num caos de inúmeras seitas, de credos e tendências
opostas, com todas as conseqüências de perseguições, ódios, assassínios,
inssurreições, guerras civis. Foram, como vimos, os inícios destes males que
alarmaram os governos e conduziram à criação do órgão repressivo.
De modo semelhante fala o Dictionnaire de Thèologie Catholique: "Em vista do caráter
anti-social dos cátaros e outros sectários, devemos reconhecer que a causa da
ortodoxia não era outra senão a da civilização e do progresso. Se o catarismo
se tornasse só igual ao catolicismo, os efeitos teriam sido desastrosos. Se o
ascetismo que professavam se tornasse universal, devia levar à extinção da raça
humana. Eles consideravam pecado qualquer esforço de melhoramento material, o
que teria paralisado completamente o progresso da sociedade".
A seita
anti-social dos cátaros desapareceu e da mesma forma foram supressas outras
seitas. Repetidas vezes neste estudo tivemos ocasião de focalizar como efeito
benéfico o apaziguamento do povo e a preservação dos países latinos da invasão
do protestantismo.
Na Antigüidade
e Idade Média o cristianismo já tinha levantado a humanidade da profunda
degradação do paganismo. Renascera a pureza dos costumes, a honradez e
honestidade nas relações humanas, a dignidade da mulher, a liberdade pessoal.
Garantindo a unidade da fé a Inquisição concorreu poderosamente ao progresso e
brilho da cultura ocidental, à mais perfeita da história, da qual até hoje todos
nós participamos.
Quando a
Inquisição perdeu sua influência e se originou a grande cisão na fé que dividiu
o Ocidente em dois campos, o católico e o protestante, os efeitos prejudiciais
logo se manifestaram. Além das guerras de religião já citadas, sintomas da
decadência eram as desenfreadas perseguições das bruxas, pavorosa revivência
das superstições e o declínio geral da religiosidade.
Aqui devemos
considerar também uma opinião, expressa até por historiadores católicos.
Lamentam que a Igreja se tenha apresentado ao povo cristão com face tão
sinistra, como perseguidora e opressora do homem humilde, gerando nele o pavor,
a aversão à religião e o anticlericalismo.
Os fatos
históricos, como vimos, provam o contrário. A aversão à religião verdadeira e o
anticlericalismo encontravam-se, naquele tempo, precisamente entre os hereges,
antes de qualquer ação inquisitorial. Foi o povo que com mais insistência,
muitas vezes com fanatismo, reclamava a perseguição dos dissidentes e, vezes
sem conta, se deixou arrastar a levantes sangrentos. Aplaudiu o tribunal da fé
e aquietou-se com a sua aparição. Sentia-se seguro e protegido pela Inquisição.
Os autos-de-fé eram realmente demonstrações entusiásticas de fé ardente. O povo
afluía em massa para protestar sua fidelidade a Deus, à Igreja e à pátria.
Muitos comparam os autos-de-fé com os congressos religiosos dos nossos dias. O
próprio ato era uma festa religiosa.
O Santo Ofício
é um produto do seu tempo. Contudo êle apresentou distintivos particulares, em
que aparecem os efeitos do espírito clemente, humano, pedagógico e civilizador
da religião cristã. Sua tendência fundamental era medicinal, não vingativa. A
reintegração do criminoso na sociedade humana, que muitos consideram uma
conquista dos nossos dias, era a praxe antiqüíssima e primordial da Igreja.
"Pelo que se vê, desde o princípio, a Inquisição foi mais benévola e
progressista do que os tribunais seculares, pois estes não davam ao réu a
liberdade de reconhecer seu extravio, enquanto aquela não entregava ao braço secular
aqueles que abjuravam seu erro nas mãos do bispo, senão apenas os pertinazes,
com o que subtraiu numerosos extraviados à prisão e até ao cadafalso, evitando
a confiscação dos seus bens e por conseguinte a ruína e miséria de suas
famílias" (Espasa).
O Dictionnaire de Théologie Catholique acrescenta: "Em suma, podemos pensar que a
instituição e o funcionamento dos tribunais da Inquisição realizavam um
verdadeiro progresso nos costumes; não somente eles tinham acabado com a era
das execuções sumárias, mas ainda tinham diminuído consideravelmente as
condenações que rematavam com a pena de morte. Ademais, muitos condenados
mereciam a morte por outros crimes de direito comum. A Inquisição só se explica
e justifica pela mentalidade daqueles que representavam o poder civil e o poder
religioso na Idade Média e pelo horror que lhes inspiravam o crime da heresia.
Para compreender semelhante instituição é preciso formar-se uma alma
ancestral".
Notemos que
esta conclusão não é completa, lembrando só o horror da heresia e omitindo o
grave dilema em que se achava o poder civil e religioso ou de sucumbir ou de
reagir com todos os meios possíveis.
CONFRONTO COM O MUNDO MODERNO.
Vivemos numa
época democrática que se gaba de ter dado às nações a liberdade social e pessoal.
Tão hipnotizado é o homem moderno desta liberdade que a quer absoluta e se
revolta contra qualquer limitação. Proclama-se a liberdade política e chega-se
ao extremo de exigir tolerância até para atividades francamente subversivas,
permitindo greves políticas, calúnias contra os governos livres, doutrinação
revolucionária das massas. O que acontecerá quando aquela semente medrar? Em
flagrante contradição com o princípio exagerado da liberdade, quase todos os
países livres admitem aquele partido que vê seu ideal na completa ditadura,
nominalmente a ditadura do proletariado, na realidade uma oligarquia tirânica,
que achou sua expressão inconfundível na Rússia, na China e países satélites.
Nunca houve escravização tão completa como debaixo do jugo comunista e sua
Inquisição moderna: a polícia secreta NKVD ou MVD, pratica sem proceder
jurídico, torturas, execuções, morte lenta em campos de concentração numa
extensão astronômica. Alucinados pela quimera de liberdade absoluta abrimos
caminho e facilitamos o advento da nossa escravização. Assustados os
propagandistas desta liberdade, que se enterra a si mesma, já vêem como em
certas regiões o povo desnorteado chega à dominação pelas eleições
democráticas. Porém não concluem que se deva dar cabo à desorientação sistemática
do povo.
Exige-se hoje
completa liberdade de opinião e de imprensa. Nenhuma polícia tem o direito de
impedir os agitadores de toda espécie nas suas atividades, provocando o ódio
dos operários contra seus patrões, caluniando de imperialismo a economia livre.
A licenciosidade pública, a imoralidade em recintos fechados, as exibições
escandalosas e desmoralizadoras dos cinemas, rádio, televisão vão aumentando
num ritmo de avalanche devastadora. Só dois ou três decênios trouxeram mais
depravação dos costumes do que muitos séculos anteriores.
Consideremos só
um caso em que o Estado falta manifestadamente a seu dever de preservar o povo
de influxos deletérios. Todos os homens sensatos concordam em que o espiritismo
seja prejudicial, desmoralizador e povoador dos manicômios. Contudo permite-se
que o povo ingênuo e ignorante seja afiliado em massa a este movimento
pernicioso.
Finalmente
observa-se friamente a apostasia da religião, como se sua falta não abrisse
lacuna fatal na nossa cultura e civilização. É permitida toda a propaganda
anti-religiosa e as difamações dos representantes das confissões religiosas.
Será certa ou
só razoável esta orientação? Os nossos antepassados tinham opiniões diferentes.
Eles também queriam liberdade, mas uma liberdade produtiva, que dá paz à
coletividade, eleva o homem e o dispõe corretamente para o fim da vida humana e
a suas relações com o Criador. Na realidade os povos do passado viviam mais
satisfeitos do que as massas de hoje.
Incrimina-se a
Idade Média e os tempos subseqüentes por terem praticado a crudelíssima
cremação de homens vivos. Mas o que vimos em nossos dias? Durante a última
guerra armaram-se tanques e soldados com os horríveis lança-chamas que
acertavam suas vítimas a 80 ou 100 metros de distância. Esta arma infernal
tinha a finalidade declarada de queimar vivos os adversários e é impossível
avaliar o número de milhares que em poucos anos morreram desta morte horrenda.
Negamos a validade do pretexto de que na guerra tudo é permitido. Os governos
modernos, e não só aqueles que consideramos inferiores, arrogaram-se o direito
de queimar vivos, não delinqüentes como os tribunais do passado, mas soldados,
obrigados a lutar e inocentes do conflito.
Nós reprovamos
os procederes dos nosso antepassados, eles por sua vez ficariam sumamente
indignados pela moderna guerra total, com seus bombardeios em que morreram
dilacerados, intoxicados, queimados vivos centenas de milhares de inocentes
desde crianças até anciãos. Foram lançados milhões de bombas incendiárias sobre
pacíficas moradas. Foram destruídos imensos valores culturais e monumentos
históricos.
Não vamos
infligir aos povos do passado, admiráveis na sua ardente religiosidade, a
injúria de os comparar com os degenerados pagãos modernos, encarnados
principalmente nos nazistas e comunistas. Estes revelaram instintos perversos e
cruéis que pareciam definitivamente sepultados debaixo da cultura cristã. Os
nazistas, obedecendo cega e criminosamente a um chefe tresloucado,
exterminaram, além de outras vítimas, cinco milhões, outros falam de sete
milhões de judeus, entre os quais um milhão de crianças. Um crime inominável e
único na história, uma ignomínia para o gênero humano. Ainda tinham a
hipocrisia de acusar os judeus de ter alguma vez cerca de 3.000 anos atrás,
exterminado seus inimigos, talvez alguns milhares. Os mesmos nazistas
desenterravam muitos escândalos cometidos por pessoas ou partidos políticos
católicos. Contudo emudeceram aos poucos em relação à Inquisição por que temiam
o confronto dos seus métodos com os procederes do tribunal religioso.
Os crimes dos
comunistas contra a vida de inocentes superam ainda em número as vítimas dos
nazistas. E ambos, nazistas e comunistas, fizeram e fazem-se réus de torturas
com crueldade "científica", diante das quais empalidecem as torturas
do passado. Não podemos fazer uma própria comparação entre os crentes antigos e
os materialistas modernos. Estes se colocaram à margem da cultura e da moral,
tornando manifesto — o que precisamente os antigos queriam evitar pela
instituição do tribunal religioso da Inquisição — que a decadência religiosa é
a maior desgraça do gênero humano.
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